A decisão ontem anunciada pelas autoridades de Kiev de proibir os símbolos comunistas no país (presumo que com a exceção prática das províncias do Leste) é, com toda a certeza, o primeiro passo para a interdição do próprio Partido Comunista do país. Não me parece que isso seja um bom sinal para a Ucrânia.
Nada, aliás, que seja estranho na antiga União Soviética. Vai para mais de uma década, visitei um determinado país da Ásia Central, integrado numa delegação de cinco embaixadores da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), idos de Viena. Entre os diversos encontros que nos foram proporcionados na capital do país figurava uma mesa-redonda com representantes dos partidos políticos locais.
Na sua quase generalidade, a classe política desses novos Estados era oriunda das anteriores estruturas comunistas locais, isto é, comunistas reconvertidos em novos e "rápidos" democratas. Com o fim da URSS e a independência dessas antigas repúblicas soviéticas (em alguns caso, a independência foi assumida de forma algo relutante), foram instituídos regimes cuja democraticidade era mais do que duvidosa. As novas formações políticas criadas tinham, na esmagadora maioria dos casos, um caráter pouco genuíno e eram, por assim dizer, atores de um "teatro" que pretendia convencer o mundo exterior de que as novas instituições respeitavam as normas e "standards", em matéria de observância das regras do Estado de direito, respeito pelas liberdades fundamentais e pelos direitos de cidadania. A verdadeira oposição a esses regimes autoritários fazia-se fora dos partidos autorizados, através de ONG fortemente reprimidas e de ativistas políticos e defensores de Direitos humanos, isolados ou em pequenos grupos, que mantinham uma admirável resistência e tentavam, com muita dificuldade, fazer chegar sua voz de revolta ao exterior. As missões locais OSCE porfiavam, muitas vezes sem sucesso, em manter uma ligação a essas figuras fora do sistema, como forma de as proteger.
Mas voltemos à nossa reunião. À volta da mesa, estavam representados aí uns seis ou sete partidos. Cada um deles apresentou-se e definiu o respetivo perfil, ficando claro que estávamos perante um imenso "trompe l'oeil", como o delegado da OSCE já nos tinha alertado. Todas essas formações estavam representadas no parlamento, mas nenhuma delas fez a menor observação crítica ao governo em funções, relativamente ao qual não tinham qualquer objeção visível. Deixámo-los fazer o seu "número" e foram-lhes depois colocadas algumas perguntas por cada um dos visitantes, todos oriundos de democracia ocidentais. Quando chegou a minha vez, não hesitei:
- O representante do Partido Comunista não pôde vir?
Os locais olharam perplexos entre si. Então aquela República tinha-se "libertado" do comunismo e os embaixadores ocidentais, todos de países NATO, onde o comunismo estava bem longe do poder, perguntavam pelos comunistas locais? Imagino se não se perguntavam por que diabo queriam ali comunistas quando o sentido da Guerra Fria fora precisamente derrotá-los.
O "controleiro" da delegação, representante do governo que dirigia a "peça", quebrou o embaraço coletivo e, fixando-me, respondeu com evidente surpresa e não menor firmeza:
- O comunismo acabou neste país. O Partido Comunista foi proibido.
O artificialismo da cena era reforçado pelo facto de nós sabermos, de fonte segura, que muitos daqueles "figurantes" haviam sido membros do Partido Comunista local, ao tempo da União Soviética, não muitos anos antes.
- Peço desculpa, mas tem-nos vindo a ser dito que este país vive hoje em democracia. Como é que podem afirmar isso se não autorizam que uma corrente de opinião como os comunistas se pode organizar e afirmar no vosso sistema constitucional? Os comunistas desapareceram aqui de um dia para o outro? Onde estão? A democracia faz-se precisamente para que todos possam ter o direito à representação política, por muito que não concordemos com eles. Pela minha parte - mas não posso falar pelos meus colegas, naturalmente - tenho de concluir que o vosso regime tem uma falha democrática grave. Tomo nota disso e não deixarei de ter isso em conta no meu regresso a Viena.
Os restantes embaixadores ocidentais que integravam o meu grupo não me pareceram ter ficado muito agradados com a frontalidade da minha tomada de posição. Mas o incómodo foi bem maior entre as figuras locais. No resto da nossa estada nessa "democracia" da Ásia Central fui olhado sempre de soslaio pelos nossos anfitriões. E, regressado a Viena, notei que o respetivo embaixador junto da OSCE tinha esfriado as suas relações comigo.
No plano económico, o único que poderia suscitar da minha parte alguma contenção em sede de cinismo de "realpolitik", Portugal não tinha o menor interesse nesse distante Estado. E, como costumo dizer, a grande vantagem de um país como o nosso é que, quando não tem grandes interesses pode dar-se ao luxo de ter grandes princípios....