segunda-feira, agosto 04, 2014

Uma história pouco exemplar

Não sou investidor do BES (nem de coisa nenhuma, a sério!). Porém, se acaso o fosse, qual seria agora o meu sentimento em face das repetidas declarações recentes do governador do Banco de Portugal, que nos foram assegurando que "estava tudo bem com o BES" e que "o problema era o grupo", que havia uma "almofada financeira" suficiente? Quantos milhares de pessoas, que legitimamente haviam colocado os seus bens no maior banco privado português, decidiram não alienar as suas ações, no auge desta crise, apenas porque confiaram que a palavra de Carlos Costa face ao BES valia tanto quanto a de Draghi face ao euro? Isto não pode ser como no futebol, em que o treinador é o melhor do mundo até à véspera de ser corrido...

Sei que é fácil falar de fora, mas os responsáveis estão sujeitos a escrutínio. A minha opinião é que o comportamento do governador do Banco de Portugal, ao longo deste processo, esteve muito longe de ser o adequado - e digo isto como alguém que tem uma forte consideração pessoal por Carlos Costa, com quem me cruzei profissionalmente na vida. Está hoje provado que o Banco de Portugal tinha na sua posse, há muito tempo, dados comprovativos de fortes irregularidades no mundo BES/GES, que lhe permitiam desqualificar a administração do banco, pelo que é incompreensível que se tenha deixado arrastar, por perigosas longas semanas, num improfíquo diálogo com Ricardo Salgado e a sua gente. Foi o medo de comprometer a "saída limpa"? Foi o "peso" da família dos banqueiros? Isto deveria ser bem explicado, porque acabou por ter uma desmesurada consequência no saldo (até ver) de tudo isto.

Neste contexto, nem me apetece falar do governo. A sua atuação neste processo foi de "toca e foge", de quem se dá ao luxo de entender que a vida do maior banco privado português, aquele que tem uma mais íntima relação com o mundo das nossas PME, é algo que escapa ao interesse público. Como se não fôssemos todos nós a ter de vir a arcar com as responsabilidades, se acaso tudo isto vier a correr mal. O comportamento do governo, em especial o seu "mantarrótico" silêncio neste decisivo fim de semana, foi inacreditável! E tem um nome muito feio.

E Vitor Bento? Se a nomeação de alguém com o seu perfil tinha como objetivo encontrar uma "cara" para dar segurança às soluções de futuro, então não se entende esta sua postura escondida por detrás de comunicados escritos. Imagino que esta atitude possa fazer parte da estratégia de querer ser apenas a face do "good bank". Mas, no mínimo, não foi uma atitude corajosa, e volto a ser eufemista.

Resta agora desejar toda a sorte possível ao "Novo Banco", esperando, desde logo, que tenha sido obtido o acordo do BCP* para a utilização desta sua conhecida marca, lançada já há algumas décadas. Foi esta a primeira ideia que me ocorreu, ao ouvir o anúncio de ontem.

* para quem não tem boa memória ler aqui.

À conversa no "Pereira" (3)

- Que te pareceu o Carlos Costa?

- Deu ar de ser um homem sério. Se calhar, seria um bom primeiro-ministro...

- Bom, mas, para isso, era necessário ser eleito.

- Lá estás tu com "picuinhices" (a palavra não foi esta, mas o vocábulo original era homofóbico)

- E mandavas o Passos Coelho para o Banco de Portugal?

Opto por não reproduzir a resposta ouvida, por razões facilmente compreensíveis.

- E que te parece que vão fazer ao "bad bank"? Quem será que vai ter que dirigir aquilo?

- Há um nome de alguém que seria um excelente presidente do "bad bank", mas, às tantas!, não o querem...

- Quem?

- Então não estás mesmo a ver?

- Não...

- O Ricardo Salgado. Há alguém que conheça melhor do que ele toda a "porcaria" que fica no "bad bank"? E tinha imensa graça pô-lo a responder diretamente aos acionistas e aos credores prejudicados.

- De facto...

domingo, agosto 03, 2014

À conversa no "Pereira" (2)

 
- Olha! Olha! Já viste quem ali vai?

- É verdade! Depois da incompetência com que quase arruinou a empresa, é preciso ter muita lata para andar a passear descontraído, em férias, como se nada fosse...

- Mas tem qualquer coisa de estranho, não achas?

- Não...

- É que depois de tudo o que se tem dito dele, nos jornais e televisões, estava à espera de o ver já bem mais "queimado"...

Os tablóides e a outra escrita

Quando vivi em Londres, nos anos 90, a imprensa tablóide ("popular press", como é designada) dedicava-se já a chafurdar nos casos mais sórdidos, do crime aos escândalos sexuais, tudo almofadado por fotos de garotas capitosas e fartas páginas de desporto. Porque essas são as temáticas que rendem leitores, dos bisbilhoteiros e invejosos da existência dos "rich and beautiful" aos "voyeurs" do sangue e pancada, esses jornais eram, e são, um imenso sucesso. Lembro-me que, à época, a soma das vendas dos tablóides sextuplicava o volume do "quality papers" ("Financial Times" incluído).

Os pequenos e grandes escândalos da casa real britânica foram, durante muitos anos, cuidadosamente deixados à cobertura pela "popular press", sendo mantida sobre o assunto uma espécie de pudor reverencial por parte da tal imprensa "séria", que se recusava abordá-los. Mas, um dia, essa contenção chegou ao seu limite. A novela Diana-Carlos-Camilla tornou-se tão presente em todas as conversas no reino de sua Majestade, repescada pelos "media" de todo o mundo, que a "quality press" britânica achou que não podia dar-se ao luxo, por snobeira editorial, de perder um comboio que fazia ganhar muitos leitores, que o mesmo é dizer, dinheiro.

Porém, os "quality papers" terão considerado, e bem, que não podiam tratar esses temas no mesmo registo. Foi então que, num estilo cuidadoso, "com pinças", assistimos ao espetáculo de folhas como o clássico "The Times", ou mesmo o austero "The Daily Telegraph", referirem-se a esses temas. De início, faziam-no sem chamadas de primeira página, de forma sóbria no grafismo e na construção dos títulos, parca nas fotos, cuidadosa ao extremo nas citações e fontes, sempre distanciados na abordagem dos factos. E era de morrer a rir ver então o "The Guardian" a querer mostrar ser liberal nos costumes e o "The Independent" a tentar registos sociológicos, a armar ao culto. Com o tempo, mantendo estilos diversos, sempre à luz do "interesse público" (um alibi vetusto do jornalismo quando quer pisar as "red lines"), toda a imprensa passou a tratar o assunto e os episódios que se seguiram. E isso dura até hoje.

Lembrei-me disto ao ler, há minutos, uma "opinião" de José Manuel Fernandes, no "Observador", a propósito de José Sócrates. 

Faço um parêntesis para dizer que JMF é um jornalista que leio sempre, desde há vários anos, com quem mantenho uma relação pessoal bastante cordial, a quem devo algumas atenções que não esqueço. Contrariamente a imensos amigos meus, que sentem urticária à simples menção do seu nome - em especial depois de ele se ter visto no centro dessa construção sinistra que foi a "inventona" das "escutas à Presidência". Embora o país saiba que não foi principalmente JMF quem saiu pior dessa malograda manobra. Considero JMF um homem inteligente, que escreve muito bem, que tem a vantagem de ter uma agenda político-ideológica muito óbvia e transparente - fortemente contrária à minha, está bem de ver. Como profissional de imprensa, é reconhecidamente hábil, o que não foi seguramente alheio ao facto de ter sido convidado para principal responsável por essa operação de construção de um projeto jornalístico de direita, solidamente apoiado em empresariado "com agenda" (dos acionistas à publicidade) que é o "Observador", que existe como evidente objetivo de reforçar o controlo conservador na sociedade portuguesa, através dos "media", apostando principalmente na faixa etária das redes sociais. Nada que seja ilegítimo, note-se! E, vale a pena deixar claro, o "Observador" é hoje um excelente produto jornalístico, que tem a virtualidade de não meter debaixo do tapete as cartas ao serviço das quais está, no caminho para as "échéances" eleitorais de 2015 e 2016. Hoje em dia, nestas coisas, já só é enganado quem quer.

Volto, contudo, à "opinião" que ontem JMF publicou no "Observador" a propósito de José Sócrates, tendo como pretexto Ricardo Salgado. Muito me fez ela lembrar o modo como os "quality papers" britânicos agarraram, há mais de 30 anos, os temas mais delicados da família real. Também eles não usaram o estilo do "The Sun" ou do "Daily Mirror". Nesse texto, JMF revisita, mas com a arte e a elegância de escrita que é a sua, o pacote de argumentos que é típico dos "tablóides" a que temos direito, desde o "Correio da Manhã" aos "noticiários" de Manuela Moura Guedes (que devem estar aí de volta, num tempo em que se aproximam eleições). De facto, num tom pretendidamente despido de preconceitos ideológicos (os quais, no entanto, transpiram por todo o lado), JMF combina com grande maestria um conjunto de insinuações, meias-verdades e inferências oblíquas (com pequenos truques de escrita, de efeito subliminar garantido para um leitor desprevenido), ficando sempre na soleira de poder ser visto a fazer alguma acusação concreta, não vá a mão da Justiça tecê-las. Não estamos perante um artigo onde, no plano formal, possamos encontrar fragilidades deontológicas. É apenas um texto inteligente, quiçá eficaz. JMF pode ter uma certeza: terá sempre em mim um seu leitor . Porém, atento.

sábado, agosto 02, 2014

À conversa no "Pereira" (1)

Nas conversas numa serena praia atlântica, esgotada a crise no BES e o prestígio declinante da TAP, o tema do novo comissário europeu veio à natural baila.

Alguém lembrou um facto que passou sem grande destaque: há poucas semanas, a Finlândia, substituiu o comissário que tinha na anterior Comissão, Olli Rehn, que era candidato ao Parlamento europeu. Indicou ao Dr. Durão Barroso nada mais nada menos do que o seu então primeiro-ministro. O nome foi naturalmente aceite. A operação parecia até ridícula: então faltava muito pouco tempo para o termo de vigência da Comissão, nem sequer estava ainda designado o futuro presidente e uma figura daquela importância saltava "do banco" apenas para cumprir um mandato residual? 

Sem surpresas, o cavalheiro veio agora a ser indicado por Helsínquia como seu nome para a futura Comissão. 

Alguém acredita que não houve entretanto garantias firmes quanto à sua futura pasta? Querem apostar em como ele vai herdar o "portfolio" de Olli Rehn, responsável pelos "Assuntos Económicos e Monetários", ou outra de valia exatamente similar? Ou será que alguém acredita que o ex-PM finlandês vá tratar do "Multilinguismo" ou de outras temáticas microscópicas, que Juncker vai atribuir daqui a uns tempos? Na Europa, quem sabe mexer-se leva sempre um comprimento de avanço.

O tema suscitou, na conversa onde eu estava, algumas reações a propósito:

- Não é de admirar: trata-se de um primeiro-ministro. Da vez em que nós mandámos para lá um, deram-lhe logo a presidência da Comissão...

Passo à frente alguns comentários fortemente adjetivados que logo se seguiram, porque este é um blogue para ser lido por famílias, independentemente das faixas etárias, pelo que tem de sustentar um  padrão vocabular digno do tempo estival. Mas registo uma sugestão:

- Que não fosse por isso que ia haver problemas! Se essa era a solução para nos darem uma boa "pasta", porque é que não mandámos logo para lá o Passos Coelho?!

O entusiástico unanimismo das reações que se seguiu confortou-me o ânimo quanto à possibilidade de vir a estabelecerem-se, neste país, consensos políticos muito alargados.

Os burros da TAP

Em 1975, quando a empresa de transportes rodoviários "Barraqueiro" foi nacionalizada, deu-se conta que, dentre os ativos que passaram a integrar o domínio público, vinha um burro. É verdade! O Estado passou a ser o orgulhoso possuidor de mais um asno...

Hoje, por uma notícia no "Expresso", constata-se que Pais do Amaral, como comparsa no seu "bid" para aquisição da TAP, tem a seu lado a "Barraqueiro". Nos futuros ativos da companhia, ao lado dos Airbus, será que ainda figurará o tal burro? Ou será que, nesta história da privatização da companhia aérea, que parece entrar em oportuno descalabro operacional em vésperas de ser passada a patacos, os burros acabaremos por ser nós?

sexta-feira, agosto 01, 2014

Carlos Moedas

Tudo indica que Carlos Moedas será o próximo comissário europeu indicado por Portugal - e não, como por aí se diz erradamente, o "comissário português". No momento em que escrevo, não há indicação do setor técnico que Juncker lhe vai destinar.

Conhecendo, como ainda julgo conhecer, algo do processo decisório em Bruxelas, escrevi há umas semanas aqui que "Portugal tem hoje muito poucos argumentos e (lamento dizê-lo) muito escasso prestígio na grande mesa europeia e, estranhamente, vai ter ainda de "pagar", aos olhos de muitos, a década de Barroso à frente da Comissão". Por essa razão, e por muito que Juncker gostasse de ter Maria Luís Albuquerque no seu grupo, nunca tive a mais leve ilusão de que Passos Coelho iria conseguir impô-la para uma pasta de prestígio. O suposto braço-de-ferro com o futuro presidente da Comissão só podia terminar como terminou.
 
Como então assinalei, "os vários países têm uma capacidade muito diversa para pressionar o presidente da Comissão para obterem aquilo que pretendem. Ou alguém acha que a Alemanha, a França, o Reino Unido ou a Itália não vão obter um bom portfolio? Ou, se o não conseguirem, que não serão compensados com lugares cimeiros, como os de presidente do Conselho europeu, presidente do Eurogrupo, Alto representante para a Política externa e outros postos chave da máquina comunitária que estão sempre sobre o tabuleiro, na Comissão ou no Conselho?"
 
Carlos Moedas é uma figura intelectual de mérito e uma personalidade de extrema afabilidade. Isso não são fatores despiciendos numa Comissão onde a margem de manobra depende muito da capacidade de relação dentro do colégio de comissários. O facto de falar francês e inglês de forma irrepreensível garante que Portugal coloca em Bruxelas alguém que não vai fazer "má figura". Posso revelar que, dentre os vários membros deste governo com quem tive oportunidade de interagir, enquanto embaixador em Paris, e independentemente do conteúdo da política que lhe era dado defender, Carlos Moedas foi dos que deixou uma marca mais forte de profissionalismo e competência, aos olhos dos seus interlocutores. E isso vai ser importante, porque Portugal não se pode dar ao luxo de colocar em lugares internacionais de topo personalidades que não "puxem" pela imagem do país.
 
Dito isto - e com o "disclaimer" de quem tem uma grande consideração pessoal pela figura de Carlos Moedas - não posso deixar de lamentar que, nos próximos cinco anos, Portugal venha a ser representado na Comissão europeia por alguém que co-titulou uma linha negocial errada, que condenou os portugueses a uma nefasta receita de austeridade, que poderia ter sido evitada no grau e no ritmo com que se processou. E que, no seio da União Europeia, para ser coerente com o que sempre pensou e disse, vai continuar a favorecer essas políticas, nomeadamente as que se opõem à renegociação da dívida portuguesa, condição essencial para o país poder "respirar" nas décadas que aí vêm.
 
Uma última nota. A escolha de um nome do PSD faz parte da "lei da vida" política, que favorece os governos de turno. Só quem não conhece as regras do jogo é que acreditou na hipótese de Passos Coelho vir a indicar alguém do PS para Bruxelas. Pelo menos, o atual primeiro-ministro teve a decência de não alimentar o "trompe l'oeil" que Durão Barroso protagonizou cinicamente há uma década, ao dar ares de que apoiava António Vitorino para a presidência da Comissão quando, por detrás, manobrava já para garantir para si próprio esse mesmo lugar.

"Paris é uma Festa"

O blogue "O pipoco mais salgado", ao atribuir nomes de livros a alguns blogues selecionados da nossa praça, diz que este "Duas ou Três Coisas" seria o "Paris é uma Festa", de Ernest Hemingway.
 
Fico muito grato pela comparação com o escritor americano que, no dia em que testemunhou a libertação de Paris, em 1945, teve o cuidado de se apressar a "libertar" o bar do Hotel Ritz, que ainda hoje tem o seu nome. E que, talvez não por acaso, fica a "walking distance" de outra "catedral" que Hemingway frequentava, o "Harry's Bar", no nº 5 da rue Daunou.
 
Um dia, no final dos anos 60, na localidade de Longwy, à saída do Luxemburgo, apanhei uma boleia até Paris num "carocha" com dois militares americanos. Vinham de uma base na Alemanha passar um fim de semana à capital francesa. Não falavam uma palavra de francês e ficaram encantados em que eu os ajudasse a chegar ao seu destino. A mim dava-me um jeitaço!
 
As referências parisienses que traziam, para além dos "trottoirs" da rue Saint-Denis (teriam visto o "Irma la Douce", da imagem?) e de alguns locais congéneres de Montmartre, era o "Harry's Bar". Perguntaram-me se os podia conduzir diretamente a esse lugar de culto, essa barra alcoólica de expatriados transatlânticos, por onde passaram batalhões de militares americanos. À época, o meu conhecimento de Paris era limitado. Lembro-me que, por quase uma hora, os fiz perder por vários bairros periféricos, com os militares a começarem a perder a paciência e comigo a usar o meu francês, com transeuntes que cruzávamos, para tentar chegar à Opera, de onde eu sabia o caminho para o bar.
 
Finalmente, chegámos! Fiquei-me pelo primeiro gin tónico que me ofereceram, porque tinha de ir à procura de alojamento e, decididamente, os nossos planos para os dias seguintes não coincidiam. Vi-os iniciar o fim-de-semana com um Bourbon duplo e logo imaginei o que aí vinha. Escapuli-me quando pude, não sem que lhes tivesse deixado imensas notas escritas no "Paris à vol d'oiseau", um mapa da cidade, com os edifícios desenhados, que, à época, era produzido por uma entidade de promoção turística, com um nome para mim estranho - "Sindicat d'Initiative". Nesse tempo, nós tínhamos o SNI e a última coisa a que nos lembraríamos de o associar seria um "Sindicat"... Mas, sim, Paris era então uma imensa festa!

O meu comissário

Quem quer que venha a ser indicado, este é, e será sempre, o meu comissário.

quinta-feira, julho 31, 2014

"Por outro lado"

"Por outro lado" e num outro tempo: a minha conversa com Ana Sousa Dias, na RTP Memória, hoje à noite, às 22.15 h. Foi há 12 anos!

Pode vê-la e ouvi-la aqui.

O PS nas redes sociais

A acrimónia constante e quase insultuosa entre os hagiógrafos de António Costa e os turiferários de António José Seguro - no Facebook, no Twitter ou nos blogues de ambos os lados da "trincheira" - dão uma imagem muito pobre do Partido Socialista, fazendo emergir o que de pior existe na política partidária portuguesa: a constante "fulanização" do discurso, a recusa (ou a incapacidade) para o debate calmo das ideias, a obsessão patológica em torno dos juízos de personalidade dos seus "ídolos".

Esses "talibans" de ambos os lados, uns mais caceiteiros e primários, outros a armar ao intelectual modernaço, ainda não perceberam que não captarão um único voto com as suas patéticas acusações, que só dão razões a quem começa a ficar enojado com o baixo nível desta disputa - a qual, se acaso estivessem realmente interessados no futuro do partido (e, já agora, do país, que parece que lhes passa muito ao lado) deveria decorrer de uma forma serena, elegante e responsável.

Lamento muito ver bons amigos meus, em ambos os lados da contenda, deixarem-se arrastar nestes dias num medíocre "prós e contras", num salazarista "quem não é por nós é contra nós", perdendo a cabeça e adjetivando soezmente o candidato que não colhe a sua simpatia. Um pouco mais de tolerância e espírito democrático precisar-se-ia, mas começo a dar-me conta de que "não estamos com gente disso".

Imagino a alegria que deve ir na São Caetano à Lapa!

PS - constato, com tristeza, que, com a sua entrevista de hoje à "Visão", António José Seguro não ajuda à acalmia que seria desejável.

O ausente

Era uma data importante. Dez anos de presença de uma grande empresa pública portuguesa naquele país era algo que cumpria comemorar. O prestígio internacional de Portugal depende muito da "performance" das nossas empresas, a qual, em muitos casos, tem ajudado a melhorar a perceção do nosso país.

Como "estrela" dessa comemoração, a empresa convidou o ministro que, no governo português, tinha a seu cargo a área onde operava. Aproveitou-se, como sempre acontece nestas ocasiões, para o fazer visitar unidades e instalações da empresa, a esses momentos associando personalidades políticas locais relevantes. Mas o grande evento dessas comemorações, anunciado em toda a imprensa,  seria um grande jantar de gala, no qual tinham aceite participar figuras de relevo da sociedade local, parceiros económicos e, naturalmente, os quadros superiores da empresa, desde os nacionais aos expatriados. Seriam entregues prémios e haveria um momento musical associado. Coisa para quase um milhar de pessoas. Uma operação de "public relations" cara mas que se justificava, como forma de marcar a data e aproveitar para reforçar a imagem do negócio português num país estrangeiro.

O dia fora longo. Acompanhei o ministro nas várias visitas, que implicaram uma viagem aérea. A meio da tarde, recolhemos ao hotel. Havia mais do que tempo para nos retemperarmos, antes do jantar de gala.

Ainda no quarto, recebi um telefonema do presidente da empresa. Entre o embaraçado e o desiludido, informava-me que o ministro acabara de dizer que não estava disponível para ir ao jantar, onde, em nome do Estado, deveria produzir uma intervenção que assinalaria a importância política que Portugal atribuía à ação daquela nossa grande empresa, sublinhando, ao mesmo tempo, o apoio oficial que o governo a que pertencia atribuía à respetiva atividade naquele país.

Logo inquiri se o ministro "caíra" doente. Aparentemente, não. Apenas avisara que "não estava com disposição" para ir ao jantar e decidira, em alternativa, organizar uma jantarada com amigos residentes naquela cidade, num celebrado restaurante. Melhor: pedira à empresa para lhe mandar reservar uma mesa. Para oito pessoas, "for the record". Só não guardei nota de quem terá pago a conta.

O embaraço do presidente da empresa era evidente. E, com visível incómodo, inquiria se eu, como a mais representativa entidade oficial portuguesa naquele país, na ausência do ministro, poderia representar o Estado português e intervir no encerramento do evento. Disse que sim, naturalmente. Um embaixador, às vezes, também serve para estas coisas, para substituir governantes relapsos e irresponsáveis.

terça-feira, julho 29, 2014

Moscovici

          

A França acaba de anunciar que Pierre Moscovici, o anterior ministro da Economia e Finanças de François Hollande, será, como sempre achei que aconteceria, o próximo comissário europeu francês, em substituição de Michel Barnier. Sou amigo de ambos, que se sucederam como titulares dos Assuntos europeus ao tempo em que eu tinha funções idênticas no governo português. Se o  meu entendimento com Barnier foi sempre muito bom, de início nem tudo iria correr bem com Moscovici.

A propósito de Moscovici, vou reproduzir, de seguida, o texto de um post que aqui publiquei em agosto do ano passado. 

Durante o primeiro semestre de 2000, período da presidência portuguesa da União, coube-me a presidência do grupo negocial da Conferência intergovernamental para a revisão do Tratado de Nice. Moscovici convidou-me então a ir a Paris e, desde logo, ficou evidente que a nossa perspetiva se opunha abertamente à posição francesa perante aquela negociação. Foram seis meses muito tensos no debate institucional, reuniões houve em que o "clash" atingiu um tom de rara confrontação e, por mais de uma vez, fui forçado a fazer declarações públicas que chegaram a causar algum mal-estar político entre Lisboa e Paris. 

Porém, as coisas, para nós, eram muito simples. Não estávamos dispostos a deixar que o período da nossa gestão da negociação (que sempre se soube que só se iria fechar sob a presidência francesa, no segundo semestre do ano) pudesse ser aproveitado pela França (e por outros países que tinham posições idênticas às de Paris) para fixar certas linhas tendenciais que, posteriormente, pudessem colocar em causa o peso futuro dos países de pequena e média dimensão no processo decisório dentro da União. Pierre Moscovici defendia a sua perspetiva, eu defendia a nossa (e a de muitos países que conosco concordavam). Nada de mais natural na vida diplomática internacional, mas, seguramente, algo que contribuiu para manter as nossas relações, durante todo esse ano, num registo algo tenso.

No início da presidência francesa, em julho de 2000, a França viu-se forçada a organizar uma reunião informativa sobre as negociações do novo Tratado, com os países então candidatos ao alargamento. Meses antes, Paris havia colocado reticências a uma iniciativa idêntica tomada por Portugal. Porquê? Porque, tal como alguns dos maiores "poderes" dentro da União, a França entendia que os Estados candidatos não tinham nada a ver com a discussão institucional em curso, que deveria ficar fechada a "quinze" antes da sua adesão. Nós tínhamos uma posição absolutamente oposta: se as decisões a tomar iam ter implicações no peso futuro desses países no contexto comunitário, nada mais justo que ouvi-los, a montante da sua entrada. Também não nos era indiferente, devo confessar, o facto da esmagadora maioria desses Estados ser de pequena e média dimensão, o que "confortava" as posições que Portugal defendia. O modo positivo como os países candidatos haviam acolhido a iniciativa da reunião que promovemos "obrigou" então a França a proceder, embora claramente "à contrecoeur", de uma forma idêntica à nossa.

Pierre Moscovici decidiu organizar essa reunião dos "quinze" com os países candidatos em Sochaux, perto da sua circunscrição eleitoral, Montbéliart, no cenário muito curioso do museu da Peugeot, nessa cidade perto da fronteira com a Suiça.

Depois de uma longa introdução, em que sintetizou à sua maneira a leitura do curso dos debates durante a presidência portuguesa, que acabara uns dias antes, Moscovici, ciente de que eu não deixaria de fazer uma outra interpretação dessa negociação, decidiu provocar-me:

- Esta é a leitura que a presidência francesa faz do modo como as coisas correram durante a presidência portuguesa. Mas, porque tenho a certeza que o nosso amigo Francisco Seixas da Costa, que chefiou as negociações no primeiro semestre, tem uma perspetiva diferente, passo-lhe de imediato a palavra, embora ele ma não tivesse solicitado...

A sala sorriu. Eu, que já estava "picado" com a interpretação "biaisée" feita pelo meu colega francês, decidi ir a jogo de forma ácida:

- Muito obrigado, Pierre. Se não te importas, falarei em inglês (e mudei para essa língua, o que foi a primeira "resposta" à provocação). Devo dizer que fiquei impressionado pelo modo criativo como leste os debates havidos nos últimos seis meses. De facto, tens toda a razão: não vejo as coisas assim. Ao ouvir-te cheguei mesmo a pensar que tínhamos estado em reuniões diferentes. Mas isso pouco importa. Aos nossos amigos dos países candidatos, eu gostaria de dizer que o que se passou, até aqui, na Conferência intergovernamental e que se prolongará nos próximos seis meses, configura essencialmente uma luta pelo poder. Podemos dar-lhe outros nomes, argumentar com questões de eficácia ou legitimidade, mas é basicamente de poder que se trata. Ora o poder, no seio da União, tem diversas expressões. Por isso, convido os nossos amigos a olharem com atenção para esse pequeno aparelho plástico que têm diante de vós e que vos permite mudar a língua em que querem ouvir as várias intervenções. (Todos os olhares convergiram então para os cumutadores de interpretação). Se bem repararem, as opções de línguas possíveis são três: francês, inglês e alemão. Nenhuma outra língua vos é proposta. Percebem agora melhor o que quero dizer quando falo de uma questão de poder dentro dentro da União?

Continuei a minha intervenção num tom duro, confrontacional, expressando a nossa visão da negociação e deixando claro que, ao assumi-la, estávamos, por antecipação, a defender uma posição interessante para a maioria dos futuros membros. Às vezes, olhava de soslaio para Pierre Moscovici, que mostrava um fácies descontente com o rumo que eu estava a dar à reunião. Atrás de mim, Josefina Carvalho, a minha colega portuguesa, a nossa maior especialista em questões institucionais europeias, gargalhava baixo, juntamente com a minha adjunta, Ana Leitão. A maioria dos nossos colegas dos países do alargamento, que eu me esforçara na reunião anterior por "catequizar" para a bondade das nossas soluções, sorria, com alguma ironia, começando a perceber que a União onde iriam entrar podia ter momentos divertidos de discussão.

À saída de Sochaux, as minhas relações com Pierre Moscovici tinham esfriado muito. Até dezembro desse ano, iriam piorar ainda mais. "To make a long story short", a Conferência intergovernamental veio a desembocar no Tratado de Nice, onde os maiores países da União, muito graças à relutante atitude dos Estados de pequena e média dimensão, não viriam a conseguir os objetivos por que haviam lutado (quem quiser saber um pouco mais sobre isto pode ler aqui). Anos depois, esses "grandes" países da União iriam conseguir esse seu desiderato através do Tratado chamado de... Lisboa! Mas isso é outra história...

O meu entendimento com Pierre Moscovici, que entretanto se "queixou" da minha obstinação num livro que publicou, viria a melhorar muito, depois desses tempos bem tensos. No quatro anos em que vivi em Paris, voltámos a encontrar-nos por diversas vezes, da mesa do "Café de Flore" a diversos almoços, antes e depois da sua nomeação como ministro. Conversámos bastante sobre a Europa dos dias que correm. E continuando a não pensar sobre ela rigorosamente o mesmo, convergimos hoje imenso sobre algumas das medidas de política necessárias para fazer face à crise que o projeto atravessa. E também sobre o que não deve e está a ser feito nas instituições europeias. E em alguns países.

Desejo-lhe o maior sucesso como comissário europeu.

Em tempo: este mundo da informática é curioso. Menos de uma hora depois de colocar este post, Pierre Moscovici inscreveu-se como meu seguidor no Twitter. 

Descolonização

Foi em 27 de julho de 1974, fez agora 40 anos, que António de Spínola, enquanto presidente da República, cargo que desempenharia apenas por mais dois meses, assinou a lei 11/74, que iria abrir a porta ao processo de descolonização. Apenas três meses antes, tinha-se recusado a aceitar o modo (ainda assim muito "recuado") como o assunto fora proposto, na primeira versão publicada do programa do Movimento das Forças Armadas, logo após o 25 de abril. Essa seria, aliás, a primeira crise entre os "capitães" e Spínola.

O processo de decisão que levou Spínola a alterar a sua atitude face à descolonização é um dos mais interessantes capítulos desse período. Para ele contribuíram a evolução das condições no terreno, a mudança nas relações de força no seio do MFA, e como consequência de tudo isso, a sua desistência da linha programática que tinha estado por detrás da conceção do livro "Portugal e o Futuro". Por esclarecer fica o mistério dos seus encontros com Nixon e Mobutu e o que neles terá sido dito sobre Angola (do primeiro, haverá apontamentos de Vernon Walters, a única pessoa presente, cujas memórias, contudo, nada trazem de interessante?)

Na passada semana, na revisão de alguns livros atrasados, li com bastante interesse o 2º volume do "Quase Memórias", de Almeida Santos, dedicado ao processo de descolonização, ao tempo que era ministro da Coordenação Interterritorial, o patusco nome que a Revolução encontrou para substituir o termo "Ultramar". No seu estilo muito próprio, o meu amigo António Almeida Santos faz nele um bosquejo sobre a evolução de todos os territórios, de Cabo Verde a Timor, incluindo mesmo o caso de Macau. O seu papel em todos esses casos é ali detalhado com aspetos curiosos. Sendo um ávido leitor do tema, devo dizer que aprendi mais algumas coisas que desconhecia e que me ajudaram a entender melhor o que então se passava nos corredores político-militares de Lisboa, por onde, curiosamente, eu também me movimentava, embora como figurante menor.

segunda-feira, julho 28, 2014

Na escuridão


Aproximava-se a hora do jantar. O dia tinha sido complicado, todos estávamos atrasados. Naquele imenso hotel, naquela cidade de um país onde eu era então embaixador, só dava tempo para mudar de fato, antes do jantar.

Subi rapidamente ao quarto, com a mala. Abri a porta com o cartão eletrónico e logo as luzes surgiram. Era uma suite, que vi ser grande (às vezes, os embaixadores são tratados como merecem...). A porta fechou-se, lentamente, atrás de mim. Caminhei até chegar ao quarto, junto à cama. Depositei nela a mala. E também o casaco e o cartão da porta. Tirei logo a camisa suada da longa viagem. Pensei: ainda dá tempo para um rápido banho. Abri a mala, para tirar as coisas.

Foi então que todas as lâmpadas, subitamente, se apagaram. Era já noite, as cortinas deviam estar corridas (às escuras, eu não fazia a menor ideia onde seria a janela), nem uma réstea de luminosidade pairava em todo aquele espaço, que eu não havia tido tempo de observar em pormenor. O erro era só meu: devia ter colocado o cartão no lugar de ativação das luzes, junto à entrada, lá para trás, mas, dava-me agora conta, não o tinha feito. E onde diabo estaria o raio do cartão? Provavelmente sobre a cama. Caramba, naquele hotel, o "time lag" programado das luzes era bem curto, menos de 30 segundos!

Estava assim na escuridão total. Imprudentemente, sem refletir bem, comecei a mover-me. Tentava encontrar a porta por onde tinha entrado. Lá longe. Bati contra o que percebi ser um candeeiro. Andei um pouco mais e tropecei numa mesa. Várias coisas caíram ao chão, entre as quais um telefone, que passou a lançar um silvo. Tateando, avancei e algo anguloso espetou-se-me na cintura (um móvel, pela certa) e, à frente das minhas mãos, uma televisão de plasma tremeu e correu sérios riscos. Continuei a tentar. Foi então que tropecei e caí sobre uma outra mesa (devia ser isso, presumi) e, desamparado, fui aterrar sobre algo que me pareceu ser uma cadeira. Devia ter derrubado, entretanto, tudo o que estava sobre nova mesa. Mais tarde, vim a constatar que era fruta, a garrafa de água e a ritual carta de boas-vindas do "manager".

Em que diabo da zona da suite (tinha percebido vagamente, à entrada, ter vários espaços distintos) estaria eu? A cama, ponto inicial de referência, com base na qual eu talvez pudesse reconstituir o percurso feito desde a entrada, já ficara para trás (ou para a frente, sei lá!). Estava totalmente baralhado quanto à geografia do espaço.

Não costumo "empanicar", mas dei por mim a constatar que estava a ficar sem soluções. E, agora, com um problema, acrescido e chato. É que, a certo passo (no sentido literal), pisei algo que estalou. Era vidro, talvez algum copo que eu derrubara. Tinha de ter mais cuidado, para não voltar a cair e ferir-me, ainda por cima estando eu de tronco nu. Parei para pensar (c'os diabos! Já tinha passado por situações bem mais difíceis, isto era apenas um "fait divers", embora embaraçante).

Lembrei-me então da regra para sair de um labirinto: caminhar sempre num só sentido, para a esquerda ou para a direita. Foi o que tentei fazer. E continuei a tatear, com grande atenção. Sentia-me ridículo, para não me sentir desesperado. Agarrei algo: era um quadro. Consegui "escapar-lhe", sem danos colaterais. Sem uso da vista, o resto dos sentidos ficam mais apurados.

Ouvi o que pareceu ser um longínquo ruído de canos e, nessa direção, senti uma porta. Baixei-me e vi que tinha mármore no chão: pronto, era a casa de banho. Passei ao longo do espaço da sua porta e continuei. Animado pela descoberta, acalmei e animei-me. Por algum tempo mais, mas que não deve ter sido tanto como isso, continuei a porfiar na busca do caminho de saída de um espaço de cuja configuração geral, repito, não guardara a menor ideia, aquando da minha entrada - já uma eternidade atrás.

Fiquei, entretanto, a reconhecer a existência de mais um quadro numa parede. Foi então que a porta de entrada, finalmente!, surgiu na minha mão. Já me ria comigo mesmo, da trapalhada em que me tinha metido. Mas, agora, estava aliviado pelo termo da odisseia.

Abri a porta do corredor e, encandeado pela luz, dei de caras com um membro da delegação portuguesa, que passava em frente. Era um homem que se juntara connosco no hotel, creio que de uma empresa, uma pessoa com quem me tinha cruzado, mas com a qual não trocara uma palavra. Ia já bem aperaltado, para o repasto. Imagino como deve ter olhado para mim, em tronco nu, projetando um ar algo desaustinado e estremunhado, com uma aparência estranha, alguém que dava ares de emergir de uma aventura, solitária e inédita, num quarto escuro. Mas ele não podia saber. Sorri-lhe, imagino que com um sorriso amarelo, tentando transmitir um tom de naturalidade, sem coragem de lhe relatar o que me estava a acontecer. Os embaixadores, por definição da função, querem-se gente calma e "rassurante", dominadores da situação, em especial nos países onde estão acreditados. O que era o meu caso. Ele desapareceu ao fundo do corredor, deitando ainda um olhar de soslaio, ao voltar da esquina.

E ali estava eu: de tronco nu, segurando a porta. O meu problema não tinha acabado. Mas tinha evoluído. Dispunha agora da luz do corredor a iluminar-me o acesso ao início da suite. Mas havia um problema: não podia largar a porta para ir à procura da chave, que estaria algures sobre a cama (ou será que ficara no bolso do casaco?). Em qualquer caso, era bem longe, lá para dentro.

E se eu fosse à portaria, pedir outra chave? Em tronco nu?! Doze andares abaixo?! Seria um belo espetáculo, para toda a nossa delegação, ministros incluídos, de certo todos juntos, à conversa, já de fato e gravata, para a função que se seguia! Lembrei-me que poderia ter pedido ao desconhecido da delegação para avisar a receção, mas não tinha tido o sangue-frio para agarrar a ideia a tempo. E ali estava eu, feito parvo, meio despido, agarrado à porta do quarto, com as pessoas (um primeiro ministro...) à minha espera no hall do hotel.

Foi então que ela apareceu, linda, "dressed to kill", caminhando pelo corredor, aproximando-se da porta do meu quarto, em direção ao elevador. Já não era muito nova, mas era muito bem "desenhada" e caminhava num estudado "catwalk". Olhou para mim com um ligeiro sorriso. Curiosidade? Pena? Conhecendo-me, acho que devo ter "feito peito", para amortecer a imagem da barriga... Coloquei-lhe uma questão e ela disse: “I’m sorry, I don’t speak Portuguese”. Era americana.

- Could I ask you a favour?

Não sei o que a beldade possa ter pensado, mas constatei que me lançou um sorriso prometedor (no sentido prático da resolução do meu problema, entenda-se, porque as belas não são, necessariamente, destituídas de bom coração). "In a nutshell", expliquei-lhe a situação. Qual era então o favor que eu pedia? Eram duas coisas simples: que me emprestasse o seu cartão-chave, para eu poder "dar à luz", e que me segurasse a porta, enquanto eu descobria o meu próprio cartão. Claro que podia convidá-la a entrar, mas, seguramente, se o tivesse feito ela pensaria que eu lhe estava a "fazer a folha".

- “Don't worry! I'll keep it open for you!”, disse ela, prática e colaborante. E ficou na ombreira, com um pé dentro do quarto, segurando a porta e cedendo-me o seu cartão.

A luz fez-se e, em escassos segundos, recuperei a minha chave, que estava sobre a cama. Com um sorriso do tamanho do mundo, vim rapidamente ter à porta, com a minha salvadora. Sempre em tronco nu, entreguei-lhe, entre desvanecidos agradecimentos, o seu precioso cartão. Ela também continuava a sorrir.

Foi então, naquele preciso instante, que passaram no corredor dois outros membros da nossa delegação. Fizeram-me um olhar malandro, ao verem a beldade "sair" do meu quarto, comigo "ainda" em tronco nu. Tinhamos todos chegado àquele hotel há menos de meia hora. "O embaixador não perdeu tempo!", devem ter pensado. Quando, um quarto de hora mais tarde, me cruzei com eles à entrada para o jantar, olharam para mim com um sorriso cúmplice. Fiz de conta, mas o meu olhar não desmentiu nada. O prestígio é um bem escasso...

Porque me lembrei disto hoje? Porque acabo de chegar a Varsóvia, porque voltei a ficar às escuras no quarto de um hotel, exatamente pela mesma razão da historieta que acabo de relatar. A diferença é que este é um hotel cuja geografia dos quartos conheço "de ginjeira" e, dez segundos depois, tinha o problema resolvido. Confesso que ainda deitei um olhar para o corredor. Mas qual beldade, qual carapuça!

domingo, julho 27, 2014

Até amanhã!

E agora, desculpem lá, tenho de ir trabalhar!

Luís Castro Mendes

Está no Algarve em meados de Agosto? Então por que não aproveita para ir, dia 14 de agosto, às 21.00 horas, à Biblioteca Municipal de Loulé - Sophia de Mello Breyner (rua José Afonso, tlf. 289 400 850) conversar com o diplomata e poeta Luís Filipe Castro Mendes, um dos grandes nomes da poesia portuguesa contemporânea?

Leia mais aqui, sobre esta iniciativa e sobre o perfil do autor. Faço um registo de interesses: quer o poeta, quer o organizador do evento, o jornalista Carlos Albino, são meus amigos, mas, com total "neutralidade", acho o evento imperdível.

Política externa brasileira

Paulo Roberto de Almeida é um diplomata brasileiro com larga experiência. É, além disso, autor de um grande número de livros sobre história diplomática e sobre a política externa brasileira, ao longo dos tempos. Forte crítico da orientação da ação externa do Brasil nos tempos dos governos Lula e Roussef, leio que acaba de publicar "Nunca antes na diplomacia... / a política externa brasileira em tempos não convencionais", que cobre as últimas duas décadas. O título lembra a frase clássica de Lula da Silva, o qual, sublinhava frequentemente a acção do seu governo começando por "Nunca antes neste país...".

Estou com alguma curiosidade em ler este novo trabalho do meu amigo Paulo Roberto de Almeida. Quem quiser saber mais alguma coisa sobre ele deve ler o seu blogue Diplomatizzando.

sábado, julho 26, 2014

Melhor do que emagrecer...

Se vai para o Norte do país, se quer dar algumas alegrias ao seu colesterol e fazer feliz os seus trigliceridos, consulte as novas (e outras reiteradas) sugestões que coloquei no "Ponto Come". Um dia não são dias! Boas férias!

A diligência

A minha interlocutora, no ministério dos Negócios estrangeiros daquele país, ficou perplexa quando eu lhe anunciei que o nosso primeiro-ministro iria suscitar o assunto, durante o encontro com o seu presidente, por ocasião da próxima cimeira bilateral.

A questão era delicada. Tratava-se de um importante interesse de uma empresa portuguesa. Há meses que eu batia a várias portas para tentar ultrapassar o problema, mas não conseguia mais do que vagas e dilatórias promessas. Assim, entendi que a cimeira que reuniria o nosso primeiro-ministro e o presidente daquele país seria o momento certo para a questão ser levantada. 

Estava a jogar completamente "no escuro". Não tinha a menor luz verde de Lisboa para colocar o tema na agenda, atuava por minha total conta e risco. Mas achei que o que estava em jogo - e era importante! - valia a parada.

Percebi logo que a minha interlocutora não gostava do que estava a ouvir. Uma cimeira é essencialmente uma "festa" comemorativa da "excelência" das relações bilaterais, onde se anunciam "resultados" e se assinam protocolos, mais de metade dos quais se sabe que nunca serão implementados por completo. Constatar divergências e "poluir" a ocasião com problemas não faz parte do "script" desses momentos grandes, feitos de sorrisos e palavras rituais de entendimento.

Levei o meu "bluff" ainda mais longe. Deixei cair que o tema já tinha sido objeto da curiosidade da nossa imprensa, através de telefonema à nossa embaixada, e que sabia que era a própria empresa que estava a "travar" o tratamento mediático do mesmo, por privilegiar uma abordagem discreta, mais política. Por isso, era forçoso que fosse levado à cimeira, porque o assunto iria "rebentar", mais cedo ou mais tarde. Porque era uma questão com alguma carga política, o nosso primeiro-ministro não poderia deixar de suscitá-lo, concluí.

"Mas não haverá outra maneira de tratar o tema, sem ser entre os dois chefes de governo?", perguntou-me a diplomata, já angustiada com a minha leve "chantagem". Talvez os dois MNE pudessem abordá-lo, na reunião separada que teriam... Respondi-lhe com uma expressão em inglês, que não era a língua local: "No way!". E lembrei-lhe que, tal como ambos bem sabíamos, a ser analisado o tema pelos MNE, o assunto acabaria com uma declaração do género: "as partes analisaram a questão que envolve os interesses da empresa portuguesa X e congratularam-se pelo progresso registado nos contactos que têm vindo a ser desenvolvidos sobre o assunto, que esperam possam conduzir a um resultado positivo, num prazo tão breve quanto possível". Não era verdade que ambos aprendêramos a escrever este tipo de textos, precisamente quando sabemos que as coisas não andam para a frente, mas queremos vender uma imagem pública do contrário? Ela não pôde senão concordar.

Mas eu tinha uma "solução alternativa" à abordagem do assunto ao nível mais elevado. Os olhos da minha interlocutora, por sinal nada feios, sorriram por detrás dos seus óculos. E eu esclareci: poderíamos organizar um encontro entre um dos nossos ministros que vinha na comitiva, de uma área mais técnica, aliás próxima do tema que estava em causa, e o membro do governo local que tinha diretamente o assunto em mãos. Ao dizer isto, estava consciente de que seria muito difícil organizar esse encontro, precisamente porque era esse mesmo responsável político local que, desde há meses, andava a "encanar a perna à rã", adiando a solução para o problema.

A minha interlocutora percebeu logo a dificuldade que esta minha solução alternativa criava. A última coisa que o seu ministro quereria era ser confrontado com um "sim ou não" ou um pedido de calendarização da decisão. Mas a solidariedade interministerial acaba onde começa a proteção dos interesses de um presidente. E, por isso, para salvar a "pureza" da cimeira, acedeu a tentar o que eu propunha - tendo eu reiterado que, a assim não poder ser, o assunto passaria então para a reunião "de topo".

As coisas passaram como eu queria e Lisboa aceitou que um nosso ministro, qualificado para abordar o tema e que se deslocaria com o primeiro-ministro para a cimeira, se encontrasse numa reunião paralela com o tal membro do governo. O qual só depois de muitas insistências da sua presidência da República aceitou, a contragosto, ter o encontro.

Com pena minha, não pude ir a essa reunião, por estar a acompanhar o nosso primeiro-ministro em outros contactos. O ministro iria, porém, acompanhado por um colaborador meu, bom conhecedor do assunto, sobre o qual, aliás, havíamos preparado detalhados "talking points", enviados para Lisboa a montante da visita.

O dia correu no afogadilho típico destas ocasiões. Só voltámos a encontrar o ministro, depois da reunião com o interlocutor que lhe destináramos, já no aeroporto, no termo da visita, minutos antes da partida. Notei então que o meu colaborador, que o acompanhava, trazia "cara de caso". Teria a conversa corrido mal? Será que houvera uma "nega"? Como era eu quem ficaria "com a criança nos braços" nos dias seguintes, inquiri, discretamente mas ansioso, como é que as coisas se tinham passado.

Foi então que recebi a mais inverosímil das respostas: "O nosso ministro não falou do assunto!" Não acreditei no que estava a ouvir! "Não falou do assunto?!" Mas, se esse era o único objetivo do encontro, falou de quê? Fui informado que, perante a visível incredulidade do ministro estrangeiro, esse membro do nosso governo passara meia hora de conversa a falar de generalidades, sem uma única vez se referir ao tema que tinha justificado o pedido da reunião. 

Não vem para o caso referir o que se passou a seguir, o modo como posteriomente tive de lidar com os meus contrapartes locais, os mesmos que convencera, com esforço, a aceitar uma reunião que, afinal, um membro do meu próprio governo viria a não aproveitar. Julgo terem tido a generosidade de não me confrontarem com uma coisa do género: "Então o assunto era tão importante, você "ameaçou" que o seu primeiro-ministro o suscitaria e, afinal, o seu ministro nem a ele se referiu?!" A minha credibilidade para continuar a pressionar sobre o tema acabara de desaparecer naquele instante.

Como podem ver, a vida diplomática está longe de ser um mar de rosas.

sexta-feira, julho 25, 2014

A ONU em Gaza

Israel bombardeou a escola das Nações Unidas, em Gaza.

Ser secretário-geral das Nações Unidas é um posto ingrato. A história mostra que os diferentes titulares tiveram percursos e resultados muito diversos. De certo modo, pode dizer-se que, nos tempos da Guerra Fria, onde as coisas eram "a preto e branco" num mundo Leste-Oeste, talvez fosse mais fácil exercer essas funções, bastando ser respeitador sem subserviência dos EUA e procurando estar minimamente atento aos direitos e interesses do(s) outro(s) mundo(s). Esse caminho "estreito" foi tentado por alguns SG, com relativo êxito. Nos tempos que correm, as fronteiras são mais fluídas, as certezas são menores e a unipolaridade centrada em Washington, que debilitou a imagem da ONU a um nível nunca antes visto, torna mais complexa a função, tanto mais que a Rússia atual não é "flor que se cheire" e o mundo "do Sul" se transformou numa salgalhada onde há um pouco de tudo.

A questão israelo-palestiniana é, historicamente, o maior "calcanhar de aquiles" das Nações Unidas. Qualquer secretário-geral da ONU o sabe, até porque tem de viver com um "droit de regard" permanente de Washington sobre esse tema que é quase uma política "doméstica" para qualquer administração estadunidense. Israel, que tem "na mão" as administrações americanas (agora de ambas as colorações, no passado mais os democratas, então mais permeados pelo lóbi judaico), sabe que pode contar com o imobilismo das NU e que o que de lá sair nunca afetará excessivamente os seus propósitos. Por isso age com esta impunidade.

Conheço relativamente bem Ban Ki Moon. Durante quase seis meses, demo-nos bastante, ao tempo em que era chefe de gabinete do presidente da Assembleia Geral da ONU e eu era presidente da Comissão de Economia e Finanças, uma das seis comissões permanentes dessa Assembleia. O facto do presidente da Assembleia ser o MNE da República da Coreia obrigava Ban Ki Moon a substituí-lo, com grande frequência, na coordenação do trabalho das comissões. Anos depois, quando fui a Seul representar a OSCE, era ele assessor diplomático do presidente coreano, convidou-me para almoçar e fez-me uma das mais completas e equilibradas leituras sobre o conflito entre as duas Coreias que ouvi até hoje. E recordou-me, com saudade gustativa, um prato de camarão que o nosso cozinheiro beninense fazia muito bem e que uma vez lhe ofereci na nossa residência, em Nova Iorque. Fiquei contente quando vi um homem sereno e respeitável como Ban Ki Moon ser escolhido para secretário-geral da ONU, para substituir Kofi Annan.

Imagino que para Ban Ki Monn estes dias não sejam nada fáceis, embora, à partida, ele devesse ter a consciência clara do que poderia fazer, em especial num terreno tão minado politicamente como é o processo "de paz" do Médio Oriente.

O que se passou ontem em Gaza, com o bombardeamento da escola das Nações Unidas, deveria conduzir Ban Ki Moon a um gesto que poderia ter uma utilidade bem maior do que o mero esbracejar retórico e o estafado apelo ao cessar-fogo que fazem parte da coreografia diplomática da praxe. Se Ban Ki Moon quisesse assumir uma atitude com um mínimo de eficácia, deveria provocar uma crise nas Nações Unidas, demitindo-se. Um gesto desta natureza configuraria um ato de coragem, de desassombro e de grande dignidade. Os Estados Unidos teriam um sério embaraço e o mundo compreenderia.

quinta-feira, julho 24, 2014

Hoje, 24 de julho

Nem um milésimo da população de Lisboa deve fazer a menor ideia da razão pela qual a longa avenida que liga o Cais do Sodré à avenida da Índia se chama "24 de julho". E é pena.

Foi no dia 24 de julho de 1833 que o duque da Terceira aportou a Lisboa, à frente das tropas liberais (ser "liberal" era então uma coisa diferente daquilo que é nos nossos dias...), para pôr termo à usurpação política do trono por dom Miguel, que procurava opor-se à ordem constitucional e reinstituir o "antigo regime". E, já agora!, convém lembrar que o nome do largo do Cais do Sodré é "duque da Terceira".

Interinidades

                   
A imprensa, nos últimos dias, deu em referir o facto do ministro da Defesa, Aguiar Branco, ter ficado "a fazer de primeiro-ministro". É um tanto estranha esta referência, a não ser que seja por indizível maldade, num país em que a ninguém passa pela cabeça assinalar essa coisa bem mais notável que é o facto de Portugal, nos dias que correm, estar a ser presidido por Assunção Esteves, na ausência de Cavaco Silva. Enfim, fraquezas das assessorias, em tempo de "silly season"...

Em alguns países da América Latina, a assunção de funções de governo por um substituto, na ausência do titular efetivo do posto, tem uma consagração formal muito expressiva. Se um ministro sai para o exterior, por uma qualquer razão, a pessoa que fica responsável pelo seu cargo passa, de imediato, a ser designada por "ministro interino" e, como tal, a ser qualificada obrigatoriamente em cerimónias e na imprensa. Diga-se que, de certo modo, isso lhe confere um suplemento de autoridade e dá aos seus atos um significado diferente, como que colmatando o que poderia ser um vazio político. 

No Brasil, o caso mais flagrante prende-se com as ocasionais ausências simultâneas do presidente e do vice-presidente da República. Neste caso, assume o cargo o presidente da Câmara dos Deputados. Se este estiver ausente, essa titularidade passa, sucessivamente, ao presidente do Senado e ao presidente do Supremo Tribunal Federal. Em alguns casos, estes titulares interinos fazem questão de assumir a plenitude dos direitos do cargo e mudam-se - nem que seja por escassos dias! - para o gabinete presidencial e recebem em audiência nesse cenário, com abundância de fotografias oficiais. Para a história divertida ficou mesmo o caso de quem, no precário exercício dessa fortuita e ocasional função, foi bem longe no usufruto das benesses logísticas a que a mesma dava lugar...

A prática europeia, pelo menos nos casos que conheço, parece ser bastante menos formal. Em Portugal, a um secretário de Estado que fica a chefiar um ministério na ausência do ministro não lhe passaria nunca pela cabeça intitular-se "ministro interino", do mesmo modo que - como uma exceção histórica que só confirma a regra - um presidente da Assembleia da República jamais seria tentado a mudar-se para Belém, durante a ausência do país do presidente da República. Cada terra com seu uso...

Vem isto a propósito de uma conversa que, há menos de uma década, um grupo de embaixadores na ONU (em rigor, deve dizer-se de "representantes permanentes", designação para os chefes de missões diplomáticas junto de organizações internacionais) estava a ter em casa do meu querido amigo e colega espanhol Inocencio ("Chencho") Arias, à volta de um almoço. Por qualquer razão, veio então à baila esta prática latino-americana. Alguns comentaram a profusão de "presidentes interinos" a que a mesma pode conduzir. Nem todos, porém, comungaram dessa visão ligeira.

Um dos colegas latino-americanos, aliás dos mais qualificados entre todos os colegas que cruzei em Nova Iorque, pediu a nossa indulgência e, um tanto embaraçado, revelou: "Também eu, um dia, assumi por três dias as funções de presidente da República. Era o ministro mais antigo e coube-me ocupar o cargo. E, devo confessar-vos, não resisti: coloquei a faixa presidencial e, com a família, tirei fotografia oficial, com constituição na mão e bandeira por detrás. Com os diabos: aquilo só acontece uma vez na vida!".

O quadro do colombiano Botero, com o título de "El Presidente", é talvez cruel de mais, mas não resisti a utilizá-lo a ilustrar este post. 

* este texto reproduz um post aqui colocado há cerca de quatro anos. Como os leitores vão variando...

quarta-feira, julho 23, 2014

Obras

- Ó mãe! Onde é?

Era uma miúda creio que com menos de 10 anos. Estava sentada com os pais, a olhar a televisão, a ver algumas imagens da etapa da Volta a França, num café de Vila Pouca de Aguiar, hoje, depois do almoço.

- É na França, disse a mãe.

- E lá não há obras?

- Obras? Claro que há obras!, foi a resposta do pai, em tom irritado, sem tirar os olhos do plasma e a mão da Super Bock.

A miúda calou-se. Mas eu percebi bem o que ela queria dizer.

Gosto imenso de ver as reportagens televisivas do "Tour", cada vez mais bem realizadas. E há anos que me delicio com os panoramas soberbos que temos o privilégio de observar, com as bermas bem arranjadas, com os campos alinhados, com os muros impecáveis e, em especial, sem os estaleiros eternos de obras, que fazem parte do cenário calisto deste nosso país.

Por lá, por França, apeteceu-me dizer à miúda, também há obras, mas há o cuidado - melhor, a obrigação - de as disfarçar, porque o culto da paisagem faz parte da preservação da qualidade de vida de um país que sabe que ganhar o olhar admirativo dos outros é a condição essencial para continuar a ser o maior cativador de turistas de todo o mundo.

Céu de brigadeiro

Ontem, numa das suas imperdíveis crónicas no DN, Ferreira Fernandes elaborava sobre os "brigadeiros", o doce brasileiro que um cozinheiro internacional desprezou e de cuja simplicidade um escriba culpava a colonização portuguesa. Recomendo a leitura aqui.

Hoje falo do conceito de "céu de brigadeiro", uma expressão também brasileira que significa céu muito limpo e sem a menor ventania. 

A expressão "céu de brigadeiro" prende-se com o facto de brigadeiro ser, naquele país, o posto mais elevado da hierarquia da Força Aérea. Ora o chefe da Aeronáutica, por definição, só voa com um tempo ideal, com um "céu de brigadeiro". A expressão vem dos anos 50 e é corrente numa conversa brasileira.

Porque me lembrei dela? Porque é isso mesmo que estou a "sofrer". Sem voar.

Imagens

Porque é que o blogue deixou de ter fotografias?, perguntam-me amigos. Porque só uso um IPad e sou um "nabo" informático. Daqui a dias "volto atrás" e alindo o blogue, prometo!

A pena do comissário

A cara de Jacques Chirac não era das mais satisfeitas. Tive o privilégio de assistir a algumas "cenas" do antigo presidente francês e, por isso, era muito evidente para mim que estava mal disposto, naquela manhã em que eu acompanhava António Guterres ao Eliseu. A única certeza é que não era nada que nos dissesse respeito, tanto mais que estávamos ainda longe dos dias em que nos havíamos de confrontar fortemente com a França em algumas matérias europeias.

António Guterres, que tinha uma muito boa relação de confiança com Chirac, detetando-lhe o "mood", inquiriu da razão dessa evidente irritação. Chirac permitiu-se a franqueza, perante um amigo, e, com aqueles gestos largos e dasajeitados com que alguns franceses grandes dão corpo físico às palavras (já De Gaulle era assim), deixou cair:

- É a Comissão, António. É essa "impossível" Comissão europeia!

Guterres ironizou: "acontece-nos a todos!". Mas Chirac continuava a agitar os braços, como se não precisasse de palavras para traduzir o que pensava. Alguma coisa importante havia "feito" a Comissão Europeia à França, nesse eterno duelo acrimonioso entre Paris e a burocracia bruxelense, que faz parte da história da Europa comunitária. Chirac esclareceu o que tinha sido e que acabara de saber: uma obstinação na recusa sobre um interesse francês, o qual, por definição, é sempre "essencial". Como Guterres tinha dito, não há país que disso não se queixe, mas a França não é um país qualquer...

Por fim, Chirac distendeu-se e comentou, com uma graça forte, sobre a qual já sorriu:

- Sabes, Antonio? Se houvesse uma só razão para reintroduzir a pena de morte, seria para ela ser aplicada a certos comissários europeus, e deu uma sonora gargalhada, contente em ter despachado o que lhe ia na alma.

Nestes dias em que, entre nós, se fala tanto da nomeação de comissários europeus e da famosa moratória guiné-equatoriana sobre a pena de morte, pareceu-me interessante trazer aqui, numa destas minhas histórias dos outros, uma conversa em que os temas se cruzaram.

terça-feira, julho 22, 2014

Os inúteis

Foi necessário que, na passada semana, Bagão Felix tivesse utilizado o seu "megafone" mediático para que as Finanças cuidassem de vir pressurosamente a terreiro, por fonte ainda assim anónima, a clarificar o que não era claro: que os funcionários públicos na reforma não estão impedidos de dar contributos que lhe sejam solicitados por entidades públicas, desde que pro bono, a título gracioso.

Sou consultor de duas universidades públicas e faço parte de um grupo de trabalho criado por um diploma interministerial. Não recebo um cêntimo por estas tarefas, mas é com grande prazer que presto esse meu contributo. Faço-o pelo que considero ser meu dever tentar ser útil ao Estado, mesmo na condição de reformado, depois de 42 anos de orgulhoso servidor ativo da "coisa pública".

Como muitas outras pessoas nas mesmas circunstâncias, interroguei-me quando vi publicada a Lei 11/14, de 6 de março. Contrariamente ao anónimo oráculo do Terreiro do Paço, não tomei o "wording" do texto legal à conta de um pretenso "excesso de zelo" (ficando por clarificar o que entendem por "zelo"). Tomei-o pelo que ele era, de facto, e que, agora e sob pressão do escândalo, o poder político teve atabalhoadamente de retificar, ainda assim com um mero "parecer": o interesse em afastar do convívio com o Estado, tão rapidamente quanto possível, os antigos servidores públicos, uns "inúteis" tidos por potenciais desafetos à nova cultura político-administrativa dominante, por forma a evitar que eles venham a "poluir" esse arejado ambiente, com as suas ideias de outrora e com a sua opinião datada.

O escriba de serviço foi longe demais? Talvez, mas não cometeu nenhum lapso, era para ser mesmo assim! Eles fazem asneiras mas não fazem erros. De quem freudianamente "matou o pai" e agora parece querer "privatizar a mãe", tudo é de esperar. Quem os não conhecer que os compre...

O xadrez angolano


Aquele telefone, num móvel situado atrás da minha mesa de trabalho na embaixada em Luanda, raramente tocava. Era uma linha direta que eu ia distribuindo aos novos conhecimentos que fazia  pela capital angolana, esse posto que o MNE me destinara no ano da graça de 1982, depois de três anos na Noruega, onde "aterrara" poucas semanas antes.

Naquele dia, o telefone tocou:

- Bom dia! Daqui Sande Lemos. Estás bom? Nunca mais nos vimos, desde o jantar em casa da Luthgarda. Temos de fazer um almoço, um destes dias, no "grill" do Trópico, para pôr a conversa em dia.

Para não parecer indelicado, não retorqui que não estava a identificar a pessoa com quem falava. O nome "Sande Lemos" dizia-me alguma coisa: era uma família conhecida de Lisboa, mas não me recordava ter-me cruzado em Luanda com alguém com esse apelido, no escasso tempo que levava da cidade. Mas podia ter acontecido! De facto, eu estivera num jantar em casa de uma amiga chamada Luthgarda e almoçava, com frequência, no "grill" do hotel Trópico, onde aliás estava provisoriamente instalado. Por isso, a minha resposta, dada na passada, foi prudente, evitando mesmo o "tu" que me era proposto:

- Bom dia! Vai-se andando, com muito trabalho. Tudo bem?

- Meu caro. Queria pedir-te se me poderias despachar dois vistos para Portugal, em "passaportes de serviço", que já estão aí pela embaixada há já uns dias. É gente aqui da secretaria de Estado dos Desportos e conseguiram-se dois "OK" na TAP para esta noite. Achas que podes "desenrascar" isso?

Como era eu que assinava esses preciosos vistos, não tive dificuldade em assegurar que os passaportes estariam disponíveis dentro de meia-hora. E assim pude fazer um favor ao meu "amigo" Sande Lemos, o qual, pelos vistos, trabalhava na secretaria de Estado dos Desportos. E logo preenchi uma pequena ficha desse novo contacto, para o que desse e viesse.

Com a agitada vida social de diplomata (episodicamente) sem familia, nunca mais me lembrei do Sande Lemos, dando apenas por adquirido que fora uma das caras que cruzara num jantar em casa da Luthgarda, que acabara com um tardio "muzungué". Com o recolher obrigatório então em vigor, entre a meia-noite e as cinco da manhã, nos fins de semana ficava-se frequentemente na conversa até à alvorada, inaugurando o novo dia com essa sopa de peixe que substituía o pequeno almoço.

Até um dia. Novo telefonema do Sande Lemos, novos vistos a apressar, abraços e promessa da tal "almoçarada". Eu, encavacado pelo facto de ainda não ter colocado uma cara naquele nome, lá me despachava das conversas como podia, resolvendo o problema àquele cada vez mais grato "amigo".

Passaram talvez dois anos. Realizou-se em Luanda um torneio de xadrez, ao qual Portugal enviou o mestre Joaquim Durão. No seu termo, havia uma cerimónia de entrega de medalhas e o embaixador pediu para ser eu a representá-lo. Chegado ao local, fui apresentado aos membros da mesa pelo meu título, "primeiro secretário da embaixada portuguesa" (por um mistério que nunca resolvi, em Luanda não se dizia "embaixada de Portugal" mas sempre "embaixada portuguesa"...). Ao cumprimentar um dos presentes, representante da secretaria de Estado dos Desportos, ouvi:

- Sande Lemos...

Olhei-o de frente. Nunca o tinha visto. Era o meu "amigo" e interlocutor telefónico. Ficámos bloqueados, sem "lata" para nos rirmos do imbróglio. A explicação para o que acontecera, como vim a concluir, era simples. O meu "amigo" Sande Lemos devia ter conhecido, num dos frequentes jantares em casa da Luthgarda, o meu antecessor, que saíra de Luanda escassos dias antes da minha chegada. Tinha o número de telefone do "primeiro secretário da embaixada", não cuidou em referir o nome dele na conversa comigo e estivera de total boa fé ao longo de todo esse tempo. A minha timidez fez o resto.

Passaram mais de 30 anos. Que será feito do meu "amigo" Sande Lemos, o meu "contacto" na estrutura oficial do Desporto em Angola?

O outro lado do vento

Na passada semana, publiquei na "Visão", a convite da revista, um artigo com o título em epígrafe.  Agora que já saiu um novo núme...