quarta-feira, fevereiro 28, 2018

Khadafi, a Madeira e nós

Rui Tavares conta hoje, no “Público”, alguns aspetos da questão suscitada, em 1978, por declarações do líder líbio Mouhamar Khadafi, ao ter apelado à “descolonização” da Madeira, no contexto de uma reunião da Organização da Unidade Africana.

Lembro-me bem do problema que isso suscitou no âmbito do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

A Líbia, onde o regime do rei Idriss tinha há pouco sido derrubado, fora, por muito tempo, um país algo distante para nós. Mas, no Portugal pós 25 de abril, um regime autoritário ser derrubado por um grupo de jovens militares suscitava naturalmente alguma simpatia...

Mário Soares, nos seus périplos diplomáticos para desbloquear o processo negocial com as colónias em transição, havia passado umas horas por Tripoli, em 1974. E haviam sido estabelecidas, através da nossa embaixada em Paris, relações diplomáticas bilaterais, embora sem embaixadores mutuamente acreditados.

Em 1976, na sequência dessa aproximação, a Líbia enviou uma delegação a Lisboa, a um congresso do PS. Coube-me organizar, como jovem diplomata com esse pelouro geográfico que então era, um conjunto de contactos técnicos para o ministro dos Municípios líbios, que chefiava a delegação, Abuzaid Dorda.

(Em 2001, vim a encontrar e a conviver com Dorda, então meu colega nas Nações Unidas. Havia sido, entretanto, primeiro-ministro do seu país. Viria a ser condenado à morte pelo novo regime, em 2015, mas, aparentemente, continua preso, com a sentença por executar). 

Escassos meses depois, e como consequência direta dessa visita, com vista a explorar as imensas possibilidades de cooperação económica que se abriam com um país rico em petróleo como era a Líbia, integrei uma delegação técnica no domínio da construção civil e obras públicas que deslocou àquele país. 

A minha participação na delegação - ainda nenhum diplomata português fora oficialmente à Líbia - foi explicitamente decidida como forma de dar um primeiro sinal (a nível deliberadamente “baixo”, como foi então assumido, o que não alimentou o meu ego...) de aproximação política oficial ao novo regime. Fomos recebidos de forma principesca e tudo apontava para excelentes hipóteses de negócio para as nossas empresas.

Mas nem tudo iria correr bem, no imediato, nesse “namoro” com a Líbia. 

Logo ano seguinte, em dezembro de 1977, quando uma nova delegação técnica, de que igualmente fiz parte, se aprestava para concluir alguns dos contratos negociados, esperava-nos uma surpresa desagradável: fomos praticamente “sequestrados” à chegada a Tripoli, retiraram-nos os passaportes e os bilhetes de avião e confinaram-nos, sem contactos, num hotel miserável, na periferia de Tripoli, durante quase uma semana. (À época, procurou-se "esconder" da imprensa este incidente sofrido pela nossa delegação, que era presidida pelo engº Guimarães Lobato, administrador da Gulbenkian).

O que se teria passado? Muito simplesmente, os líbios reagiam assim a uma declaração feita por Mário Soares, horas antes, numa reunião da Internacional Socialista, em que o então primeiro-ministro português havia anunciado o estabelecimento de relações diplomáticas a nível de embaixada com Israel. Nós havíamos sido apenas as vítimas “colaterais” desse desagrado. 

Kadhafi não esqueceria a afronta da aproximação portuguesa a Israel. E é assim que, meses depois, surge esta “boutade” sobre a Madeira que, oportunamente, Rui Tavares vem recuperar, quarenta anos mais tarde.

Para o que também importa, convirá registar que as coisas acabaram por compor-se. A presença empresarial portuguesa reforçou-se imenso na Líbia, muitos trabalhadores portugueses por lá estiveram a ganhar bastante dinheiro, muitos bons negócios beneficiaram por ali Portugal, por muito tempo, até à queda de Kadhafi. Depois, foi o que foi...

Da cobardia

Há coisas difíceis de dizer a um amigo: uma delas é que essa pessoa tem mau hálito e que isso se torna incómodo para os outros. Mas temos que fazê-lo, porque, por menos cómodo que isso possa ser, estamos a poupar essa pessoa a situações desagradáveis, até de rejeição, de que ela própria, porque não tem consciência disso, será o principal prejudicado. Uma vez disse isso a um colega nosso. No primeiro instante, pareceu-me ligeiramente perturbado mas, no fim, acabou por me agradecer.”

A fala reproduzida no parágrafo anterior não é minha: foi-me dita por um prestigiado embaixador, bem mais velho do que eu, num café de uma capital europeia. A conversa tinha-nos conduzido, sei lá bem porquê, àquele estranho tema. Eu ia dizendo que sim com a cabeça, seguindo o raciocínio do homem. Por um lado, dava-lhe razão: deve ter-se a coragem de avisar os amigos desse aspeto desagradável. Mas, por outro, pesavam mais as razões que me levavam a coibir-me de dizer ao meu interlocutor que, também ele, tinha um odor insuportável a sair-lhe da boca.

terça-feira, fevereiro 27, 2018

O grande rebelde




Foi há quase cinco anos. Tocou à minha porta. Era praticamente nosso vizinho. Eu não estava em casa. A quem o atendeu, entregou um livro para mim, com uma amável dedicatória. Disse querer agradecer o que eu tinha por aqui escrito. O facto de eu ter, mais uma vez, reposto a verdade.

E o que é que eu tinha escrito? Pela enésima vez, tinha contado algo que tem mais de duas centenas de (quase todas silenciosas) testemunhas: naquela que ficou conhecida pela “assembleia selvagem” do MFA (porque não foi convocada nos moldes formais), na noite de 11 de março de 1975, o coronel João Varela Gomes não apelou ao fuzilamento dos conspiradores dessa manhã. 

Mas houve ou não alguém que fez esse apelo, nessa tensa reunião que durou quase até às sete da manhã de 12 de março? Claro que sim. Houve por ali uma voz que fez essa insensata proposta. Não interessa agora quem foi. Para o que me importa, que fique claro que essa voz não foi a de João Varela Gomes. Os seus inimigos e detratores, recorrentemente, em livros e artigos, espalham essa miserável insídia. Eu, que nunca fui seu amigo, mas fui testemunha ativa dessa noite revolucionária, repetirei, tantas vezes quantas for necessário, essa simples verdade.

João Varela Gomes foi um oficial do Exército que, com imensa coragem, combateu a ditadura. Foi a figura mais importante da tentativa revolucionária de derrube do regime, ocorrida na noite de 31 de dezembro de 1961, no frustrado assalto ao quartel de Beja. Gravemente ferido nessa intentona, esteve preso durante uma década.

Poucos meses depois de ter deixado a prisão, em 1972, fui-lhe apresentado, bem como a sua mulher - Maria Eugénia Varela Gomes, uma grande figura antifascista -, pelo meu amigo Lino Bicho, num almoço em Colares, na “Casa dos Frangos”, um célebre restaurante dirigido por um casal de comunistas, o Gil e a sua mulher, uma “roja” que participara na Guerra Civil espanhola. 

Voltaria a encontrar Varela Gomes dois anos depois, nos dias do 25 de abril, no palácio da Cova da Moura. Eu era adjunto da Junta de Salvação Nacional, fazendo parte da “comissão de extinção” da Pide, e Varela Gomes era a figura mais marcante da famosa 5ª Divisão do Estado-Maior General das Forças Armadas, que funcionou, por algum tempo, numas salas no topo do edifício. Era tido como um militar muito próximo do PCP. 

Em 11 de março de 1975 e nos dias seguintes, cruzei-me bastante com Varela Gomes, desde um encontro no Palácio de Belém até à tal Assembleia do MFA, bem como à volta da organização da Assembleia do Exército, para nomear o Conselho da Revolução, que teve lugar 24 horas depois, em que ele viria a ter um sério confronto, quase físico, com Vasco Lourenço. 

O papel central de Varela Gomes na chamada “esquerda militar” - isto é, os militares próximos do PCP - era então mais do que evidente. Eu não andava por essas “águas” e algumas coisas se passaram, em reuniões e conversas de corredor, que não ajudaram a tornar muito aberta a nossa relação. Mas ainda voltámos a falar algumas vezes, embora sempre sem grande empatia, durante esse Verão quente de 1975. Depois, em agosto, saí do serviço militar e, por muitos anos, perdi-o de vista.

Varela Gomes voltaria, entretanto, a estar em evidência no 25 de novembro desse ano de 1975, movimento militar após o qual se refugiou durante alguns anos em Angola. 

Regressaria mais tarde a Portugal. Éramos vizinhos. Cruzávamo-nos às vezes na rua, conversávamos por alguns minutos. Notei que estava atento à minha vida, citando-me coisas que eu publicava e lugares que eu ocupava.

Nesses nossos encontros aperiódicos, nunca falámos de política. Mas julgo que não tinha mudado as suas ideias, continuando a ter uma profunda repulsa pela “democracia burguesa” em que vivemos - com a qual eu estava confortável e ele não.

Não creio ser necessário estar de acordo com as ideias de João Varela Gomes, a quem, nesse entretanto, morreram um filho e a sua mulher, para podermos sentir admiração por esta notável figura de grande rebelde, lutador denodado por “amanhãs” que dificilmente algum dia cantarão, mas que, talvez por isso, têm para muitos a beleza única das coisas inatingíveis.

João Varela Gomes morreu ontem. A equação é simples. O 25 de abril deve-lhe muito. Eu devo muito ao 25 de abril. Logo, eu devo muito a Varela Gomes. Portugal também.

segunda-feira, fevereiro 26, 2018

O dia seguinte





Aquele nosso governante aguentava muito pouco a bebida. Nessa noite, no bar do hotel, nesse país distante, a soma de uns whiskies ao vinho da refeição, que havia sido tomado no restaurante onde o embaixador português nos levara a jantar, com o “jetlag” da viagem a não ajudar, tudo ajudava a fazê-lo sair dos seus limites comportamentais da prudência.

A certo ponto, na conversa em que envolvia a meia dúzia de membros da delegação presentes, dei-me conta de que passara a tratar um deles por tu. Era alguém que ele conhecia há muito pouco tempo e de quem fazia uma substancial diferença em idade. O interlocutor, talvez surpreendido mas sentindo o terreno aberto, abandonou o modo formal de tratamento e passou a usar o primeiro nome do político. E, à medida que ganhava confiança, embora de forma sempre educada, foi-se permitindo atitudes de instantânea, logo imprudente, intimidade.

Eu assistia àquilo divertido, porque, conhecendo ambos melhor do que eles se conheciam entre si, pressentia como as coisas iam acabar. O nosso grupo manteve-se à conversa no bar, por mais algum tempo. Depois, sempre num ambiente de galhofa coletiva, fomos para os nossos quartos.

O dia seguinte ia começar cedo. Quando entrei na sala dos pequenos almoços do hotel, o nosso governante já estava sentado a uma mesa, de cara fechada. Saudei-o formalmente, sentei-me e, em silêncio, iniciei a refeição. O político manteve-se sem dizer uma palavra e eu, nesse tempo sem iPhones para ver as notícias matinais, concentrei-me num jornal qualquer que apanhara no balcão.

Foi então que deu entrada na sala o colega com quem o governante confraternizara ruidosamente na noite anterior. Conhecido “blagueur” e brincalhão, o recém-chegado vinha, claramente, no prolongamento do “mood” da noite anterior. Trazia mesmo umas piadas engatilhadas e logo se dirigiu ao político de modo informal.

Embora o dia estivesse límpido, pressenti que se ia levantar borrasca. E eu próprio me levantei, em busca de ovos mexidos com bacon.

Estava a meio dessa magna tarefa quando ouvi, vindo da nossa mesa, um tom de voz a subir. Olhei e vi que o governante deixara o seu mutismo e se dirigia com coreográfica rispidez ao meu colega de delegação, sob o olhar espantado de outros hóspedes. Era uma questão de serviço, um documento que faltava ou uma diligência que não fora feita, já não sei bem. Optei por ganhar algum tempo junto às vitualhas, para evitar a zona de conflito. Mas não foi preciso. Num ápice, o nosso político zarpou da mesa e saiu da sala.

Fui-me então sentar, como se nada tivesse ocorrido, mas vi que o meu colega estava ainda lívido da reprimenda recebida. “Tu viste-me este gajo! Agora deu-lhe para me desancar sobre uma coisa de nada. O tipo dormiu mal ou quê? Tu que o conheces melhor, por que diabo achas que ele reagiu assim?”. Estava siderado, chocado. “Ainda ontem, lembras-te, o gajo parecia um porreiraço, nos copos, lá no bar, e agora passa-se!”

Quando as pessoas não percebem, e se queremos ser úteis, temos de dizer-lhes. Eu disse: “Meu caro, conheces as regras do “one night stand”* ? Aplicam-se aqui. O que aconteceu ontem, ficou lá. Hoje, já é o dia seguinte”.

O meu colega era (e é) um tipo teimoso, mas rápido. Minutos depois, vi-o a tratar o político com a necessária distância. E a nossa visita àquele país acabou por correr muito bem, não achas, João?


(Nota: se acaso o leitor não souber o que é o “one night stand” deve ir ao Google)

Quem tem medo de Francisco Louçã?


Sinto por aí um certo mal-estar com a proeminência pública de Francisco Louçã, seja pela presença regular na comunicação social (imprensa, rádio e televisão), seja pelos lugares que ocupa no Banco de Portugal e no Conselho de Estado. Pena é que não se destaque, com igual nota, a sua atividade académica, em que, por um indiscutível mérito próprio, chegou ao topo da carreira letiva, com amplo reconhecimento dos seus pares. Louçã é, além disso, autor de uma bibliografia muito assinalável, também publicada no estrangeiro.

Esta atitude anti-Louçã - chamemos as coisas pelos nomes - apoia-se num pouco subliminar juízo de "ilegitimidade". Porque as ideias políticas de Louçã são minoritárias, dar-lhes relevo não tem o menor sentido e representa uma injustificável cedência de espaço ao Bloco de Esquerda - é esta a "lógica" do raciocínio.

Ora Louçã tem todo o direito de pensar o que pensa. Não concordo com muitas coisas que ele defende, sentir-me-ia mesmo pouco confortável se algumas das suas ideias fossem levadas à prática, nomeadamente nos temas europeus. Mas reconheço que o seu pensamento tem uma indiscutível racionalidade e coerência, mesmo quando ataca aquilo que eu próprio penso. E fá-lo com uma inteligência e uma preparação intelectual muito raras. 

Num país em que o pensamento económico dominante é um ecoado por um "coro" que papagueia uma linha quase uniforme, difundindo um "template" que surge vendido como verdade indiscutível nas salas das nossas universidades (isto sabe-se?), de que algum "jornalismo" económico é apenas um subproduto para "dummies", fico muito feliz pelo facto de poder existir, com visibilidade nacional, um contraditório, mediático e não só, feito por alguém com a estatura de Francisco Louçã.

domingo, fevereiro 25, 2018

O cônsul sem consolo



Notei que o homem estava agitado. Pensei, contudo, que esse nosso cônsul honorário, numa bem remota cidade num país do "Sul" do mundo, cujo nome agora esqueço, vivia apenas o nervosismo de estar a assistir à visita de uma figura portuguesa de certo destaque, que eu acompanhava.

A certo passo, puxou-me à parte e queixou-se:

- O nosso embaixador podia ter-me avisado com mais antecedência. Só ontem é que me disseram que vinham cá dormir. Não tive tempo para preparar nada de jeito.

Sosseguei o homem e disse-lhe que estava tudo a correr muito bem, desde o encontro com as autoridades locais até à receção com os escassos portugueses ali residentes. Só o bizarro hotel, com as banheiras cheias mas sem água corrente nas torneiras, é que deixava muito a desejar. Mas, que podia ele fazer!, era o único alojamento disponível na cidade.

O nosso cônsul honorário, no entanto, continuava inconformado. E insistia:

- É que eu podia ter preparado umas coisas bem mais agradáveis, se tivesse sabido da visita com tempo.

Expliquei-lhe que a decisão da deslocação fora tomada num prazo muito curto, procurando acalmá-lo:

- Mas está tudo impecável! O que é que o meu amigo podia ter feito mais?

- Ó senhor doutor! Com tempo, eu tinha montado lá em casa um programa "de truz" para os senhores, com umas "garinas" magníficas, tudo "material" garantido e sem problemas. Mas não me avisaram! Isto não se faz!

De facto...

sábado, fevereiro 24, 2018

ACNUP


Sabe o leitor o que foi a ACNUP? 

Hoje, olhando papelada velha, surgiu-me um “apontamento” oficial, com timbre do Ministério dos Negócios Estrangeiros, datado de 14 de novembro de 1978. Nele eu dava conta aos meus chefes, correspondendo a um “despacho” superior, de que integrava a Comissão Organizadora da Associação para a Cooperação com as Nações Unidas em Portugal (ACNUP).

A Associação destinava-se a contribuir para um melhor conhecimento, no nosso país, dos fins e atividades das Nações Unidas. A ONU havia sido uma organização global ferozmente diabilizada pela ditadura portuguesa (que caíra apenas três anos antes), por ser a principal linha da frente diplomática no combate ao colonialismo. E era manifesto que não haviam sido feitos os necessários esforços para contrariar o efeito disso no imaginário público nacional. A ACNUP nascia para isso mesmo, para dar visibilidade positiva à ONU.

(No ano seguinte, em 1979, fui viver para a Noruega e tive de desligar-me da organização, de que me mantive associado por uns anos.)

Anoto os nomes dessa Comissão Organizadora, que eu integrava: Silva Costa, adjunto do presidente da República, José Cardoso Pires, escritor, os professores universitários Maria de Lurdes Belchior e Jacinto do Prado Coelho, os gestores empresariais José Campelo e Carlos Eurico da Costa, o diretor do “Diário Popular”, Jacinto Batista, e o técnico de comunicação social, João Palmeiro. Com o tempo, viriam a integrar os primeiros corpos diretivos da ACNUP o padre (depois cardeal) José Policarpo, o dr. Rui Machete, o comandante da Marinha Luís Costa Correia e o embaixador António Costa Lobo. Fui, aliás, o principal relator dos estatutos da ACNUP.

O MNE, como agora vejo pela nota que hoje reencontrei, não gostou que eu não tivesse pedido autorização para integrar a ACNUP. E fico agora a “conhecer-me” melhor, à época, ao ler o que então enviei “à consideração superior”: “A ausência de qualquer limitação, implícita ou explícita, colocada neste campo pelo Regulamento do MNE - que, aliás, a existir, seria naturalmente derrogada pela Constituição da República - levou o signatário, por uma questão de mera lealdade funcional, a comunicar apenas a sua filiação na ACNUP mas, igualmente, a prescindir de qualquer pedido de autorização para assim proceder”.

Eu tinha razão, quanto à questão de fundo. Mas, olhando em perspetiva, com apenas três anos de “casa”, tinha uma “grande lata” e algum excesso de frontalidade no modo, algo arrogante, como abordava o problema. Que paciência que os meus chefes, no MNE de então, tiveram para comigo!

A cunha do chinês



Anda por aí um debate sobre a validade dos diplomas em medicina chinesa. Não me meto nisso: sei tanto disso ... como de medicina chinesa! Mas sinto-me tentado a contar uma pequena história pessoal. 

Um dia, quando vivia em Nova Iorque, apareceu-me uma dor terrível por todo um braço. Afetava-me o sono e o trabalho. Sem a menor dúvida, fora provocada por um esforço físico que, insensatamente, havia feito de forma repetida, uns dias antes. 

Num jantar em casa do embaixador da China nas Nações Unidas, o assunto veio à baila e este perguntou-me: "Queres experimentar o melhor médico chinês de Nova Iorque? Tenho a certeza de que a acumpunctura te tira essa dor, em pouco tempo". Eu sabia da eficácia da acumpunctura em vários casos dessa natureza e fiquei curioso.

Poucos dias depois, lá estava eu a entrar num consultório manhoso, que tinha pouco de médico, pelo menos na boa caricatura que eu deles faço. Lembro-me bem de que era na rua 24, a dois passos do Flatiron - o célebre prédio em forma cunha, o mais antigo (1902) "arranha-céus" de Nova Iorque (de que fica aqui uma imagem, talvez a despropósito). Verdade seja que também fora por uma "cunha" do embaixador chinês que eu ali fora atendido com rapidez...

O médico era um velhote simpático, que me pareceu competente, começando por ser de poucas falas. Fez-me os necessários testes e, no fim, concluiu: "Creio que com umas dez sessões de acumpunctura isso fica resolvido". E fomos ambos olhar para as nossas agendas.

Por esses tempos, a minha vida, em Nova Iorque, era um perfeito inferno, com reuniões de manhã cedo até à noite, seguidas de imensos jantares com uma pesada componente de trabalho. Conseguir disponibilidade para me libertar, por algumas horas, dos meus compromissos nas Nações Unidas, para ter essas dez sessões de acumpunctura, numa zona bem distante do meu escritório e muito mais de minha casa, era algo que me iria desorganizar por completo o quotidiano, tanto mais que as horas do médico chinês eram escassas e muito limitadas na sua flexibilidade. 

Ao ver a minha atrapalhação, o homem, já simpático, saiu-se subitamente com esta: "Há uma maneira de talvez conseguir resolver isso de uma só vez!" Olhei para ele, surpreendido. A surpresa aumentou quando o ouvi dizer: "Podemos mesmo fazer isso já!". Eu devia estar a arregalar cada vez mais os olhos, quando ele me disse: "Quer fazer uma infiltração, uma injeção? Provavelmente resolve o problema."

Resolveu, de facto. Mas, a partir daquele instante, a pouca "fezada" que eu sempre tive nas medicinas não convencionais esvaiu-se ainda mais. Até hoje.

ps - mudei a palavra: escreve-se “acupunctura”

sexta-feira, fevereiro 23, 2018

O jeito



A cidade era uma capital africana, de uma língua muito comum à minha geração, num país onde os tempos de conflito alternavam com os de acalmia política. Estávamos em um desses últimos momentos, pelo que o governante português decidiu passar por lá, num périplo que fazia por África. Era importante encontrar a pequena comunidade portuguesa, ver as oportunidades de negócio para as nossas empresas, dar talvez um empurrão a um incipiente projeto de promoção do ensino do Português. Às vezes, há que fazer algo por um nosso cidadão há muito detido, outras vezes tentar desbloquear um contrato preso nas malhas burocráticas, as mais das ocasiões tentar garantir um pagamento em atraso a algum exportador luso. E coisas assim, porque a agenda raramente varia muito.

Ele era o nosso cônsul honorário local, porque por ali não se justificava haver uma embaixada residente. Chamemos-lhe “Fonseca”. Era ativo como só alguns desses cônsules são - infelizmente, nem todos, muito longe disso. Empresário, tinha vindo, em 1975, de uma nossa ex-colónia em convulsão. Teve sucesso, ganhou dinheiro, conhecia meio mundo local, dava-se com os políticos que subiam e com os que desciam nas crises, porque a vida é como os alcatruzes da nora e há que permanecer na mó de cima. Para além do “penacho” de representar o país, sentia-se bem o seu amor a Portugal.

O nosso homem - que, infelizmente, já lá vai, há bastantes anos - era, contudo, uma “pérola” rara, no universo dos nossos cônsules honorários. Nesse dia do final dos anos 80, à nossa chegada, lá estava ele, lado a lado com os dignitários locais, que tuteava, gente com quem, muito provavelmente, trocara favores em tempos difíceis. E ali estava a recompensa: o estatuto, a bandeira no carro, a confiança. O Fonseca chamava ministros a sua casa, como viémos a ter o ensejo de observar. E, maravilha das maravilhas!, o Fonseca tinha uma chave da sala VIP do aeroporto da capital, não tendo aí de esperar à porta, na dependência dos inconfiáveis serviços locais.  

O Fonseca era, além do mais, um homem muito generoso. Organizou, em honra do governante português, um jantar em sua casa, com tudo o que tinha de melhor: mariscos à discrição, whiskies velhos, vinhos sonantes de anos preciosos. Convidou figuras locais e até um governante de um país de língua portuguesa, de passagem. Éramos algumas dezenas de pessoas, em mesas redondas, com uma extrema abundância de vitualhas.

A casa era estranha, para África. O dia estava ainda luminoso, mas não o usufruíamos. A imensa sala não tinha janelas para o exterior, tudo se passava sob luz artificial, como num cenário. Havia sofás de gosto bizarro e cadeiras rústicas portuguesas, misturadas como um “sideboard” contemporâneo, metalizado. O Fonseca, atento e cuidado ao extremo, circulava entre nós, expeditando os criados, preocupado com o que pudesse faltar. 

Soubemos que vivia só. A família estava, há muito, “já” em Portugal. Desde a nossa entrada que notáramos a presença de uma senhora, portuguesa, que o Fonseca nos apresentara como “Madame Ramos”. Andava entre a cozinha e a sala, orientando o pessoal.

A elegância e a beleza da senhora não haviam deixado indiferentes os membros da nossa delegação. Embora de forma respeitosa, os olhares convergiam sobre “Madame Ramos”, que era uns bons trinta anos mais nova que o Fonseca, sempre que ela assomava à sala. O Fonseca, a certo passo, achou ter o dever de explicar: “Esta senhora é viúva de um português. Tenho-a ajudado depois da morte do marido e tem-me dado muito jeito”. Senti um sorriso irónico perpassar pela cara de alguns membros da delegação, mas o Fonseca fez de conta que não tinha percebido.

Houve o jantar, sem a “Madame Ramos” presente nas mesas, muito provavelmente orientando as coisas da cozinha. À saída, connosco bem comidos e bebidos, e muito bem dispostos, voltei-me para o Fonseca e disse, com um sorriso indefinido: “Agradeça por nós o trabalho da “Madame Ramos” “. Ao Fonseca, que estava numa muito boa onda pelo êxito do evento, saiu-lhe então esta: “Fantástica, não é?”. Soltou-se-me o comentário machista: “Oh! Se é! E como é que o meu amigo disse? Dá-lhe “muito jeito”, não é?”. O Fonseca rebentou numa gargalhada: “O doutor sabe-a toda!”. 

Saímos para a noite quente africana. Já dentro de um dos carros, prestes a partir para o hotel, abri o vidro para me despedir do Fonseca. Este, cúmplice, com um imenso sorriso, fez-me um sinal de “ótimo” com os dedos de uma mão, acrescentando: “De primeira, doutor, de primeira!”. Um pouco atrás, modesta, entre portas, sem ter tido o ensejo de se despedir de nós, surgiu o vulto elegante de “Madame Ramos”.

Uma oportunidade


Às vezes, dou por mim a surpreender-me com a minha própria ingenuidade. E, muito provavelmente, isso vai acontecer de novo. Mas prefiro alimentar uma esperança do que abdicar por cinismo.

Com particular incidência na última década, temos vindo a assistir, em Portugal, a um crescendo de tensão na verbalização do confronto político. Uma certa elegância, que estava longe de ser incompatível com frontalidade e eficácia, desapareceu de grande parte do debate político, com o parlamento a ser palco regular de diatribes entre as bancadas e entre estas e os governos, na utilização de uma linguagem que frequentemente roça o soez.

A manifestação de um mínimo de consideração democrática pelos adversários praticamente desapareceu – e essa é a mensagem que passa para quem, de fora, observa o comportamento dos diversos atores públicos. Nenhum partido está inocente neste terreno, onde o argumento político-ideológico é, quase todos os dias, substituído por insultos de caráter e por manifestações de falta de respeito, que só uma cobardia coletiva impede que acabem nuns pares de honrosas chapadas.

É triste constatar que a desejável renovação etária, em especial na vida parlamentar, acabou por trazer à tona algumas figuras de uma geração desbragada no discurso, débil na educação e na observância dos mínimos de civilidade. E resulta claro que as lideranças partidárias são abertos cúmplices dessa atitude, utilizando a agressividade desses protagonistas de segunda linha como tropa de choque verbal. A imagem que a opinião pública absorve desse ambiente é que agora já "vale tudo". Se os agentes políticos estão convencidos de que baixar a linguagem ao nível do populismo os prestigia, estão muito enganados: a sua imagem é cada vez pior.

Para isto contribui imenso uma situação de excecionalidade de que, em Portugal, não se tem noção, mas que, curiosamente é muito evidente para os estrangeiros que nos visitam. É que impera por cá uma hiper-mediatização da vida política, com uma cansativa presença dos atores partidários nos écrans e nas colunas dos jornais, explorando obsessivamente todos os pretextos para explorar a crispação. Com o futebol e os “desastres”, a política forma a gloriosa “troika” de conforto dos alinhamentos noticiosos, que se emulam e copiam entre si, alimentando-se de sectarismos e de visões confrontacionais. É barato, cria polémicas e sopra audiências.

A oportunidade e a esperança de que falei no início deste texto é muito simples: António Costa e Rui Rio serão capazes de firmar entre si um acordo de cavalheiros que regule os limites de agressividade dos seus “peões de brega”, reduzindo o terreno da sua agressividade verbal? O país, seguramente, agradeceria. A comunicação social não.

quinta-feira, fevereiro 22, 2018

Legitimidades


Fernando Negrão teve um resultado medíocre na votação para líder da bancada parlamentar. Outra coisa não seria de esperar. Os deputados social-democratas que lá se sentam foram escolhido por Passos Coelho e eram, na sua esmagadora maioria, fiéis a Luís Montenegro (que, talvez não por acaso, se safou da liderança do grupo em tempo útil, obrigando agora um seu “genérico” a sair pela direita baixa), que já se posiciona para afrontar Rui Rio, ao primeiro despiste deste.

De todo o modo, vale a pena perguntar: quem tem mais legitimidade? A nova liderança de Rui Rio, de que Negrão faz parte, votada em eleições diretas pelos militantes do partido, com o resultado sufragado em congresso, ou deputados eleitos há mais de dois anos, num contexto político muito diferente, que foram perdendo pelo caminho as suas “cabeças de cartaz”, Passos Coelho e Montenegro? Claro que Negrão não os representa! Eles são, maioritariamente, a setor do partido que foi derrotado nas diretas, e que também não conseguiu virar o congresso contra Rio. A conclusão é simples: o grupo parlamentar do PSD que está em S. Bento não representa, de facto, o partido que votou maioritariamente em Rio.

Os deputados que hoje ignoraram ou provocaram Negrão (e, por seu intermédio, Rui Rio) já perceberam que têm de lutar para que o novo líder não chegue às eleições legislativas de 2019. Querem que ele caia antes, com um “levantamento” organizado, tendo por pretexto um eventual mau resultado nas eleições regionais ou, com maior probabilidade, nas eleições europeias. 

Mas por que diabo não esperam esses contestatário pelas legislativas onde, muito provavelmente, a “tareia” do PS no PSD irá ser ainda maior? Por uma razão muito simples: é que, nessa altura, as listas do PSD que irão a votos estarão naturalmente já repletas dos novos fiéis de Rio, muito dos quais não são hoje deputados.

É que aqueles que, na votação de hoje, humilharam Negrão, e de que este e Rio conhecem muito bem os nomes, sabem que, se for Rio a organizar as próximas listas de deputados, vão perder o emprego, pagando com língua de palmo o seu gesto de hoje. E Negrão lá estará para lho lembrar, de dedo apontado para cada um deles. Rio até pode vir a perder a presidência, em face de um mau resultado nas legislativas de 2019. E Montenegro pode mesmo vir a assumir o seu lugar. Mas, neste caso, o grupo parlamentar com que "contará" em S. Bento será formado maioritariamente por gente de Rio. As vinganças servem-se frias. E as vichyssoises também, lembrará alguém.

Isto vai ter muita graça!

A chave do frio


Uma última historieta sobre a visita presidencial a S. Tomé, em 1984.

A chegada da comitiva a São Tomé, na tarde desse dia, fora um tanto caótica. Mas, finalmente, lá foi possível garantir que os membros da delegação presidencial estavam devidamente alojados, na escassíssima rede hoteleira então existente. A boa vontade das autoridades locais, desejosas de prestar o melhor acolhimento possível à primeira visita de um presidente português depois da independência do país, fora fantástica. Melhor era impossível!

Como é das regras deste tipo de visitas, o chefe de Estado estrangeiro oferece, num dos dias, um jantar ao seu homólogo do país. Na ausência de um “cateter” que, em São Tomé, pudesse organizar essa refeição, foi necessário trazer quase tudo de Lisboa, o que era facilitado pela circunstância de ser um voo especial da TAP. Combinou-se que esse material seria guardado numa câmara frigorífica existente na cidade. 

A noite desse primeiro dia já caía, e preparávamo-nos para a intensa jornada que ia seguir-se, quando, esbaforido, entrou de roldão pela residência do embaixador um elemento da empresa responsável pelo jantar que teria lugar dois dias depois: “Desapareceu tudo!”.

Ficámos compreensivelmente alarmados. Se isso acontecesse, seria o caos! O homem, lívido, explicou-nos que dois veículos de carga tinham vistos a sair do aeroporto com o material e que ninguém sabia do paradeiro de tudo aquilo com que ia ser preparado o nosso jantar de Estado.

Dispus-me a esclarecer as coisas. O Fernando Tavares de Carvalho, diplomata colocado na embaixada, ainda sugeriu que só se apurasse o assunto logo de manhã. Mas eu, que tinha ido para ali deslocado de Luanda para garantir uma boa preparação da visita, fiquei nervoso com o potencial cenário de “catástrofe”. Chamei o funcionário da embaixada com quem tinha tratado a questão da câmara frigorífica e, juntamente com o Fernando, fomos tentar ver se o material estava lá ou não.

Só que o serviço frigorífico estava, a essa hora, naturalmente encerrado, pelo que era necessário encontrar, previamente, o responsável pelo acesso ao edifício, um tal Mané, o homem que tinha “a chave do frio”, na expressão forte do funcionário da embaixada. E lá fomos, por vielas esconsas de um bairro muito pobre, na periferia da cidade de São Tomé, comigo ao volante, perguntando, de esquina em esquina, onde ficava a residência do Mané. 

Deviam ser umas dez da noite quando descortinámos a casa que nos foi indicada, um edifício térreo, muito simples. Bateu-se à porta, surgiu uma senhora avantajada. Era a mulher do Mané. Simpaticamente, quase pedindo desculpa, disse-nos que ele saíra e que não sabia quando iria regressar. “Pode vir tarde!”, alertou-nos. 

Quando a porta se fechou, o Fernando, o funcionário da embaixada e eu olhámo-nos, impotentes. E já regressávamos ao carro, dispostos a só esclarecer as nossas dúvidas na manhã seguinte, quando um vizinho, com um largo sorriso de dentes brancos a iluminar-lhe o negro da cara, nos disse, em tom baixo: “Eu sei onde o Mané está. Não é longe.”

Pronto. Tínhamos de ir à busca do Mané, se calhar a um bar das redondezas, onde ele fora beber um copo. Excelente! Onde era? “É em casa da amiga...” 

Olá! A coisa tornava-se mais complicada. E delicada! O vizinho prontificou-se a ir ele próprio avisar o Mané do que pretendíamos, devendo nós seguir para o edifício onde se situava a câmara frigorífica, aguardando aí por ele. Senti-me constrangido: arruinar a “escapadinha” do Mané não me deixava nada feliz, devo confessar (sei que é politicamente incorreto este meu sentimento, mas é a pura verdade). Mas tinha de ser assim. E lá foi o vizinho foi à cata do Mané, connosco a avançar para o “frio”.

Aí uns vinte minutos depois, o Mané surgiu, de cara fechada. Ainda hesitei em dar-lhe umas palavras de conforto pela interrupção causada à sua vida íntima clandestina, mas “fiz de conta” de que nada sabíamos.

“For the record”, constatámos que estava tudo bem arrumado, fora a TAP quem cuidara de armazenar as vitualhas para a jantarada, juntamente com aquelas caixas metálicas prateadas em que trazia uma imensidão das suas refeições, porque Eanes iria ainda de São Tomé para o Zaire e para o Congo.

À despedida, “oleámos” o Mané com uma gratificação pelo trabalho extra que tinha tido e, no carro, rimo-nos a bom rir com a situação criada. Com uma dúvida ficámos para sempre: o Mané regressaria do “frio” à amiga ou a casa? Nunca saberemos.

A memória de Batepá


Marcelo Rebelo de Sousa teve ontem um gesto de grande coragem política. E pessoal. Ao deslocar-se ao monumento que, em São Tomé, honra os mortos do massacre de Batepá.

Tratou-se de um ato criminoso, cometido em 1953 pela administração colonial portuguesa, sob a responsabilidade dessa figura sinistra que se chamou Carlos Gorgulho - mas com a cumplicidade de muitos outros que a nossa História deve anotar com vergonha. Um milhar de pessoas perdeu a vida nessa terrível repressão feita para mobilizar trabalho forçado. Houve mortos por asfixia em celas onde foram encerrados a esmo. Um nome português ficou honrado na denúncia desse ato: o advogado Manuel João da Palma Carlos.

O massacre de Batepá equipara-se bem, na sua alarve violência, ao de Pidgiguiti, na Guiné, ao da Baixa do Cassange, em Angola, aos de Mueda e Wiriamu, em Moçambique.

A Marcelo Rebelo de Sousa, que na sua juventude não é conhecido por ter tido uma postura anti-colonial, cujo pai foi ministro do Ultramar e governador de uma colónia, há que reconhecer um imenso sentido de Estado ao saber ter este gesto. 

O que escrevi até agora é o preâmbulo para um episódio que quero revelar, pela primeira vez.

Na visita que o presidente Ramalho Eanes fez a S. Tomé, em março de 1984, que me competiu preparar, a parte santomense tinha organizado um programa que incluia uma deslocação a uma fortaleza onde se acumulavam, sem o menor cuidado, estátuas do tempo colonial, retratos de figuras portuguesas de Estado e uma exposição fotográfica sobre o massacre de Batepá, com uma determinada legendagem. Nos dias anteriores ao da chegada do nosso presidente, fiz uma volta por todos os pontos desse programa e, ao chegar à fortaleza, concluí que nem todas as coisas se apresentavam aí com uma dignidade compatível com aquela que seria a primeira deslocação de um chefe de Estado do Portugal democrático a São Tomé. No pós-25 de abril, Portugal não rejeita a sua responsabilidade pelos crimes do período colonial, mas não se pode associar oficialmente à sua evocação em moldes que afetem o respeito que lhe é devido como Estado democrático, que fez já o devido "exorcismo" desse tempo. A reação oficial santomense às minhas reservas, ratificadas pelo então embaixador português em São Tomé, Francisco Quevedo Crespo, não foi a melhor, pelo deixámos a decisão final para a delegação presidencial. A qual viria a confirmar a minha perceção. E, se bem me recordo, Eanes não foi aos locais que eu tinha entendido por mais problemáticos. 

Nunca tinha contado esta história. Faço-o hoje, ao expressar a minha grande satisfação pelo facto de um chefe de Estado português ter podido honrar a memória dos mortos de Batepá, mas de uma forma condigna. Agradecendo a Marcelo Rebelo de Sousa tê-lo feito, em nome de Portugal.

quarta-feira, fevereiro 21, 2018

O Brexit e a Segurança e Defesa da Europa


A convite do Instituto de Defesa Nacional, tive ontem o gosto de apresentar, a par de um colega espanhol, aos auditores de Defesa Nacional de Portugal e Espanha, numa sessão em videoconferência que envolveu Lisboa, Madrid e Porto, a minha perspetiva sobre os impactos potenciais do Brexit nos equilíbrios e perspetivas de evolução futura da segurança e defesa da Europa. 

Este é um tema muito interessante, e cujo tratamento pouco ainda tem evoluído, no dédalo negocial que é o Brexit, e que também se liga aos equilíbrios no seio da Nato e às relações com os Estados Unidos e que implica uma atenção às diferentes culturas de segurança, por virtude da diferenciada posição geopolítica, que atravessam a própria União Europeia. 

Dei algum destaque às propostas da primeira-ministra Theresa May neste domínio, apresentadas a passada semana à Conferência de Segurança de Munique, bem como às “respostas” de Jean-Claude Juncker. Mas o verdadeiro debate ainda não começou.

Preservando a reserva deste tipo de exercícios, quero apenas notar que a perspetiva global espanhola não parece afastar-se muito da que Portugal tem vindo a defender neste contexto, não obstante, no que toca à atitude face ao Reino Unido, as sensibilidades de ambos os países partam de posições de base algo diferentes.

O inverso de Caná


O presidente da República está de visita a S. Tomé. Em 1984, coube-me a mim a tarefa de preparar a visita do presidente Ramalho Eanes a esse país. (Anos mais tarde, também por ali andei a organizar uma visita do primeiro-ministro Cavaco Silva).

Estava então colocado em Angola e, a pedido do embaixador Quevedo Crespo, que chefiava a missão em S. Tomé, cheguei uns dias antes, para ajudar a preparar os eventos. 

A capacidade logística santomense não estava, à epoca, à altura mínima de uma operação daquela envergadura, que incluía transporte, alojamento e acolhimento, por alguns dias, de um significativo número de pessoas. Inaugurava-se então a extensão da pista do aeroporto de S. Tomé e o avião da TAP transportava uma larga comitiva, que aliás sairia dali para Kinshasa, no termo da visita.

A nossa pequena Embaixada em S. Tomé considerava que não tinha massa crítica suficiente para arcar com a preparação organizativa. Ora, três anos antes, eu tinha tido a meu cargo, na Noruega, a preparação de uma outra visita de Estado, também do presidente Eanes. Daí, talvez, a ideia da minha convocatória. Porém, as diferenças de meios eram do dia para a noite, como pude constatar desde o primeiro momento. E a tarefa tornou-se quase um pesadelo, devo hoje confessar.

Por um daqueles milagres que só as redes da lusofonia proporcionam, fui surpreendido com o facto do então chefe de protocolo santomense ser um velho amigo meu, infelizmente já falecido - o Eurico Espírito Santo, colega de noitadas no Porto, nos anos 60, figura popular na academia portuense e afamado jogador de basquetebol do CDUP. Sem a sua ajuda e sem o seu espírito de "desenrascanço", algumas coisas não teriam sido possíveis, nessa complexa visita.

Desde logo, confrontámo-nos com o facto de, poucas horas antes do banquete oficial que o nosso Presidente daria ao Presidente Pinto da Costa (para as novas gerações: trata-se de outra pessoa daquela que estão a pensar...), não haver disponibilidade de talheres. Dado o alarme, e num carro que um antigo colega de liceu, residente em S. Tomé, tivera a amabilidade de me emprestar, lá fui com o Eurico Espírito Santo, munido de uma "requisição oficial" da Presidência da República santomense, buscar, à famosa e vetusta Pousada de S. Tomé, os talheres necessários. Recordo ter subscrito uma declaração, em que me responsabilizava pessoalmente pela respectiva devolução. Dou-me conta de que não controlei isso depois...

O jantar, num espaço ao ar livre de uma antiga roça, decorreu com a normalidade possível nestas circunstâncias. Porém, a certa altura do repasto, detetei alguma agitação na tenda presidencial, onde os dois Presidentes e alguns altos dignitários se sentavam, naquele modelo de mesa tipo "última ceia", voltada para o "povo", que é um vício arraigado de certos protocolos. 

Por uns instantes, exausto que estava de dias infernais de trabalho, tentei ignorar a movimentação, continuando a conversa com o João Paulo Guerra e o meu colega Castro Brandão, que recordo como companheiros de mesa. Porém, ao final de uns minutos, ao ver a cara afogueada e a movimentação preocupada da assessora do presidente, Ana Gomes, acabei por ir ver o assunto de perto.

O que se passara? O nosso Presidente pediu, a certa altura, um pouco mais de vinho, para, sobre a respectiva qualidade, trocar impressões com o seu homólogo local. E trouxeram-lhe... água! Insistiu e voltou a vir água! Chamados os responsáveis pela mesa presidencial, constatou-se, no "backstage", que já não havia mais vinho. E estávamos ainda a meio do jantar!

Ora acontecera, bem antes do jantar, que eu detectara, na coreografia do pouco fiável grupo de empregados que tomava conta do "catering", uma multiplicidade de olhares, quase lúbricos, fixados sobre as caixas que estavam a ser abertas, do excelente vinho que tinha vindo com a nossa comitiva. Algo me disse, então, que seria avisado pôr de parte algumas caixas, o que fiz na mala do carro que estava a usar. O que se estava a passar justificou, assim, em pleno, a minha prudência. 

Em S. Tomé, foi ver para crer: ao contrário do bíblico milagre das bodas de Caná, o vinho havia-se transformado em água...

Perante a "crise", lá fui, com alguém da Embaixada, buscar as garrafas de reserva ao carro, as quais ficaram, a partir de então, sob a tutela ajuramentada de alguém de presumível confiança. E - revelo agora "para a História"! - levei discretamente comigo duas garrafas desse excelente vinho para a minha própria mesa! (Não têm nada que agradecer, João Paulo Guerra e Fernando Castro Brandão!)

Os Presidentes puderam regressar, finalmente, já com o necessário apoio líquido substantivo, à elevada temática etílica para a qual derivara a conversa de Estado.

Passaram 34 anos. Só posso desejar que nada de similar se repita na animada visita do presidente Marcelo Rebelo de Sousa.

Sporting prejudicado


Acho muito estranha a reação da comunicação social no tocante ao jogo em Tondela.

É evidente que houve uma flagrante irregularidade! É óbvio que o árbitro foi parcial, ao prolongar o tempo de jogo de forma desproporcionada!

Mas não pelas razões que todos adiantaram. Ficou claro que o árbitro foi “caseiro”, que procurou proteger o Tondela, dar-lhe tempo para romper o empate e conseguir ainda marcar um golo, derrotar o Sporting e ficar com os três pontos.

Só que as coisas não correram como o árbitro desejava e acabou por ser o Sporting a trocar-lhe as voltas e a ganhar o jogo.

Nestas condições, se há algum clube que se pode e deve queixar - e muito! - esse clube é o Sporting Clube de Portugal. Sejamos claros e justos!

Não entendo o silêncio de Bruno de Carvalho. Estará com medo?

terça-feira, fevereiro 20, 2018

Modéstia transmontana


Nós, transmontanos, raramente dizemos em público que o somos: é que a probabilidade de estar presente uma pessoa que o não seja acaba por ser elevada. E essa pessoa ficaria naturalmente humilhada. Por o não ser, claro!

“Na cadeira de um gentleman”



Participei ontem numa homenagem a um homem bom. É o meu barbeiro. Isso mesmo! Joaquim Pinto é um profissional de barbearia de quem sou cliente há quatro décadas. E amigo. Ele tem dez mais de profissão e acaba de ser publicada a sua fotobiografia.

Ontem, no Apolo 70, onde ele oficia, várias dezenas de amigos, muitas figuras conhecidas da sociedade portuguesa que são seus clientes, estiveram por ali a dar-lhe um abraço: do mundo empresarial à advocacia, da política à diplomacia, do jornalismo às universidades, etc. 

Como prefaciador do volume, coube-me fazer a apresentação da edição e falar da pessoa que ela consagra. Referi que o espetro de clientes/amigos de Joaquim Pinto é tal que começa a gerar a vontade de criar uma Confraria que os junte. Avancei mesmo uma proposta de nome, com ressonância temática, que a sala me pareceu acolher com agrado: a “Caspa” (Confraria dos Amigos do Senhor Pinto do Apolo). E também sugeri que o blogue que Joaquim Pinto alimenta (porque este é um cabeleireiro de homens que tem um blogue!), onde estão ilustradas as peças do seu “Museu do Barbeiro”, inaugurado no mesmo local há quatro anos e que recolhe uma notável coleção de objetos históricos da sua arte, deixasse de se chamar “Pinto’s Cabeleireiros” e passasse a ter o nome mais sonante e também “capilar”, de “Pêlo sim, pêlo não”...

Mais a sério, deixo aqui o texto do prefácio do livro “Joaquim Pinto - o barbeiro do poder”, de Paulo António Monteiro, que intitulei “Na cadeira de um gentleman”:

“O termo britânico “gentleman” comporta duas palavras: “gentle”, que pode traduzir-se por “gentil” e “man”, de homem. Juntas, significam “senhor”, no sentido mais nobre do conceito. O meu amigo Joaquim Pinto é um “gentleman”, um “senhor”, nesse mesmo e completo sentido, porque tem em si a educação e a gentileza simples de quem sabe estar e a postura de dignidade de quem faz da vida um acto de atenção natural aos outros.

Conheci-o há quase quatro décadas. Comecei como cliente de um seu colaborador e, com a morte deste, passei, há mais de 30 anos, para as suas mãos profissionais. Por muito tempo, por viver longe, no estrangeiro, não o visitava com a regularidade dos clientes vulgares. O meu ritmo era muito errático. Às vezes telefonava-lhe a marcar hora, do outro lado do mundo, para garantir “slot” na minha passagem imediata, quase sempre apressada e cheia de compromissos, por Lisboa. 

Não foram poucas as vezes em que, durante esses tempos lá fora, tive de explicar, aos amigos e à família, que o comprimento, por vezes exagerado, do meu cabelo não era uma opção estética, uma espécie de “beatlemania” tardia e grisalha, mas apenas a consequência de estar, pacientemente, a aguardar por uma deslocação lisboeta ao meu “barbeiro” - eu sei que já quase ninguém “faz a barba”, mas eu ainda prefiro o conceito ao de “cabeleireiro de homens”. 

É que nunca conheci alguém no mundo que soubesse cortar o meu cabelo como Joaquim Pinto, com quem mantenho códigos acertados sobre o grau desejável de tosquia, desenhada esta, às vezes, em função de certos compromissos imediatamente subsequentes.

Passei pela mão de barbeiros islandeses, franceses, noruegueses, americanos, brasileiros, austríacos, angolanos, romenos, escoceses e até um turco – mas nunca, com nenhum, consegui estabelecer aquela relação de cumplicidade que permite ter a garantia de que quem nos trata do cabelo sabe exatamente o que pretendemos.

Dentre as várias alegrias que o regresso definitivo a Portugal me trouxe conta-se a possibilidade de, com serenidade e previsão, poder dar uma “saltada ao barbeiro”, quando de tal necessito. E, ali chegado, sinto-me em casa. Para mim, “ir ao barbeiro”, em Lisboa, tornou-se já, não numa obrigação ritual, mas num ato social de convívio que cumpro com prazer, de partilha de conversas soltas, sobre as nossas famílias, sobre a vida, com referências, da parte dele sempre simpáticas, a alguns conhecidos desse informal “clube dos clientes de Joaquim Pinto”. 

Quantas vezes, em conversas com pessoas que cruzo profissional ou socialmente, ao vir à baila o nome do nosso “barbeiro”, damos conta de pertencermos ambos a esse seleto “clube”. E, desde logo, cria-se ali uma intimidade acrescida, estabelece-se um laço de união, feito de inevitáveis elogios à figura discreta e educada em cujas mãos profissionais ambos nos entregamos. Até lá por fora, pelo mundo, reforcei relações com base nesse vínculo comum – de que o exemplo mais flagrante foi o saudoso embaixador brasileiro, Dário Castro Alves, em cuja homenagem, que lhe promovi na nossa embaixada em Brasília, o nome do nosso comum amigo Joaquim Pinto foi citado.

É sabido que Joaquim Pinto tem um muito alargado “carnet” de clientes, com figuras variadas, dos negócios à política, da cultura à diplomacia. Porém – o que é notável, para uma profissão onde a conversa é a “música de fundo” do ato profissional – nunca a sua boca se abre para a menor indiscrição, o que a nós próprios garante a liberdade para com eles nos “confessarmos”, aliás como se faz com os amigos, qualidade em que ele se transformou.

Há uns tempos, fiz-lhe uma surpresa. O município da sua terra natal, Resende, organizou uma homenagem e honrou-o com a sua mais alta distinção. Eu, que por acaso estava a umas dezenas de quilómetros dali, tive o grande gosto de, sem o avisar previamente, ir assistir ao ato. E foi muito interessante poder observar o carinho e o respeito que a Joaquim Pinto e à sua Família eram votados pelas pessoas da terra, o reconhecimento do seu prestígio junto das autoridades e pessoal locais. Afinal, não é só em Lisboa que Joaquim Pinto é estimado. 

O livro que o leitor tem perante si fala por si próprio, sem quase necessitar de prefácio. Aqui está um percurso de vida, subida a pulso, graças a trabalho, dedicação e empenhamento. Nessa vida, fui testemunha de tempos menos fáceis, de contrariedades, de desilusões, para não utilizar termos mais fortes. Mas sempre vi Joaquim Pinto reagir com serenidade, com estofo, com grandeza e com o imenso sentido profissional que é o seu. Esse é, aliás, a chave do seu sucesso: trabalho, seriedade e um saber-estar muito raro – raro mas comum nos homens de bem e que se sentem de bem com a vida. 

Este livro é a montra dessa mesma vida - do homem de família ao profissional ilustre. Aqui fica evidenciado também o empenhamento na divulgação da sua arte, que o levou à constituição de um interessante património museológico, bem como à alimentação de um blogue profissional, ambos com apreciável sucesso. Aqui se juntam testemunhos de amigos, embora apenas de um punhado dos muitos que ele tem, que assim quiseram dar-lhe um abraço escrito de simpatia e admiração. É que é para todos nós muito gratificante podermos ter o ensejo de testemunhar o nosso respeito a essa personalidade detentora de uma elevada qualidade humana que é o nosso amigo Joaquim Pinto.”

Vitor Constâncio



Ficou ontem decidida a substituição de Vitor Constâncio da vice-presidência do Banco Central Europeu, no termo do seu mandato de oito anos. 

Ocupou esse cargo num período em que o BCE desempenhou um papel de crescente relevância na política europeia, em especial desde que está sob a presidência de Mario Draghi. 

Constâncio foi, até agora, e depois de Durão Barroso, o português que ascendeu a um lugar mais elevado nas estruturas europeias. Partilha também com Barroso um estatuto de “mal-amado” na política interna portuguesa, no seu caso por ser apontado por muitos como o principal responsável pelas deficiências na supervisão do sistema bancário português, ao tempo que era governador do Banco de Portugal, cuja debilidade a crise financeira veio a revelar em toda a sua extensão.

Pensem o que pensarem os seus críticos internos, o facto é que Vitor Constâncio é hoje uma personalidade portuguesa altamente considerada nos círculos europeus. Aliás, ironicamente, no seu quadro de tarefas no BCE coube precisamente o desenvolvimento dos novos modelos de supervisão bancária europeia, que são vistos como bastante eficazes.

E, ao contrário dos “mixed feelings” que o balanço de Durão Barroso à frente da Comissão Europeia acabou por suscitar, dizem-me que o apreço pelo trabalho que foi desenvolvido por Constâncio no BCE é um sentimento generalizado.

segunda-feira, fevereiro 19, 2018

Sem ironias, ou quase


A entrevista, estranhamente longa e de conteúdo demasiado óbvio (desculpem lá, cara Luisa Meireles e caro Pedro Santos Guerreiro!), que Cavaco Silva deu ao “Expresso”, foi publicada no fim-de-semana do congresso do PSD.

Precisamente por essa “coincidência”, não deixa de ser impressionante que, sobre a figura que mais tempo liderou o PSD e o representou institucionalmente, tenha, nesse contexto, sido mantido um sepulcral e significativo silêncio.

Afinal, não consigo passar sem uma ironia: se o PSD tem esta “memória” de Cavaco Silva, não se espere que o resto do país tenha outra muito diferente...

ps - Pedro Santos Guerreiro estranhou o meu “estranhamente”. E, pensando melhor, tem razão: a entrevista tem o “comprimento” das restantes, no mesmo contexto. A minha reação foi de “cansaço”, mas a culpa foi do entrevistado. 

domingo, fevereiro 18, 2018

Lisboa - 70 mesas que perdi


Às vezes, dou conta por aqui da falta que me fazem algumas pessoas. Mas a vida não são só pessoas, é também feita de sítios, em especial de locais de que nos resultaram memórias agradáveis ou mesmo felizes.

Fiz um esforço de memória e elenquei cerca de 70 restaurantes lisboetas, dos que valiam a pena mas que já se foram na voragem do tempo. Algumas dezenas de outros poderia lembrar, mas não o faço. Porquê? Porque o não merecem.

Quem quiser conhecer essa lista comentada, deve clicar AQUI

sábado, fevereiro 17, 2018

Eduardo Barroso


No dia de hoje, imagino que ele estará de um lado diferente do meu, na questão que divide o Sporting. Mas é, desde sempre, um fogoso ”leão”, de primeira água. 

Todo o país o conhece como o cirurgião dos transplantes de fígado. E também como um dos grandes amigos de Marcelo Rebelo de Sousa. Leio que vai acabar a sua carreira, dentro em breve, com a chegada à bela idade dos 70.

Conheci Eduardo Barroso em circunstâncias diversas, algumas das quais bem difíceis. A sua bonomia e jovialidade davam-lhe um ar simpaticamente “leve”, ajudado (então) pelo charuto e pelo saudável gosto por outras coisas da vida. Foi muito bom ter como interlocutor, em tempos complexos, um médico assim.

Em França, tive o orgulho de o ver reconhecido e elogiado pelos seus pares, num grande forum médico internacional, em que foi homenageado como uma das figuras cimeiras dessa magnífica arte de prolongar a vida. Vemo-nos a espaços, pelas curvas da vida, lisboeta e não só.

Hoje, deixo aqui um abraço de admiração e estima a Eduardo Barroso.

O nosso “clochard”



Acabo de ler que morreu um sem-abrigo português, em Londres. 

E lembrei-me logo de Paris. A memória romântica da capital francesa alimentou, desde há muito, uma narrativa idílica sobre os seus “clochards”. Por muitos anos, eles eram vistos como os proprietários da liberdade suprema, usufrutuários das ruas, senhores irónicos de uma vida sem peias. O romantismo disfarçava a tragédia e almofadava as consciências.

Os tempos mudaram: hoje os clássicos “clochards” (a palavra parece derivar de “clocher”, do seu histórico andar “pendular”, fruto do alcool que aquece os dias de muitos) passaram a ser, simplesmente, os “sem abrigo”. E todos percebemos bem melhor, agora sem o comodismo de filosofias baratas, o drama de quem vive e dorme ao-deus-dará.

Um dia, quando estava em Paris como embaixador, foi-me chamada a atenção para um sem-abrigo que, ao final do dia, vinha colocar-se, com regularidade, num dos extremos da rua onde se situa a embaixada. Era português. Vim a saber que era alimentado e ajudado, mas também “fornecido” em álcool, por um grupo de reformados portugueses que, quase todos os dias, se juntam no início do bosque de Boulogne. Também soube que uma “concierge” portuguesa lhe facilitava a higiene. Quis saber mais: se ele desejava ser repatriado para Portugal, que mais era possível fazer por ele, para além de alguma roupa e cobertores que lhe foram entregues. Não foi fácil a abordagem. Através da sua amiga porteira, viemos a apurar que a sua vida em França atravessara uma tragédia romântica e que ele se recusava a encarar o regresso a Portugal. Contactou-se uma irmã, que já tentara intervir, mas verificou-se que os canais de comunicação eram já muito difíceis.

Uma noite fui ter com ele. O álcool (do dia? de anos?) já lhe tinha tirado muito da capacidade discursiva. Foi uma conversa difícil, breve, em francês, ele com umas curiosas interjeições portuguesas pelo meio. Disse-lhe quem era (mas não sei se isso significava para ele alguma coisa), que queríamos ajudá-lo. Não reagiu. A certo passo, achei mesmo que, com a minha insistência, estava já a ser algo paternalista. Senti então que ele se foi “afastando”, furtando-se ao meu olhar. Disse-lhe que batesse à porta, se precisasse de comida. Deixei-lhe algum dinheiro e também um cartão pessoal, com números de telefone que ele podia invocar ou usar, se acaso tivesse problemas. Em silêncio, guardou-o.

Nos tempos seguintes, à noite, ao olhar pela janela para a rua, ficava angustiado ao vê-lo ali, no chão, ao frio, sobre uma grade metálica, de onde lhe vinha algum calor. Mas, de certo modo, confesso que tinha um sentimento positivo por saber que o “nosso clochard” de Paris se acolhia na vizinhança da sua embaixada.

Um dia desapareceu, deixou de ser visto, à noite, na rue de Noisiel. Mandei saber dele. Havia sido internado, com graves problemas de saúde. Depois, soube que havia morrido. 

Lembrei-me do “nosso clochard” em Paris, ao ouvir a história do sem-abrigo português que agora morreu em Londres.

sexta-feira, fevereiro 16, 2018

Sem fardas



É um grupo que se reune há mais de quatro décadas, composto por militares, do quadro permanente e milicianos. Hoje esteve quase “au complet”, com duas ou três faltas, registadas na ordem do dia, mas cabalmente justificadas.

De comum, para além da amizade que os une, todos têm o facto de estarem indiciados, desde há muito, pelas autoridades que se presume competentes, por terem participado ativamente num ato de sedição e de subversão da ordem constitucional, ocorrido no dia 25 de abril de 1974.

Nos dias de hoje, junta-os a luta contra qualquer tentativa de amnistia desse crime, o qual, curiosamente, nenhum nega e de que têm mesmo o desplante de afirmar que se orgulham, o que é uma óbvia agravante.

A Marinha prevalece no grupo, e por lá estava hoje o nosso grande Almirante. Da Força Aérea, tivemos um garboso General. O Exército estava representado a nível mais modesto, como se pode ver no canto direito da fotografia, onde se vislumbra um Tenente (até ver, ainda na reserva) de Administração Militar (especialidade de Ação Psicológica).

Foi um almoço, no Clube Militar Naval, conspirativo qb, em torno de umas alheiras de Freixo de Espada-à-Cinta, com vinho (14,5%) do Douro Superior. Os grelos eram magníficos! 

Mais uma grande jornada!

Quebrou-se o consenso europeu?

A decisão de pedir a adesão às Comunidades Europeias foi um ato que conjugou a vontade dos dois mais relevantes partidos políticos portugueses pós-1974. Correspondeu à partilha implícita, por ambas as forças, do entendimento de que a sustentabilidade do novo regime democrático, saído da Constituição de 1976, dependia muito do modo como ele pudesse vir a ancorar-se a um novo projeto gerador de desenvolvimento e bem-estar, sob um modelo social de mercado. Esse era um terreno comum ao PS e ao então PPD, para além das diferenças que os separavam no plano interno e das idiossincrasias conflituais dos respetivos líderes. 

O CDS, cuja matriz procuradamente democrata-cristã da sua liderança inicial (que não das suas bases) se sentia representada numa Europa que fora construída mão-na-mão com a social-democracia, desenhou um discurso europeu que tentou sempre ter algo de próprio. O PCP, com inegável coerência, foi espalhando um “vem aí o diabo!” de Bruxelas e fechou-se para sempre num soberanismo empedernido. 

Os governos de Cavaco Silva viveram num verdadeiro “oásis”, no que à Europa respeitava. Era o reino maravilhoso das maiorias absolutas, com os ‘pacotes Delors” e a sua “coesão económico-social” a terem um impacto inédito sobre o nosso PIB, aquecendo muitos bolsos e modificando a paisagem. Nesse tempo, à esquerda, o PS anuía a quase tudo - por coerência, convicção e falta de alternativa. Até chegar o euroceticismo de Manuel Monteiro, o CDS manteve pacífica a imagem essencial de unidade que o país levava para a Europa. 

A partir de 1995, embora os tempos fossem já outros – na Europa e no país, onde a maioria tinha desaparecido - posso afirmar, com conhecimento próximo de causa, que a política europeia pôde ser conduzida sem grandes sobressaltos. O facto do “novo” CDS assumir um soberanismo que chegava a mimetizar o PCP, obrigava o PSD a colar-se ao essencial das posições do governo socialista, sob pena das suas credenciais europeístas poderem vir a ser postas em causa no quadro do PPE.

Muita água correu entretanto sob as pontes europeias. As opiniões públicas mudaram radicalmente no modo como passaram a olhar para o que antes era a “bondade natural” do projeto, então apenas contestada por minorias caricaturais. 

Apesar de tudo, sente-se que Portugal mudou bastante menos do que outros países, no que toca ao modo como encara o processo integrador. Mais do que um euroceticismo, prevalece hoje por cá uma espécie de eurocinismo. O debate está raptado por ironias bem-pensantes sobre Bruxelas e as suas instituições, por um primarismo argumentativo que, no fundo, é feito da mesma massa daquela que corrói o entusiasmo europeu, um pouco por todo o lado.

Estou a exagerar? Não creio. Tenho mesmo a sensação de que, se fosse necessário lutar por um “sim” num hipotético referendo europeu, cuja resultante final seria ainda assim confortável, parte da nossa opinião pública seria, nos dias que correm, suscetível de alinhar num mar de difusas reticências.

Vou dizer algo que alguns não gostarão de ler: parte importante desse discurso de dúvidas pode facilmente vir a emergir da área do PSD. A meu ver, essa é a força política que tem hoje um potencial mais forte para poder vir a dividir-se internamente sobre a questão europeia. Não desconheço persistir no PSD um conjunto de personalidades com forte sentimento europeu. Mas, do populismo (aceite) de figuras como o seu famigerado candidato em Loures até a alguma irresponsabilidade revelada na questão de cooperação em matéria de Defesa, passando pelo futuro quadro financeiro pluri-anual até ao tema dos “recursos próprios” (os impostos europeus), deteta-se no PSD uma preocupante perda de “automatismo” na sua atitude face à Europa. E o passado ensinou-nos que, sem os sociais-democratas declaradamente “a bordo”, a imagem de Portugal nas instituições da União fragiliza-se e a influência do país pode sofrer com isso. Há alguém que sabe isso bem: chama-se Marcelo Rebelo de Sousa.

Esta não é, porém, uma questão cujas respostas imediatas sejam muito relevantes, por muita consideração que nos possa merecer uma figura como Rui Rio. Tudo vai depender, essencialmente, dessa incógnita maior que é saber o que será o PSD após as eleições legislativas de 2019.

Gulbenkian


De um dia para o outro, ao saber-se que a Fundação Calouste Gulbenkian se preparava para alienar as suas participações petrolíferas, caiu no país o Carmo e a Trindade. Foi como se cada português se sentisse uma espécie de “senhor 5%”. Sem conhecer a limitada dimensão daquilo que vai ser vendido, sem saber que a Fundação apostou, de há muito, numa inteligente diversificação dos seus ativos, Portugal acordou, sobressaltado, para o que parecia ser um grande ponto de interrogação sobre o futuro da instituição da Avenida de Berna.

Há um lado simpático neste alarme. Ele traduz a importância que a Fundação tem para o país, o quanto esta instituição é sentida como “do bem” por todos e por cada um de nós. Há uns anos, senti uma forte revolta quando uma desajeitada sindicância sobre o mundo das fundações colocou injustamente a Gulbenkian sob a mesma “rasa” de outras entidades de não comparável valia. A injustiça do gesto, feito de demagogia mas igualmente de arrogante incompetência, foi sentida por muitos como uma bofetada numa instituição a quem o país deve muito mais do que as aparências indicam.

A Fundação Calouste Gulbenkian – a Gulbenkian para os de fora, a Fundação para quem lá trabalha – foi uma bênção que caiu um dia sobre Portugal, a retribuição filantrópica de um milionário que se cruzou com um grande português que se chamou José de Azeredo Perdigão. Foram a genialidade jurídica e a teimosia negocial de Perdigão que permitiu que a instituição tivesse um destino essencialmente português – mantendo polos em Paris e em Londres, com uma permanente atenção às comunidades arménias, da origem do fundador. Mas há que reconhecer igualmente o gesto hábil do regime ditatorial de Salazar, ao criar as condições para o acolhimento de Gulbenkian, bem como, mais tarde, a sabedoria diplomática do embaixador português em Paris, Marcello Mathias, que obteve a autorização para a transferência para Lisboa da coleção de arte.

A Gulbenkian, ao longo dos anos, foi capaz de desenhar um modelo muito sofisticado de relação com o Estado português. Senti isso como embaixador, quando tive de lidar com a Fundação - em Londres, em Brasília e em Paris. A instituição permanece sempre aberta a uma colaboração frutífera com o país oficial, mas nunca deixa que essa relação seja contaminada por uma qualquer ideia de dependência que coloque em causa a sua autonomia. Os governos (e, muitas vezes, os embaixadores) que não entenderam isto tiveram, com regularidade, momentos de tensão com a Gulbenkian. E aprenderam sempre à sua custa.

A Gulbenkian pode dizer, confortavelmente, como Mark Twain, que as notícias sobre a sua morte são muito exageradas. Agora sob a discreta mas eficaz mão de Isabel Mota, com uma renovada e competente administração que sabe olhar os desafios que aí estão, a Gulbenkian está para lavar e durar. E ainda bem, para Portugal.

Os borregos

Pierre Bourguignon foi, ao tempo em que eu era embaixador em França, um dos grandes amigos de Portugal. Deputado à Assembleia Nacional franc...