sexta-feira, setembro 02, 2016

Foi ali!


Como diria José Hermano Saraiva, foi exatamente ali, naquela mesa da direita, numa tarde de início de Verão, que tudo se passou, segundo vários testemunhos recolhidos. 

O casal, chegado do almoço na Pensão Mondego, à época uma rotina muito vulgar em algumas famílias de Vila Real, gostava de ocupar aquela mesa de canto, na Pastelaria Gomes. Eram ambos bastante baixos e anafados, ele mesmo rotundo, mas sempre de peito feito, como se uma farda se lhe colasse ao corpo, em permanência. Não se pode afirmar que fossem figuras populares na cidade, talvez porque a procurada gravidade do cavalheiro não induzia automaticamente uma onda de simpatia. Durante quase uma hora, por ali ficavam, as mais das vezes sozinhos, ele lendo o jornal com os óculos na ponta do nariz, ela quase sempre acabando por dormitar um pouco, para o que encostava a cabeça para trás, junto à grade que separa do "primeiro andar", que se pode ver na imagem que ontem colhi.

A partir daqui, os cronistas divergem em preciosismos metodológicos, convergindo, contudo, no resultado final. Numa versão, um dos ocupantes da mesa de cima terá tido a ousadia de atar uma sediela de pesca desportiva a fios da cabeleira da senhora, fixando a outra ponta na grade divisória. Noutra, teria sido fita-cola ou cola-tudo que, discretamente, terá colado o cabelo à grade. A versão mais benévola, e que entendo aliás como mais consentânea com a brandura dos costumes dos frequentadores do café, favorece a tese de que a cabeleira da senhora, num tombamento para trás durante um momento de sono, se terá ensarilhado de modo natural, e sem a intervenção da mão humana, numa das circunvoluções da grade. 

Provavelmente, a História nunca será servida, de forma incontroversa e definitiva, pela verdade dos factos. O anais da tradição oral urbana apenas registam, sem a menor sombra de dúvida, que a senhora, ao mover a cabeça para se levantar da mesa, terá ficado com a cabeleira - que era afinal um imenso postiço - presa à grade e, à vista da cidade social que a Gomes representava, terá exposto, espera-se que por escassos mas sem dúvida marcantes instantes, toda a careca que o artefacto cuidava pudicamente em resguardar. 

O abafado das gargalhadas que o episódio provocou em algumas mesas permanece, ainda hoje, na memória auditiva das testemunhas do evento, que o evocam com sorrisos (lamentavelmente) jocosos, alguns dos quais, "à la limite", poderiam indiciar que a tese da intervenção humana exterior colheria alguma credibilidade. Passaram quase cinco décadas sobre o episódio e, para além da prescrição objetiva do presuntivo delito, manda a discrição que não se tente aprofundar eventuais suspeitas. A bem da amizade.

6 comentários:

La Mère Supérieure disse...

... ótima história, risos por alguns instantes, bom começar o dia assim. Com todo o respeito a distinta senhora!

Anónimo disse...

Sem querer por em causa a credibilidade das memorias individual e colectiva, algumas perguntas:

1. A cabeleira postica era loura, castanha, preta?

2. " " " " lisa ou encaracolada?

3. " " " " curta, pelo ombro ou pela cintura?

As mesmas perguntas relativamente ao cabelo natural da senhora.

Ou... a dita senhora era careca, cantava e lia Ionesco?

Bom fim de semana

F. Crabtree

Luís Lavoura disse...

Por que é que a senhora era careca? Não é normal em mulheres.

Alain Demoustier disse...

para estragar tudo: talvez fosse quimioterapia?
esta façanha era habitual na França das perucas do século 18, mas aí atava-se um anzol a uma ponta da guita e um pombo na outra.....

ignatz disse...

a geração do fio de nylon apresentou o produto em muitas versões e outras tantas modalidades, desde atar as aldrabas/maçanetas das portas a fazer chuva de moedas nas feiras com os barretes dos campónios passando pela pesca de galináceos na traseira dos prédios, houve tudo o que se possa imaginar.

Portugalredecouvertes disse...


Eu vou pela explicação numero 3!
bom domingo:)
Angela

Obrigado, António

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