sexta-feira, maio 06, 2016

O túnel


Era um jovem engenheiro, originário do Porto, que a vida levou um dia para Vila Real, nos anos 50 do século passado. Rapidamente chegou a presidente do município e, mais tarde, a Diretor de Estradas e deputado pelo distrito. Chamava-se Humberto Cardoso de Carvalho e era meu tio. 

A serra do Marão era o “muro” que ele se tinha habituado a atravessar, entre as duas cidades a que, para sempre, ficou ligado afetivamente. Um dia, ouvi-o falar pela primeira vez no “túnel do Marão”. Foi, seguramente, há mais de meio século. 

Recordo as análises que fazia sobre as “cotas” dos dois lados dos montes, com as alternativas possíveis. Sei que abordara a ideia “lá em baixo”, em Lisboa, mas pode imaginar-se que nem a melhor boa vontade do seu amigo Arantes e Oliveira permitiria dar sequência ao sonho. Mas nunca deixou de falar nele, até ao final da vida.

À época, para mim, que era uma criança, a imagem de um túnel era apenas a de uma realidade ferroviária, muito pouco sossegante, que conhecia à saída da Régua e à chegada ao Porto. Ou no Tamel. Ouvir dizer que os automóveis também se podiam enfiar por aqueles buracos negros soava-me a coisa muito estranha. Mas ele mostrava fotografias de obras idênticas, na França e na Suíça, com um entusiasmo que ajudava a tornar a ideia, não apenas plausível, como desejável.

Para quem, como eu, nasceu em Vila Real, atravessar o Marão, nesses tempos de infância e adolescência, era uma programada aventura. A serra impunha-se como uma imensa barreira entre o nosso mundo e o mundo, com as suas centenas de curvas que davam direito a enjoos e uma longa viagem. Era o tempo em que se ia ao Porto aos “especialistas” ou para uma estada em casa de familiares. Ou para estudar na faculdade. Eram horas de caminho, de cansaço, de distância.

Foi a construção do IP4 que começou a mudar o Marão. Mas, também, a espalhar muitos mortos por aquela via perigosa, até que um “ovo de colombo” veio reduzir a carnificina regular. O desejo de uma autoestrada, que pudesse quebrar o isolamento de Trás-os-Montes, não era um dispêndio inútil em « betão » e défice. Era um gesto mínimo de solidariedade nacional para com uma das regiões mais sacrificadas do país, vítima de uma interioridade que, por muitos e maus anos, Lisboa desprezou. E, sem o túnel, nunca haveria autoestrada.

Amanhã, com a abertura oficial do túnel do Marão, a geografia vai mudar no norte do país, a coesão nacional reforça-se e a justiça faz-se. Neste dia, vou lembrar o meu tio Humberto Cardoso de Carvalho, um cidadão de vontade e coração, a primeira pessoa que me fez ver que, ao fundo daquele túnel com que persistentemente sonhava, estava um país para o qual Trás-os-Montes tinha um indiscutível direito a ter fácil acesso.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

15 comentários:

Isabel Seixas disse...

Tão agradável a mensagem do post, não só do ponto de vista do processo de germinação de ideias
que culmina em construções de acessibilidades que se tornam mais valias na qualidade de vida das pessoas, mas também dos encontros com a eternidade sempre patentes nos elos da corrente dos tempos das gerações familiares.

Anónimo disse...

Para quem como eu acha que Sócrates foi um bom PM e objecto de abuso de poder de prcoradores e juízes é uma notícia a sua presença na inauguração bem como o seu excesso de exposiçāo. Deixe o processo ir até so fim e depois intervenha. E Costa não deveria aceitar a sua presença.

Manuel do Edmundo-Filho disse...

Também é justo neste momento evocar o nome de José Sócrates. E Costa, ao convidá-lo para a inauguração, reconhece-o. Sócrates, goste-se ou não dele, tinha uma visão estratégica do país e para o país.

Anónimo disse...

Caro Senhor Embaixador,

Tinha lido este seu texto no JN, em papel, como me é mais agradável.
É mais um dos seus testemunhos de como há no País Gente Boa que se dedica e entrega por inteiro ao Serviço Público e que faz dele o seu sentido de vida. Contrariando a vox populi, há muito mais Gente desta do que se quer fazer constar.

Anónimo disse...

Embora seja mais novo do que o Embaixador ai uns 21 anos, também tenho na minha memória essa serra do Marão. Recordo sobretudo quando ia com os meus Pais e irmãos ao Porto visitar os meus tios, era um pesadelo até Amarante. Depois já com a abertura do IP4 as coisas melhoraram muito, percorri essa estrada dezenas e dezenas de vezes nos 5 anos em que estudei no Porto e depois em todas as visitas aquela que considero como a minha segunda Cidade(MAS ATENÇÃO NADA DE CONFUNDIR, NÃO SOU DO FC PORTO, SOU SPORTING E VILA REAL). Bom texto.

Anónimo disse...

Sócrates fez o que qualquer politico com visão estratégica faria, isto é, unir o território nacional na acessibilidade.É pena que, na democracia, não tenha aparecido mais primeiros-ministros com visão estratégica como ele.

Anónimo disse...

Tive a sorte de ainda o poder ouvir demoradamente sobre esse e outros assuntos, num depoimento que felizmente deixou gravado para o Museu do Som e da Imagem. Não costumo dizer estas coisas, mas estou entre aqueles que o consideram o melhor presidente da Câmara que Vila Real teve nos últimos oitenta anos, pelo menos.

Vítor Nogueira

Anónimo disse...

Concordo inteiramente com Manuel Edmundo-Filho. E viva o túnel do Marão!! É daquelas obras que o contribuinte não tem vergonha de pagar, na parte que ao Estado português competiu.

Anónimo disse...

Sou a mesma pessoa que acha que não se devem confundir as coisas e a Sócrates o que é de Sócrates, neste caso, a decisão da construção do túnel do Marão.
É bom que as pessoas saibam a quem devem certos instrumentos do progresso.
O resto tem a ver com outras matérias e não sou, nem gosto, de «justiceiros da verdade única».
Hoje, 6 de Maio, faz 42 anos que foi fundado o PPD, que veio a dar naquela coisa a que se chama PSD... Mas é estranho e insólito que não haja um único canal de televisão que inclua no noticiário uma «entrada» de Cultura Geral, assinalando a data e quem foram os fundadores desse partido, tão importante na construção da nossa Democracia. Estou completamente tranquila, porque nunca fui nem sequer simpatizante. Mas há limites para a iliteracia... Depois admiram-se! Um aluno universitário estranhando um professor referir Francisco Balsemão, primeiro-ministro do período a que se estava a referir, disse qualquer coisa como esta: «O quê? O Balsemão da SIC? Então ele também se mete em política?» Não sabia e nem imaginava que fora fundador do PPD... No Comments!...

Anónimo disse...

"Para lá do Marão não mandam só os que lá estão"...Não conheci o seu tio Humberto, mas pela sua descrição, acredito que ele estaria à frente das pessoas que mais gostariam de estar nesta inauguração.

AV disse...

Gostei mais uma vez do texto por conjugar uma memória afectiva pessoal com um marco importante para o País que o anónimo das 17.:20 resumiu de uma forma muito feliz: 'unir o território nacional na sua accessibilidade'. Vivo fora do país há pouco mais de 20 anos e, tendo na memória a lentidão dolorosa de muitas viagens de distância limitada, nunca consegui compreender o clamor recente contra a modernização da infraestrutura de transportes e comunicações. É um veículo fundamental para o reajustamento economico e para a resiliência de regiões industriais fundamentais para esse processo. E isso é também um veículo para melhores oportunidades sociais de acessibilidade à saúde, educação, cultura e de justiça no acesso a essas oportunidades.

Anónimo disse...

Comentando o comentário da anónima das 19:04, concordo inteiramente consigo. Eu que possuo uma excelente cultura geral de pouco me tem servido em matéria de empregos, pois eles querem é massa bruta e como eu não faço parte da mesma, lá vou andando de empresa em empresa para ganhar o meu com o meu Diploma Universitário e cheio de cultura, mas falta-me o essencial que é lamber botas como muitos e ter os padrinhos nos devidos lugares. Mas concordo inteiramente consigo. Não admira que as administrações estejam pejadas de ignorantes que nada sabem além é claro de lamber botas e pedir folares aos padrinhos. Muitas vezes não concordo aqui com o Embaixador, mas a minha admiração por ele é saber que ele tem uma grande cultura geral nomeadamente em assuntos internacionais que também são os meus preferidos.

Anónimo disse...

O procurador que acusou Sócrates levou uma estrondosa derrota com o acordão do Tribunal Constitucional que o obriga a não mais poder esconder a matéria que serve de base à acusação. Sintoma da nossa falta de professionalismo nem o acordão de 4 de Maio está disponível no sítio web do Tribunal Constitucional nem os jornalistas curaram de conhecer o seu teor quando se trata de um marco na defesa dos direitos, liberdades e garantias.
Espera-se que o túnel seja agora bem utilizado para reconduzir o senhor procurador à paragem mais longínqua que houver.



Anónimo disse...

Ontem demorei uma hora para sair do Passei Alegre até ao tunel de Águas Santas e outra hora a chegar a Vila Real sem passar no tunel do Marão que está a abrir agora. Até disse ao pessoal que me estava a demorar que se forem um pouca mais chatos ainda vou passar no novo tunel no regresso!
Isto para dizer que, independentemente da excelência da obra de engenharia (e não de arquitetura), o que é preciso são politicas de descentralização para "aliviar" a afluência à "praia", em especial em dias chuvosos como ontem... Mesmo em termos de planeamento tenho grandes dúvidas deste investimento relativamente ao alternativo de ligação da A4 em Amarante à A24 na Régua, o que juntaria o serviço de acessibilidade a toda a Região do Douro. Que continua a faltar! E se perguntarem aos viticultores se preferiam o tunel do Marão ou não ter sido destruido a Casa do Douro tenho quase a certeza da sua vontade!
Mas como é o maior tunel da europa lá está toda a gente a aconchegar-se no instantâneo!...
Quanto ao Engenheiro Humberto é outra a história! Viveu outras cicunstâncias e ele representa o que foi uma verdadeira descentralização quando deslocavam técnicos de elevadíssima craveira para regiões desfavorecidas e a sua marca ficou indelével em traçados excelentes de estradas e no que melhor ainda há no planeamento urbano de Vila Real.

Anónimo disse...

O maior túnel da europa peninsular! É o que dá escrever depois da sesta...

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