sexta-feira, maio 13, 2016

O sorriso da hospedeira

A solução governativa que hoje está instalada em Portugal tem a virtualidade de nos fazer regressar à política. Basta ver o assanhamento que a questão do subsídio público a algum ensino privado trouxe para o debate para podermos constatar como eram exageradas as notícias de que a estreiteza das margens orçamentais havia esbatido, de uma vez por todas, as fronteiras entre esquerda e direita, pela imperativa imposição de um único caminho.

Já passei a fase em que alimentava o quotidiano com esse tipo de disputas, até porque, desde há muito, aprendi que há bastante mais vida para além das ideologias. Mas acho saudável que, mesmo com alguma inevitável demagogia à mistura, se abra um debate em termos de opções em matéria de políticas públicas. Considero que é um estímulo para abanar a anomia cívica que por aí anda promover um bom combate de ideias.

Este governo tem aberto a porta a que, pela primeira vez desde há muito tempo, algumas premissas, dadas como assentes no pensamento que domina o « mainstream » da nossa política, tenham sido cruzadas por interrogações. Sou crítico de algumas das agendas « fraturantes » que o Bloco tem vindo a colocar sobre a mesa. Não tanto por objeções quanto à sua razão de fundo, mas muito mais por um  juízo negativo sobre a sua oportunidade, face a uma opinião pública que pode ter alguma dificuldade em achá-las conformes com a hierarquia da sua agenda de preocupações. Porém, tenho de reconhecer que, sem essa pressão « à esquerda », o PS português dificilmente abandonaria o espartilho de « neutralização » ideológica em que caminhava e que hoje marca muita da social-democracia europeia. 

Há, contudo, duas grandes questões a que só o futuro responderá e ambas se interligam. A primeira é saber se a adoção, cada vez mais evidente, de uma governação política mais à esquerda irá, ou não, alienar setores do tradicional eleitorado socialista, ao mesmo tempo que os louros dessa deriva progressista são colhidos pelos seus parceiros. A segunda questão é o « teste do algodão », isto é, se, no final de contas a « geringonça » funciona ou não, naquilo que verdadeiramente interessa e que não é tão pouco como isso : retoma do crescimento,  redução do desemprego, melhoria significativa da condição de vida dos mais pobres, sustentação das políticas públicas essenciais, enfim, um Estado social eficaz com o bem-estar das pessoas no seu centro.

Para já, perante alguma inevitável perplexidade face aos números económicos que por aí surgem nas últimas horas, sigo a velha regra que adoto nas viagens aéreas, em ocasiões de turbulência : olho para a cara das hospedeiras. E, até ver, António Costa continua a sorrir.

10 comentários:

Luís Lavoura disse...

Já passei a fase em que alimentava o quotidiano com esse tipo de disputas

O Francisco já está na fase em que se preocupa sobretudo em alimentar a barriguinha em restaurantes de boa qualidade. As disputas, sustentadas por hormonas muito excitadas, são coisas mais para jovens.

Luís Lavoura disse...

um juízo negativo sobre a sua oportunidade, face a uma opinião pública que pode ter alguma dificuldade em achá-las conformes com a hierarquia da sua agenda de preocupações

É claro que a maioria do público se preocupa sobretudo em arranjar pão para pôr na mesa ao jantar. Mas, felizmente, há pessoas em Portugal que, como o Cristiano Ronaldo, se preocupam sobretudo em arranjar oferta de óvulos e uma barriga de aluguer com que gerar um filho. E essas pessoas também têm direito a ver satisfeitas essas suas preocupações.

Joaquim de Freitas disse...

Num voo sobre o mar do Japão, " en route" para Tóquio, uma queda num poço de ar, que depois nos disseram foi de 2 000 metros, recebi, bruscamente, nos meus joelhos, uma bela hospedeira que, como eu, ficou muito surpreendida! Conservou o seu belo sorriso! "Honni soit qui mal y pense" !

Mas não sei, se Portugal cair num poço de ar, se o comandante, a hospedeira e os passageiros conservarão o seu sorriso.

E isto porque o funcionamento da "geringonça" depende dos ventos do Norte, que não são nunca muito favoráveis às geringonças débeis. Alias, como oriundo do Norte, nunca ouvi dizer bem da "nortada"! O nome em si diz já algo de desagradável. Pode estragar muitas férias!

O socialismo está na encruzilhada do social liberalismo. Ora a geringonça, para funcionar vai ter de tomar o caminho oposto às palavras retoma, redução, melhoria, sustentação e Estado social eficaz, que o Senhor Embaixador utiliza. O bem estar das pessoas não está no programa do capitalismo triunfante.
O capitalismo como as empresas não existem para criar empregos, não é sua função, dizem os interessados, mas para rentabilizar capitais, e o bem estar das pessoas é a última das suas preocupações.

josé ricardo disse...

Repito o que aqui já escrevi: a indelével marca do BE e do PCP no governo socialista enriquece substantivamente o "modus" governativo do executivo. Por outras palavras, os horizontes, tradicionalmente impostos pelo rotativismo do centrão, são agora diferentes. E isso só pode ser bom.

Anónimo disse...

É. Elas, as hospedeiras, até perguntam: Quer uma almofada para descansar?... "Pois não", como dizem os brasileiros...

Anónimo disse...

Ó Joaquim Freitas, cuidado com o triãngulo do diabo.

Joaquim de Freitas disse...

Permita, Senhor José Ricardo, de discordar ligeiramente . A "brisa ligeira" de esquerda do PCP e do Bloco, benéfica para o voo rasante actual, só é possível se a "geringonça" tiver ar sob as asas, senão estatela-se no solo.

Se o ar vier a faltar ou as turbulências se acentuarem, o "modus" governativo mudará inelutavelmente.

Veja o que se passa actualmente na França, onde o socialismo já não faz parte do programa, tendo cedido o lugar ao social liberalismo ambiente europeu. O programa do Bourget de Hollande já lá vai , longe...

O único discurso de esquerda que ouvi no hemiciclo, aquando do debate sobre a moção de censura da direita, ao governo de esquerda, maioritário até ontem, foi o de um comunista puro, ideologicamente, que juntou o seu voto à direita liberal para derrubar o governo.

Mesmo se não o conseguiu , foi a prova que o socialismo passou em "perdas e lucros" e já não conta!

O povo está órfão, na Europa, do socialismo , que sucumbe todos os dias aos golpes da finança internacional.

Entretanto, o populismo nazi mostra o seu nariz de novo na Áustria e nos países vizinhos.

E os EUA instalam mísseis de intercepção na Roménia, pra fazer cócegas a Putine.

Anónimo disse...

O Povo também sorri, a julgar pela última sondagem. Ainda bem.

JPGarcia

Anónimo disse...

Esta solução governativa apenas existe porque o social democrata PSD, representante em geral de um sentimento popular característico português, está a servir de barriga de aluguer a um anarcocapitalismo económico mesclado numa esquerdalha de costumes, que brotou do estrume do desenraizamento sub urbano de concentações na periferia.
Enquanto a social democracia for suficientemente preponderante para mascarar legislações exóticas que sustentam a maioria, a solução não tem alternativa. Senão, também não tem alternativa, para já!

Anónimo disse...

Anarcocapitalismo económico que entende que a corrupção é um negócio como outro qualquer!

Manuel Alegre

Tenho muita pena pelo facto de não ter podido estar ontem presente no lançamento do livro de memórias de Manuel Alegre. Manuel Alegre é, nes...