sábado, janeiro 31, 2015

O nome

 
O Observador traz hoje um artigo curioso sobre a escolha de nomes para as crianças. (Sei que muitos amigos não me perdoarão por estar a chamar a atenção para um site "reacionário", mas eu sou assim, falo do que gosto e o texto tem graça. Pronto!).

O artigo trouxe-me à memória uma história divertida, que mete "corrupção" e tudo. Estávamos nos anos 70. Um grande amigo meu, que se foi embora da vida há poucos anos, regressara de S. Tomé e Príncipe, onde estivera como professor numa missão de cooperação. Por lá conhecera uma funcionária do PNUD, de nacionalidade americana. Apaixonaram-se (até ao fim da vida dele, quase quatro décadas depois) e ela engravidou. Vieram para Portugal. Fomos convidados para padrinhos dessa filha que nasceu e à qual quiseram dar um nome raro, que não fazia parte da lista dos nomes permitidos em Portugal. Queriam que se chamasse Marla. Isso mesmo, Marla!

Avançámos para uma conservatória, conversámos com o conservador, que não se mostrou nada progressista. Eu, recém-diplomata, esmerei-me no processo convictório, mas sem sucesso. Começava mal uma carreira! Que não, que havia regras, que "o 25 de abril não permitia tudo" e coisas assim. Ainda se fosse Marta, tudo bem! Ora Marta! Eu tinha uma sobrinha com esse nome e, claro, fora fácil chamá-la assim. "Olhe! E porque não se engana ao escrever?", aventei. Nada feito, teimava o homem, falando para ser ouvido pelo resto do pessoal, com a autoridade do balcão pelo meio. Sentimos que a coisa estava preta (se é que o politicamente correto permite falar assim).

Olhei bem a personagem. O burocrata tinha um bigodinho, à malandro, tipo "amigo da onça", trejeitos untuosos, anel brilhante, emblema de pedrinhas, de 25 anos de um clube de Carnide. Cheirou-me a dobrável. Chamei-o a um canto do balcão, disse: "O amigo compreende, a mãe da criança é americana, lá na América o nome de Marla "é mato", é uma tradição de família, os avós faziam muito gosto nisso. Eu sei que o meu amigo só cumpre a sua obrigação - e faz muito bem! Porém, os pais estariam disponíveis a dar uma ajudinha para alguma obra social a que o amigo seja apegado, lá no seu bairro, a alguma creche, instituição de caridade". O olhar do funcionário disse-me que eu tocara numa corda sensível. A "obra social" abria-se subitamente ao "mecenato". Deslizei-lhe então uma nota de "quinhentos mil reis" (à época, era dinheiro!) para dentro do processo. Não lhe disse, como o João da Ega ao diretor da "Trombeta do Diabo", a frase literariamente histórica: "Recolha o bago, amigo Palma. Negócios são negócios e o baguinho está aí a arrefecer". Ele não se chamava Palma Cavalão, nem me interessava o nome. Ou melhor, interessava-me que fosse Marla o nome da criança.

A Marla chama-se hoje Marla. Um beijo para ti, Marla, aí por Viena.

Eles

Não são muitos. Aliás, são cada vez menos. Nasceram quase todos num tempo próximo do segundo conflito mundial. Por opção, destino ou meios de família, rumaram ao estrangeiro e por lá frequentaram partidos, copos e universidades. Começaram, quase sempre, pela margens da esquerda. Abril trouxe-os, com naturalidade, de volta. Como os marines de Bush no Iraque, esperavam ser recebidos com flores, foram-no com a olímpica indiferença de um país que não aprecia, por aí além, os iluminados, que detesta estrangeirados, muitas vezes por inveja, na maioria dos casos apenas por feitio. Com maior ou menor sucesso buscaram, na nova sociedade e na nova política, o lugar a que se julgavam fadados. Às vezes foram reconhecidos, até porque alguns tinham real qualidade, quase sempre à mistura com muita falta de senso da medida. Porque são tremendistas no verbo e na escrita, peroram sempre de cátedra, como "tudólogos" da vida, de quem bebeu "do fino", quase sempre num registo definitivo, de finis patriae. Alguns, raros, continuaram à cata de amanhãs que agora já só assobiam, outros foram seduzidos pela direita, outros ainda pelo bonapartismo breve da paróquia. Todos - mas todos! - entendem, lá no fundo, que a pátria que por aí anda os não entendeu, os não aproveitou, não lhes deu a importância e o estatuto de lápide na parede a que se achavam com direito, logo a eles, aos que se universitaram para serem a elite. Sabem tudo, mas não aprenderam nada.

sexta-feira, janeiro 30, 2015

O "estilo Syriza"



Hoje vou jantar com amigos - alguns estrangeiros, mas nenhum grego -  em "estilo Syriza", isto é, sem gravata.

Este já é um tempo novo na Europa do Protocolo. Não sabemos se, no plano político e económico, o sucesso do Syriza está garantido. Porém, no "dress code", a revolução já começou. O seu provável momento alto será a deslocação de Alex Tsipras, na próxima semana, a algumas capitais europeias. Irá sem gravata aos encontros? Imagino a agitação que atravessará os especialistas em Protocolo.

Por cá, quero crer que o ministro Paulo Portas, não obstante todas as divergência políticas, terá sentido, neste ponto particular, uma simpatia pelo estilo de vestuário novo chefe de governo grego.

Trieste ou uma estranha forma de vida


Eu devia ter aí uns dez ou onze anos. O nome surgiu numas palavras cruzadas, com que o meu pai e o meu avô materno entretinham as horas desses serões ainda sem televisão, lá por Vila Real: “Cidade livre no mar Adriático”, com sete letras.

A palavra era Trieste. Nome estranho. Nunca tinha ouvido falar e, no entanto, ela surgiu, fácil, ao meu pai e ao meu avô, que se entretiveram a falar sobre a história da cidade. Eu já tinha então o saudável vício de consultar dicionários por tudo e por nada, mas posso imaginar que me terá soado bem bizarro ler no gordo “Prático Ilustrado” da Lello (verifico agora) que se tratava de um porto na “Venécia Juliana”…

Na conversa dos mais velhos, ouvi então dizer que a tal Trieste tinha sido ou era uma “cidade livre” e isso, recordo bem, excitou a minha imaginação. O que seria uma “cidade livre”? Um lugar onde podia fazer-se o que se quisesse? Abandonando por algum tempo o jogo cruzadista, eles falavam de Trieste ter estado sujeito às mãos de vários poderes. Que coisa interessante! Como seria Trieste?

Um dia, o meu pai mostrou-me, na sua coleção de selos, um carimbo grosso com a palavra Trieste. Era um selo da “cidade livre”!

O nome de Trieste nunca mais abandonou a minha imaginação, num tempo em que o estrangeiro era apenas, para mim, a vilória galega de Verin. Porém, saber do destino trágico de uma urbe, que tinha tido uma existência sobressaltada por muitas guerras, casava bem com a quase homofonia que a ligava à palavra “triste”. Talvez por isso, e por alguma coisa mais que pudesse entretanto ter lido, era a imagem de uma cidade triste a que eu fixara para sempre desse porto do Adriático que não conhecia.

Trieste esteve, por muitos anos, fora das rotas das viagens a que a vida me conduziu. Um dia, numa ida a Veneza, ao sugerir a alguém que a organizou uma “saltada” a Trieste, ali perto, a minha ideia foi recebida com espanto. “Trieste? Mas para que quer ir a Trieste?”. Só faltou que dissessem: “Ninguém vai a Trieste!” Era difícil explicar que uma minha curiosidade de infância alterasse planos de viagem de um grupo. E, lá no fundo, eu sentia-me embaraçado em ter de confessar esse estranho e pouco adulto fascínio. Adiei assim a minha ida a Trieste.

Um dia, em Viena, numa conversa com uma colega, tendo vindo à baila o nome de Trieste, ela sugeriu-me, sobre a cidade, um livro então recente de uma escritora de viagens (até anos antes, escritor, porque entretanto mudou de sexo…), Ian Morris. O título do livro não podia ser mais mobilizador da minha curiosidade: “Trieste or the meaning of nowhere”… Comprei-o, devorei-o e era, de facto, interessante (o volume ainda deve andar por alguns caixotes, fechados desde a partida de Paris). Reforçou-se a minha curiosidade por Trieste.

Passaram uns tempos e, surpresa das surpresas, não é que o governo italiano me convidou um dia a integrar uma mesa redonda em Trieste, sobre questões de segurança internacional!? Aceitei com o entusiasmo de um neófito. Finalmente, Trieste surgia na minha rota de vida. Foi há pouco mais de dez anos.

Ido de carro da Áustria, através da Eslovénia, cheguei num fim de tarde a uma cidade serena, que apenas pela língua soava a italiana. Instalei-me no (então) excelente “Duchi d’Aosta”, na Piazza d’Unità d’Italia. A praça, sobre o mar, dava ares de uma miniatura da nossa Praça do Comércio. Dominava-a o edifício do Municipio. Olhando dela a baía, pressentia-se uma grandeza perdida. Por detrás da sede municipal, ficava a Cidade Velha, que conduzia ao Duomo e ao Castelo de San Giusto, bem como à Basilica de San Silvestro. Confirmei agora os nomes, que já deixara escapar com o tempo.

Nos dois dias seguintes, subi de taxi essa colina para estar nos debates, que tinham lugar na universidade. Pelo meio da tarde, descia a pé as ruelas, tentando perceber a vida fora das grandes artérias. Como viajante, esclareço, sou um “voyeur” de periferias, tenho um vício bisbilhoteiro dos bairros decadentes, encantam-me ruas com pouca gente, casas comerciais sem charme, becos esconsos. Acho que a alma das cidades está mais por aí do que está nas avenidas com lojas estandardizadas.

Trieste, nesse capítulo, não me desiludiu. Nela, os bairros juntam casas antigas com uma arquitetura estranha, idêntica àquela de que estão cheias as cidades do pós-guerra, de uma funcionalidade sem grande graça. Mas, ao mesmo tempo, consegue-se perceber por ali algo mediterrânico, no pálido manchado dos ocres, nas varandas com flores. Lembro-me de ver castanhas à venda, como em Lisboa, o que me confortou.

Perto do porto, os bares e os cafés tinham menos interesse do que eu esperava. Trieste chegou a ser o porto axial do Mediterrâneo e era muito vulgar que as linhas de transporte marítimo trouxessem a menção “via Trieste”, como marca dessa centralidade. Os tempos, porém, eram outros.

Na minha agenda, levava o nome de alguns cafés. Um deles, o “Pirona”, mais pastelaria que café, tinha a fama de ser frequentado por James Joyce, nos dez anos que passou em Trieste. Já o “Tommaseo” se diz ligado à libertação italiana no século XIX. Curiosamente, a sua arquitetura e decoração lembram mais um café de Viena do que um espaço de Itália. Acabei a tarde, frente ao meu hotel, com um “prosecco” no “Caffé del Specchi”, um local elegante, com toque turístico, mas, mesmo assim, incontornável, como alguns gostam agora de dizer.

Volto às origens da cidade. Não os queria maçar muito com a sua confusa história, bem como do território que lhe estava adjacente. Porém, sem ela, não é possível entender o seu caráter tão peculiar, na charneira de vários mundos.

Durante muito tempo, Trieste foi o porto meridional do império austríaco, com o alemão a ser a sua língua. A Itália sempre a cobiçou e viria a ocupá-la após a derrota alemã na primeira guerra mundial. Depois, foi a vez dos nazis, nos anos 40, que a utilizaram como centro para a repressão. Viria a tornar-se-ia jugoslava no termo da segunda guerra. Para ultrapassar o contínuo interesse conflitual da Itália e da Jugoslávia, os Aliados deram-lhe o estatuto de “território livre”, com a URSS e os EUA a terem sobre esse espaço uma dupla tutela, também ela sempre polémica, o que levou à sua divisão em duas zonas de ocupação militar, que se consagrariam mesmo numa partição institucional efetiva em 1954. Apenas em 1975, se encontrou uma solução, com a Jugoslávia (hoje a Eslovénia) a ter direito a territórios a leste e a Itália a fixar-se na cidade. Confuso? Deve ter sido bem mais para quem por lá vivia e foi sujeito a todas estas bolandas, sem direito a pronunciar-se sobre o seu próprio destino.

Flanar por Trieste implica uma visita obrigatória à estação ferroviária. Com alguma imaginação, poderemos ver por ali a sombra do Orient Express dos tempos áureos, na sua rota para Istambul. Se tivesse pretensões de guia turístico, teria também de recomendar o passeio pelas margens do Canal Grande, com uma entrada na bela igreja ortodoxa ou na impressionante Sinagoga, bem como uma sortida ao Palacio de Miramare. Pouco mais.

Recomendo Trieste aos nostálgicos irónicos da História, aos cultores da sociologia empírica que se entretêm a olhar as gentes e os costumes, sem pretensões de sínteses definitivas e inteligentes, mas apenas como forma de tentarem perceber, modestamente e com prazer, o que por ali resta dos mundos atravessados no seu passado. Aviso à navegação: para os amantes das cidades “óbvias”, Trieste pode ser uma imensa seca. Não tem nenhum do “glamour” típico da Itália ali ao lado. Repercute apenas uma distante dignidade dos tempos dos Habsburgos e de quantos lhes seguiram os caminhos. Nem sequer revela a rudeza da alma eslava do seu leste balcânico. De facto, Trieste não é já quase nada disso, ou melhor, é apenas o saldo sofisticado de tudo isso. Mas apenas para quem o souber ler, claro.

Cultura

 
Os tempos não parecem fáceis para os lados da secretaria de Estado da Cultura, "to say the least". Novas mudanças ocorreram agora no Opart – Organismo de Produção Artística, entidade que gere o Teatro Nacional de São Carlos e a Companhia Nacional de Bailado.
 
Congratulo-me que na nova direção permaneça Adriano Jordão, um homem cuja competência e dedicação tive oportunidade de testemunhar ao tempo que foi Conselheiro Cultural na Embaixada em Brasília, durante os quatro anos em que a dirigi. 

Luis Castro Mendes

 
Se o vosso descuido os fizer perder isto, não digam que os não avisei, está bem?
E se, como aperitivo, visitassem o excelente Tim Tim no Tibete ?

quinta-feira, janeiro 29, 2015

Sindicalismo diplomático

Um dia, creio que 1977, fiz parte de um grupo de jovens diplomatas portugueses que decidiram, coletivamente, não integrar uma Associação dos Diplomatas Portugueses que estava então em curso de criação. Essa associação tinha como implícito objetivo "isolar" os interesses dos diplomatas do conjunto de reivindicações que, à época, os trabalhadores do MNE apresentavam à tutela. Eu insurgia-me então contra aquilo que considerei ser uma espécie de "clube" um tanto elitista e informei os organizadores de que só estaria disponível para integrar esse movimento a partir do momento em que ele tivesse uma natureza expressamente sindical. Não tenho hoje a certeza de estar certo nesse meu gesto radical, confesso, mas foi assim que as coisas se passaram, não sem alguma "accrochage" com colegas com outras perspetivas. Anos mais tarde, a associação viria a mudar de nome e a converter-se num sindicato - a Associação Sindical dos Diplomatas Portuguesas (ASDP) - e, natural e coerentemente, passei a ser seu associado. Anos depois, viria mesmo a ser vice-presidente da direção, como já um dia contei por aqui, com uma historieta divertida.

Ontem, fui eleito como novo presidente da assembleia geral da ASDP. Há precisamente dois anos, dia por dia, deixei o serviço ativo do MNE. Assim, não tenho hoje o menor interesse pessoal direto nas questões de natureza profissional que o sindicato tem perante si. Mas mantive-me sempre como seu associado e sinto-me plenamente solidário com o conjunto de reivindicações que hoje mobilizam os diplomatas portugueses. Essas reivindicações são assumidas pela lista ontem eleita, aliás votada por um número de eleitores que faz história na ASDP. Este sufrágio de clara confiança conforta o grande entusiasmo que constato nos integrantes nos novos corpos gerentes, pela consciência clara de que a condição diplomática atravessa em Portugal um tempo muito difícil, fruto conjugado de alguns atos políticos e administrativos tomados em seu detrimento, conjugados com inaceitáveis preconceitos a que a comunicação social dá fácil cobertura, que urge combater e reverter. A pluralidade das pessoas envolvidas nesta candidatura, seguindo aliás uma saudável e permanente tradição dentro da ASDP, afasta o risco de qualquer alinhamento político-partidário e garante uma grande independência à atuação dos seus corpos gerentes.

Os Açores e a Ucrânia

Algumas almas piedosas ficarão chocadas com a similitude que vou fazer: há qualquer coisa que aproxima os Açores da Ucrânia. É simples: ambos são vítimas da dimensão política da sua geografia.
A NATO nasceu com os americanos já nos Açores. Salazar foi obrigado a aceitar, com Londres à mistura, esta imposição da grande potência do outro lado do Atlântico. Ironicamente, as Lajes acabariam por fazer parte do seguro político de vida do ditador no pós-guerra, quando os ocidentais dela vencedores, já mergulhados na Guerra Fria com os soviéticos, decidiram não correr os riscos que uma abertura democrática na península ibérica poderia acarretar. A partir daí, as Lajes foram um barómetro interessante do estado das relações entre Lisboa e Washington. Porém, salvo algumas "marchandages" de oportunidade, que os cheques em dólares consagraram, Lisboa nunca conseguiu que a base se transformasse num instrumento ativo da sua política externa. A humilhação imposta pelos EUA a Marcello Caetano, em 1973, por ocasião da guerra do Yon Kippur, deixou bem clara a (ausência de) margem de manobra portuguesa na matéria. Todo o discurso sobre o assunto nas últimas quatro décadas, embrulhado pelos nossos esforçados atlantistas, não passou disso mesmo: de um discurso, que nunca atravessou o Attlântico. As Lajes são portuguesas mas o destino geopolítico em que elas se inserem, sendo embora por nós partilhado, não está sob o nosso controlo. Quem não perceber isto ou é ingénuo (e, por isso, perigoso) ou está de má-fé.
A que propósito é a Ucrânia aqui chamada? Porque a Ucrânia é também, a seu modo, uma "casualty" geopolítica. A Ucrânia é um espaço político que uma certa acrimónia face a Moscovo, que nos últimos anos raptou o discurso dentro da UE e da NATO, acabou por erigir num bizarro santuário da intocabilidade. A Rússia, que como entidade política está muito longe de ser "flor que se cheire", acabou por demonstrar na Crimeia (como já tinha feito na Geórgia) que não está disponível para deixar afetar os seus interesses estratégicos e que não permitirá que Kiev se transforme numa guarda avançada de quem ameaça o que considera ser o essencial da sua segurança. E que teme que a atual NATO seja isso mesmo. O Ocidente pensou que tinha ganho a Guerra Fria, depois de moldar quase toda a Europa central e de Leste ao seu "template", por via da UE e da NATO. E, depois, "explorando o sucesso", como gostam de dizer os militares, pensou que podia "ir por ali adiante" na sua cruzada democratizadora e homogenizadora. Só que o mundo real não funciona assim. Por muito que se alguns aceitem que os "bons" estão do lado de cá e os "maus" do lado de lá (nos meus tempos da OSCE, os russos diziam "a Leste de Viena"), a história da paz global ensina-nos que temos que viver lado-a-lado com os "maus". E estes, os "maus", também têm medos, inseguranças e perceções geopolíticas que - goste-se ou não! - têm de ser tidos em conta no quadro global, por muito pouco respeitáveis que possam ser considerados. A história mostrou já, à saciedade, que a Ucrânia é uma fronteira por onde passa hoje a divisão entre dois mundos que, uma vez mais, entraram num ciclo histórico de distanciação. Toda a fronteira têm dois lados e, por isso, a Ucrânia vai sempre ter dois lados.
Cada um a seu modo, os Açores e a Ucrânia são a prova provada, se acaso ela fosse necessária, de que a geografia tem muita força. Não se pode lutar contra ela, ou melhor, poder pode, só que depois saem caras as consequências dessa luta inútil. E irresponsável.

quarta-feira, janeiro 28, 2015

Destinos


O que será melhor? Viver como um nababo num "resort" em Punta Cana, na República Dominicana, ou espiar 50 anos de cadeia na prisão de Frankland, no nordeste britânico? Não parece haver dúvidas. E se houver uma terceira opção, isto é, viver placidamente cá por Lisboa?

A três cidadãos, nascidos no mesmo dia 28 de janeiro e no mesmo ano de 1948, couberam destinos muito diferentes. Um deles, um felizardo, é Mikhail Baryshnikov, bailarino e ator, que anda refastelado nas Caraíbas. O segundo, Charles Taylor, antigo líder da Serra Leoa, foi condenado por crimes contra a humanidade, pelo que vai ter as paredes como paisagem para o resto dos seus dias. Resta um terceiro que, confessa, não tem razões de queixa da vida.  

Os cenários da vida

Vivi em dez cidades diferentes. Nunca decidi em qual delas gostei mais de viver.

Não há uma cidade ideal. Somos diferentes em cada tempo da nossa existência: pelas idades que vamos tendo, pelas ambições que fomos criando ou deixando cair, pelo modo como, em cada momento, nos vamos sentindo, fruto de razões próprias ou que a vida nos impôs. Pelas gentes e pela forma como as cruzámos, pelo bem-estar que pudemos ter.

As cidades só existem connosco dentro. Por anos, consegui ser feliz num lugar difícil como era Luanda sob guerra civil, e estive sempre menos confortável numa cidade que, paradoxalmente, rima com esse conceito, como é Viena. A terra que me mobilizou os sonhos de juventude, Paris, resultou numa experiência aquém da satisfação plena, num quotidiano vivido num tempo estranho - além de que não se deve viver onde se foi turista, aprendi. Brasília, a urbe artificial, onde presumi que iria ter uma existência pesada, converteu-se numa bela experiência, graças a um desafio profissional mobilizador, somado a um círculo agradável de amigos. Londres, cujo formalismo gongórico me assustava, revelou-se uma cidade de vida livre e de gente irónica.

Depois de quatro décadas a mudar regularmente de poiso, concluí que não tenho uma cidade ideal, porque essa cidade teria de conjugar coisas inconciliáveis entre si.

Em tese, todos queremos cidades calmas, onde a organização da vida reduza o stresse, onde o tráfego não nos encanite a paciência, onde se possa passear a pé, onde o verde se imponha ao fumo e ao pó. Vivi em Oslo, onde havia tudo isso, e foi ótimo. Voltei lá, há pouco, e concluí, com facilidade, que não era sítio onde me apetecesse viver.

Por contraste, senti-me bem em Nova York, uma cidade que não para, onde não somos estrangeiros, com lugares públicos apetecíveis, mundo de livrarias, restaurantes fabulosos e lojas de tudo, com gente diversa por todo o lado, a dar vida à vida. E, contudo, gostaria de viver por lá eternamente? O frenesim e o desafio constante vão bem com um certo tempo interior, o individualismo como doutrina de comportamento urbano não fará nunca o meu estilo, a lei do dinheiro é um panorama social onde não gostaria de esgotar os meus dias.

Lisboa é a minha escolha? Não, é apenas o destino. Tem lixo, incivilidade, trânsito caótico, ruído qb. Mas tem sol, tem risos, tem os lugares que já são nossos, as esquinas que dobramos sem surpresas, os locais onde nos chamam pelo nome.

A cidade ideal é aquela onde se é feliz. E isso está dentro de nós, a cidade é apenas o lugar onde encenamos a vida. Mas, paradoxalmente, e se pensarmos bem, a cidade ideal é também aquela que possamos encarar, com serenidade, como o cenário da nossa própria morte.
(texto que publiquei na revista XXI, "Ter Opinião")

terça-feira, janeiro 27, 2015

Síndroma de Estocolmo

Tem algo de patológico o conhecido "síndroma de Estocolmo", o estranho sentimento de afetividade que alguns raptados criam face aos seus raptores, depois um período de pressão psicológica. O governo português parece ter-se tomado de amores masoquistas pelas receitas da Alemanha, na lógica do "quanto mais me bates mais gosto de ti". Deve provocar sorrisos piedosos nos corredores da chancelaria berlinense este afadigado seguidismo face às versões mais radicais da austeridade, este extremado tropismo a fingir de "nórdico", este liberalismo obsessivo que atravessa a maioria cessante.

Lembrei-me ontem disso ao ouvir as lamentáveis declarações do primeiro-ministro, desqualificando de uma forma muito pouco elegante as propostas do Syriza, com o objetivo claro de agradar à tutela alemã. Foi triste e alguém deveria dizer ao dr. Passos Coelho que, nas relações internacionais, é de bom tom manter respeito pelos seus contrapartes, em especial tratando-se do líder eleito de um país aliado e amigo. Por maiores que sejam as divergências que tenha face às suas opções políticas, causa-me sempre um grande incómodo ver um qualquer dirigente do meu país fazer "tristes figuras" na ordem internacional, como ontem aconteceu. Já quanto aos comentários, também de grande infelicidade, do dr. Pires de Lima sobre o mesmo assunto, acho que já todos levamos isso à conta da sua estranha propensão recente para as graçolas de mau gosto, que tem vindo a desgastar a sua imagem. Estará o governo a perder a cabeça?

segunda-feira, janeiro 26, 2015

Campos da Paz

Leio na imprensa brasileira que morreu Aloysio Campos da Paz, criador da Rede Sarah Kubitchek. A Rede Sarah, como é vulgarmente conhecida, é uma instituição dedicada à à prestação de serviços especializados nas áreas de reabilitação física e neurológica e tem hoje oito unidades em grandes cidades brasileiras.
Um dia, em Brasília, tive de recorrer aos serviços da Rede. Estranhei, no hall de entrada, um letreiro a informar os visitantes que, se alguém lhes pedisse dinheiro pelo serviço, deveriam queixar-se. A Rede é gratuita, é essa a sua filosofia central. O seu serviço é impecável, sereno, dedicado, de extrema eficácia profissional. Campos da Paz dirigia a sua equipa pluridisciplinar como um patriarca, como um pai, com um sentido pedagógico permanente, onde nunca faltava o sorriso. Fiquei a dever-lhe atenções e uma excelente orientação. Por isso, agora que soube da sua morte, quero registar aqui o meu pesar. Sempre pensei que o seu nome rimava bem com a ação que desenvolvia.

... e a Grécia aqui tão perto

A vitória do nacionalismo de esquerda na Grécia, não sendo uma surpresa, não deixa de ser um choque e uma provocação à História. A União Europeia confronta-se, tenderia a dizer que pela primeira vez, com uma liderança nacional que, de forma frontal e sufragada por uma clara vontade popular, coloca em causa o compromisso de rigor orçamental em torno do qual tem funcionado o modelo coletivo de saída da crise. A voz de um pequeno país ergueu-se na contestação das políticas que conduziram à sua pobreza e ao desespero. Resta saber como é que o braço de ferro, que só agora se inicia, vai terminar. E, muito em especial, se a sua voz terá eco noutros parceiros.

A Grécia vai dizer à Europa "não pagamos!". Vai dizer que a dívida é por ela titulada mas que rejeita que ela seja lida exclusivamente como uma "culpa" e até uma responsabilidade nacional. É a revolta do pobre contra o usurário, sem cujo dinheiro não pode passar, mas que só aceitou - nas condições em que aceitou - por um estado de necessidade em que se encontrava. O que "ilegitima" a posição do credor. A Grécia rejeita muito mais do que o pagamento integral daquilo que deve: refuta a filosofia de culpabilidade que lhe colaram à pele. Resta saber qual será a resposta e o grau de flexibilidade da Europa, isto é, se está disposta a "comprar uma guerra" com a Grécia que leve a União ao limiar da rutura, à pressão para o abandono da moeda única. E que consequências isso poderá ter para o euro e para o futuro do Tratado Orçamental.

O primeiro-ministro Tsipras tem diante de si uma missão quase impossível, só atenuada pelo facto de possuir o "alibi" de não ter uma maioria absoluta, o que pode facilitar a sua acomodação pontual e a aceitação de alguns recuos, fruto dos compromissos necessários com os seus eventuais parceiros de coligação. Não é apenas no plano europeu que esse ciclópico trabalho se requer. Também no quadro interno, o governo Syriza elevou a fasquia das expetativas muito alto, com promessas de um ambicioso programa de emergência social cujo modo de financiamento não é ainda muito claro.

E nós, no meio de isto? Não é preciso ser bruxo para adivinhar o que vai por S. Bento: "Para já, mantemo-nos discretos. Não se diz nada que possa indiciar que, de alguma forma, subscrevemos a posição grega. Criámos uma imagem de país cumpridor, mantemos os nossos compromissos e veremos como o debate evolui. Se a Grécia conseguir flexibilizar os termos dos empréstimos europeus, muito bem: aproveitaremos! Se não conseguir, o que é o mais provável, o nosso percurso virtuoso merecerá ainda mais destaque perante os nossos credores. E continuaremos na mesma linha. Colocar em causa a nossa posição face à Alemanha, que tanto nos custou a construir, é que não!" Não será assim? Como é que se chama a falta de coragem? Sabem o que significa a palavra pusilanimidade? Então é isso! Ou oportunismo! Chamem-lhe o que quiserem...

Não há alternativa para esta posição nacional? Claro que há! E ela deveria ser encarada, porque, também para nós, a receita da austeridade não tem sido indolor. Também por cá a receita tem sido um fracasso evidente, que só não vê quem não quer. Mas não reduzimos o défice e equilibrámos o saldo primário? Somos como alguém que tem boas análises clínicas mas que continua manifestamente doente, apenas magnificando esperançosamente os escassos sinais de melhoras: a nossa dívida disparou, a recuperação (em grande parte artificial) do emprego estagnou, a emigração qualificada continua, os serviços públicos degradaram-se a um limite quase insuportável. Aí à porta está agora a drástica redução das exportações para Angola e o impacto que isso vai ter no saldo da nossa balança comercial, que já estava a dar sinais negativos nos últimos meses. E o ambiente europeu de juros baixos, que tem aliviado ligeiramente o nosso serviço de dívida, depende de tudo menos de nós.

O interesse nacional justificaria que, com outros países europeus que mostram uma atitude mais aberta face à consideração do caso grego, viéssemos a ajudar a uma flexibilização das metas do Tratado Orçamental, ganhando espaço para "respiração" das economias, de forma ordenada e não dramatizada, de braço dado com a inteligente política do Banco Central Europeu. E que, quebrado que está o tabu da renegociação da dívida, colaborássemos, de forma pró-ativa, para que a Europa encare de vez esse problema, que nos esmaga os orçamentos e destrói o quotidiano das muitas vítimas portuguesas da crise. Mas, como costumava dizer alguém de quem sinto muito a falta, "não estamos com gente disso!".

Tu


Só depois dos trinta anos é que fiz o meu primeiro amigo espanhol. Chamava-se (e chama-se) Rafa e conhecemo-nos em Oslo, na Noruega, onde ambos nos estreávamos como diplomatas em posto no exterior. Um dia, Rafa e a mulher convidaram-nos para um jantar em casa, com o seu embaixador, também acompanhado da mulher. Ele era um velho diplomata (às tantas, era mais novo do que eu sou hoje!), com um ar de Dom Quixote, falas pausadas e enfáticas, uma imagem de um certo estilo da carreira, já então perdida um tanto no tempo. Nós, em Portugal, também tinhamos uma figuras e figurões equivalentes. A senhora podia ter saído de um quadro de Velásquez, cabelo armado, cabeça altiva e uma afetação a mimar o estilo dos "grandes de España" (e, se calhar, era mesmo dessa casta aristocrática que tanto entretem alguns diplomatas em posto em Madrid).

O jantar foi simpático, recordo, com o embaixador a contar cenas da sua vida vivida pelo mundo, recheada de pormenores picarescos, de figuras desenhadas com o exagero da retórica, episódios ensaiados e testados mil vezes, para públicos diversos. Em grau variado, com o decurso dos anos, ficamos quase todos assim, podem crer...

Nessa noite, eu mantinha-me num relativo silêncio, não tanto por timidez, mas essencialmente porque, à época, o meu castelhano era muito primário e hesitante. Das vezes em que intervim, dirigindo-me ao velho embaixador, tratava-o por "Señor Embajador, usted...". Para minha grande surpresa, Rafa fazia-o de uma forma bem mais solta e íntima: "Embajador, tu...". Estranhei muito aquela forma de se dirigir ao seu chefe, de quem o separava uma imensa diferença de idade, e disse-lho mais tarde. O meu amigo riu-se e fez-me notar que, na tradição da carreira diplomática espanhola, o tratamento por "tu", o "tuteo", é aceite e generalizado, mesmo com superiores hierárquicos. Mas esses "tus" são muito diferentes, uns são mais respeitosos que outros, pelo que importa perceber que a a formalidade entre as pessoas não é quebrada necessariamente pelo uso do "tu". No fundo, acontece o mesmo com a necessidade de bom senso na aplicação do "you" anglo-saxónico. E também aprendi entretanto que, por vezes, o "usted", em lugar de ser um modo educado, pode também ser visto às vezes como algo agressivo e até deselegante, uma marcação artificial de distância. 

A que propósito vem isto? Refiro-o para notar um vício que anda por aí em muito boa (?) gente que, estando longe de nos tratar por tu, sendo mesmo cerimoniosos à moda portuguesa, a meio de uma conversa, um pouco "à espanhola", mete coisas como "se tu te distrais..." ou "e quando tu vais comprar um jornal...". Posso estar enganado, mas sinto que é já uma influência, entre nós, da construção espanhola das frases: o Ronaldo ou o Mourinho falam assim... Na realidade, o que essas pessoas quereriam dizer, respetivamente, seria "se nos distraímos..." ou "quando vamos comprar um jornal...". Não notaram?

Este tema das formas de tratamento é um mundo fascinante, que já por aqui abordei por mais de uma vez. E, sempre, recordando a frase de François Mitterrand quando um amigo (relativo) se lhe dirigiu um dia, à cata de intimidade, sugerindo: "François, on se tutoie?". A resposta do antigo presidente, com algo de deliciosamente snobe, ficou histórica: "Si vous voulez..."

domingo, janeiro 25, 2015

Não somos a Grécia?


"Não somos a Grécia!", foi a "punch line" subliminar do Portugal oficial de turno, ao longo dos últimos anos, procurando destacar que o rigor no esforço de ajustamento macroeconómico levado a cabo pelo nosso país não tinha comparação com o modo, mais desordenado e mais caótico, como Atenas conduziu o seu próprio processo. Era verdade: e os gregos também se comportavam de maneira diferente, partiam mais vidros, usavam mais "cocktails molotov", berravam mais alto nas tardes agitadas do Syntagma. E o seu sistema político-administrativo é mais corrupto, o seu modelo fiscal muito mais ineficiente, em suma, é um país em que o mundo, ao que parece, confia um pouco menos do que em Portugal.

Os gregos são diferentes de nós, claro. Como são os italianos que elegeram vezes sem conta um senhor chamado Berlusconi, como o são os franceses que hoje colocam Marine Le Pen nos píncaros, como o são os espanhóis cujo governo acaba de introduzir a prisão perpétua. Somos diferentes dos gregos, pois somos! Como somos diferentes dos irlandeses que não aceitam com naturalidade essa coisa simples que é o aborto assistido, como o somos dos finlandeses que têm da solidariedade intraeuropeia uma visão tão calorosa como um glaciar. Diferentes dos gregos! Como o somos dos austríacos cuja xenofobia pinga de qualquer fatia de Sachertorte, como o somos dos letões que deixam apátridas as minorias russas, como o somos dos húngaros que votam um líder autocrático que está a corroer a democracia. Não somos gregos! Nem somos checos, que dividem aldeias com muros para se separarem dos ciganos, nem luxemburgueses que criam empresas fastasmas ajudar à fuga aos impostos, nem temos o cinismo britânico de querer privar os imigrantes dos direitos sociais, mas que lhes dão jeito como mão-de-obra barata. E por aí adiante.

Nós não somos a Grécia! No entanto, se tudo isto, aqui por esta Europa, acabar por correr mal, de uma coisa podemos estar seguros: ver-nos-emos gregos! É que a única certeza que temos, que temos direito a ter, para o bem e para o mal, é que não somos alemães!

"Outro Ulisses volta a casa"

Cidades que nunca atravessei, nomes que ressoam da infância, 
Samarcanda, Trebizonda, cidades que nunca vi,
promessas por cumprir de um atlas folheado na infância, 
noutro século, num outro século.

Cidades como casas desfeitas,
caixotes abertos no chão, gavetas por esvaziar,
livros que sempre sobram.
É fácil resumir uma vida.O que dela ficará, não sabemos. Mais certamente 
nada.

Ficam as palavras encontradas num velho atlas:
Samarcanda, Trebizonda. 
Um dia. Um dia estarei lá.

Luis Filipe Castro Mendes no Tim Tim no Tibete

sábado, janeiro 24, 2015

Miguel Galvão Teles (1939-2014)


Chega tarde esta minha nota sobre a morte de Miguel Galvão Teles. Tudo já foi dito, por parte de amigos, admiradores e até por jornalistas que, provavelmente o não conheciam mas que não foram insensíveis à importância deste jurista eminente e cidadão de primeira.

Sabia-o bastante doente. Já nos não víamos há bastante tempo. Tinha com ele uma relação de grande simpatia, com ele sempre a tratar-me por tu, numa generosidade a que eu correspondia com gosto. Era uma relação feita de alguns bons amigos comuns e de certas cumplicidades, a menor das quais não era o nosso Sporting. Partilhámos uma coincidência: numa tarde tórrida de 2003, num dez de junho, em Bragança, recebemos juntos a mesma condecoração, talvez a máxima que poderíamos desejar.

Registo aqui o meu sentimento muito sincero de pesar à sua família, mas também a alguns amigos a quem sei que vai fazer muita falta.

sexta-feira, janeiro 23, 2015

Um abraço!

Aquele meu conhecido estava siderado, sem saber bem como interpretar o que lhe acontecera. Ficara "um pouco sem jeito", como dizem os brasileiros, depois de ter recebido um telefonema de um primo que lhe disse:

- Na semana passada, numa viagem a Bruxelas, estive com o "Zé Meireles" (o nome é inventado, claro!), um tipo bem simpático e que foi impecável comigo. Valeu-me, com toda a certeza, o facto de ser teu amigo. Mal ele soube isso, colocou-se à minha disposição, ajudou-me o mais que pôde. Mandou-te um grande abraço!

Não entendi o que é que isso tinha de mal! O tal amigo distante quisera ser simpático e ajudara o seu familiar.

- Isso é o que tu pensas! O tal "Meireles" é uma personagem sinistra, detestável, e não é meu amigo, muito antes pelo contrário. Incompatibilizámo-nos há anos, com sólidas razões, chegámos a vias de facto, nunca nos falámos das várias vezes que nos cruzámos e cheguei a participar dele à Justiça. Detesta-me! Conhecendo-o como de há muito o conheço, a última coisa que ele faria (tenho disso a plena certeza!) era fazer algo para me agradar. E agora manda-me um abraço!? O que é que tu achas?!

Disse-lhe que não achava nada, mas lá que a coisa era estranha, lá isso era! O melhor era ele esquecer o assunto.

- Não posso! O meu primo telefonou-me ontem e perguntou se eu queria alguma coisa para o tal "meu amigo", com quem se ia encontrar de novo. Fui cínico, mas o meu primo, que é um bocadinho "tapado" não deve ter percebido a mensagem que enviei ao figurão.

- O que é que lhe mandaste dizer? 

- Pedi para lhe dizer apenas que eu lhe devolvia o abraço que ele me tinha enviado...

quinta-feira, janeiro 22, 2015

Leon Brittan (1939-2015)


Posso correr o risco de estar a ser injusto, mas tenho a sensação de que Leon Brittan, o antigo comissário europeu que agora faleceu, não tinha um especial apreço por Portugal. Digo-o com a convicção de quem com ele lidou diretamente durante alguns anos, em especial no tempo em que dirigiu a Política Comercial da União Europeia. Nunca o vi demonstrar simpatia pelos interesses específicos do nosso país, num tempo em que o desmantelamento pautal da UE, quer no quadro da Organização Mundial de Comércio quer nos acordos bi-regionais ou com países terceiros, se fez muito à custa dos Estados membros cuja produção tinha um grau de sofisticação tecnológica que ficava aquém da média europeia.

Visitei-o uma primeira vez, logo em fins de 1995, acompanhando Jaime Gama. A corrente claramente não passou entre o então ministro português dos Negócios Estrangeiros e Brittan, que era um poderoso vice-presidente da Comissão, ao tempo sob a frágil liderança de Jacques Santer. Gama expôs-lhe as dificuldades de Portugal, com um tecido industrial em curso de reconversão, em poder praticar cedências no tocante à "oferta" comunitária nas negociações comerciais. Brittan não deu sinais de ter ficado minimamente sensibilizado. Era essa, aliás, a impressão dominante na direção-geral dos Assuntos Europeus onde eu, até então, fora subdiretor-geral.

Brittan tinha um estilo snobe, um sorriso que era um meio esgar e que facilmente podia ser lido como cínico. Sabia-se que fazia o que muito bem lhe apetecia no âmbito da Comissão, e isso mesmo tinha ficado claro para nós durante um anterior encontro com Santer, que manifestamente o não controlava e deixava disso nota. Liberal até à medula, achava que a salvação da indústria e dos serviços da Europa se faria pelos ganhos de mercado exterior dos seus setores mais avançados, com os restantes a terem de suportar o facto de estarem condenados a desaparecer. Quando lhe falávamos das falências que entretanto se sucediam em Portugal, em setores produtivos ainda com uma dimensão apreciável de mão-de-obra e sem esperanças de reconversão por qualificação, percebia-se que isso lhe era praticamente indiferente. 

Sir Leon Brittan, que havia sido "knighted" pela soberana britânica antes de ingressar na Comissão Europeia, foi uma figura com certo destaque na política interna britânica, onde havia sido ministro do Interior e teve um importante cargo no "Treasury". Era uma personalidade brilhante, de uma inteligência rápida, embora com uns modos arrogantes e "untuosos" que não éramos os únicos a considerar supinamente irritantes.

Guardo dele ainda duas outras recordações pouco agradáveis. 

A primeira, um segundo encontro, no seu gabinete, em Bruxelas, quando manifestamente se mostrou enfadado com algumas outras nossas pretensões, já não recordo em que área. Deu a certo passo um grande suspiro. Irritado, levantei-me e, caminhando para a porta, lancei-lhe: "You look very tired! I'll be back when you'll feel better". Arregalou os olhos, balbuciou umas coisas e eu saí, de cara fechada. Dois dias depois, o seu chefe de gabinete telefonou-me para Lisboa, anunciando umas ligeiras concessões, quase "microscópicas". 

A segunda vez foi em Singapura, durante a reunião de lançamento da OMC, em 1996. Pedimos-lhe um encontro, eu e o Fernando Freire de Sousa, secretário de Estado do Ministério da Economia, à margem da reunião preparatória da UE. Foi difícil mobilizá-lo para a ocasião. Transmitimos-lhe a nossa reação negativa face a um inesperado ajuste à lista de "oferta", que excedia o mandato que antes tinhamos acordado em Bruxelas. Eram mais concessões, sempre à nossa custa. Leu o "non-paper" que lhe entregámos, olhou para as "posições pautais" nele inseridas e exclamou: "Oh! Your textiles, again!". Ouviu então uma ou duas coisas de que não gostou. Transmitimos à presidência da UE a nossa posição e o mandato acabou por não "evoluir" muito em nosso desfavor. Mas não por cedência de Brittan, suponho.

Ao longo dos mais de cinco anos em que tive responsabilidades de governo na área dos Assuntos Europeus, Leon Brittan foi talvez o comissário, dentre algumas dezenas com que lidei, com quem senti mais dificuldades de entendimento.

Um dia contei aqui uma história passada num encontro entre António Guterres e Jacques Chirac. Hoje revelo que o comissário europeu referido nesse episódio era Leon Brittan. Que descanse em paz!   

Pensar a Europa


Esta sexta-feira, dia 23 de janeiro, moderarei e serei o relator de um conferência que terá lugar na Casa da Música, no Porto, com início às 9.30 horas.

A conferência, promovida pela representação da Comissão Europeia em Portugal, com o apoio do Centro Jacques Delores, tem por título "Novo Renascimento e Novo Cosmopolitismo" e junta um conjunto de pensadores europeus que irão debater os novos ideais culturais para a Europa, com o objetivo de encontrar o caminho para uma "Nova narrativa para a Europa", lançada pela Comissão. 

Peter Matjašiè, antigo
presidente do Fórum Europeu da Juventude, e os professores Eduardo Paz Ferreira, Marina Costa Lobo e Miguel Sousa Ferro intervirão na iniciativa.

quarta-feira, janeiro 21, 2015

José Quitério


Acaba de ser tornado público que o Prémio Universidade de Coimbra 2015 foi ontem atribuído ao jornalista, crítico e especialista gastronómico José Quitério. Tenho a honra de integrar, a convite do reitor daquela universidade, o júri deste prémio que, no passado distinguiu figuras tão diversas como o pintor Julião Sarmento, a cientista Maria de Sousa, o escritor Alneida Faria, o historiador António Hespanha, o encenador Luiz Miguel Cintra ou o académico Sampaio da Nóvoa, entre muitos outros.

José Quitério, que há semanas encerrou 38 anos de atividade crítica ininterrupta no jornal "Expresso", é um dos expoentes da reflexão sobre esse domínio, cada vez mais importante na cultura das regiões e dos países, que é a gastronomia. Nela se consubstancia muito da história de um povo, das suas viagens e das suas influências, dos seus hábitos e da sua abertura ao mundo. Nos dias que correm, a gastronomia é um fator da identidade dos povos, com relevância crescente na respetiva economia, nos fluxos turísticos e até na saúde pública. José Quitério, nos seus textos que incluem livros muito interessantes sobre as temáticas em torno da história e evolução da gastronomia portuguesa, é um nome de dignifica o prémio que agora lhe foi atribuído por uma universidade que, há muitos anos, também foi a sua.

A hora do senhor presidente

O senhor presidente da República é, constitucionalmente, o garante do regular funcionamento das instituições. 

Há mais de um mês, a Justiça determinou a detenção de um antigo primeiro-ministro, indiciado por crimes da maior gravidade. É um caso muito pouco comum, como todos concordarão. Correm nas instâncias devidas os recursos que a respetiva defesa decidiu interpor sobre esta matéria. Neste domínio, contudo, e não obstante divergências de opinião que possa haver, prevalece um entendimento maioritário de que tudo se processa no quadro da lei. A normalidade do funcionamento das instituições não terá sido posta em causa pela detenção do eng° José Sócrates. É, assim, natural que o senhor Presidente da República não se pronuncie sobre esse assunto. Faz muito bem.

Coincidindo com a detenção do eng° Sócrates e não mais cessando até hoje, a comunicação social tem vindo a ser inundada por informações sobre o processo, que só podem provir da área de quem tem a investigação a seu cargo (não ouvi até agora falar de outras hipóteses). Há mais de um mês, a senhora Procuradora-Geral da República anunciou a instauração de um "rigoroso inquérito" às primeiras quebras do segredo de justiça, cujos resultados, com a necessária responsabilização criminal subsequente, se espera a todo o momento.

Nos últimos dias, porém, os "leaks" sobre o processo aumentaram. Conhece-se agora o teor de escutas telefónicas que, a serem verdadeiras, trazem novas, polémicas e até interessantes cambiantes a todo o processo. Não me custa imaginar o profundo incómodo da senhora Procuradora-Geral, cuja nomeação foi anunciada como uma "lufada de ar fresco" numa PGR criticada, no passado, por vários procedimentos incorretos e até alegadas irregularidades, ao constatar que o trabalho que está a ser executado sob a sua tutela é hoje alvo de sérias "fugas" para a imprensa. À luz de um comunicado da PGR anteontem publicado, deduz-se que um esforço de esclarecimento sobre a ou as origens dessas novas fugas vai ser encetado, com o presumido vigor.

Na pendência das conclusões sobre a origem dessas mesmas fugas, e apenas por virtude da respetiva ocorrência, é-se levado a concluir que subsistem deficiências graves na preservação do segredo da investigação processual - a menos, e não podemos excluir liminarmente essa hipótese, que tudo o que tem aparecido na imprensa não sejam senão "factóides", inventados pela imprensa. E, das duas uma: ou tudo é falso, e a Justiça já deveria ter vindo a terreiro dizer que o que foi publicado não passa de efabulações e especulações de jornalistas criativos e distorsores da verdade, ou as notícias espelham, de facto, dados verdadeiros do andamento do processo e, nesse caso, pareceria curial que a própria Justiça tivesse já investigado a origem do "leak" e lhe tivesse posto termo. Há ainda uma terceira hipótese teórica, embora implausível num Estado de direito democrático: que tenha sido a Justiça, deliberadamente, a fornecer à imprensa o que tem sido publicado. Isso significaria, nesse cenário absurdo e ridículo, que os drs. Ricardo Alexandre ou Rosário Teixeira teriam contribuído dolosamente para colocar no domínio público algumas peças do processo. Passa pela cabeça de alguém esta bizarríssima hipótese? Não passa, claro!

Em qualquer dos três casos (volto a dizer: o último é completamente implausível), verifica-se uma clara deficiência nas instituições, com o seu funcionamento a revelar algumas sérias irregularidades. O que, a contrario, nos leva a concluir que, sem a menor sombra de dúvida, elas não estão a funcionar de modo regular. E, neste caso, volto às primeiras linhas deste texto. Este não é um caso qualquer e o mundo exterior olha-o com atenção, como um verdadeiro teste à fiabilidade da nossa Justiça: no rigor da luta contra a corrupção e outros presumíveis crimes associados, na equidade e respeito escrupuloso pelos direitos dos (futuros, presume-se) acusados, um dos quais é a proteção estrita do processo, em especial num período em que ainda não está deduzida uma acusação.

Ora sendo o senhor presidente da República o garante desse regular funcionamento, e se acaso não vier a atuar de forma decidida e atempada psra repor a normalidade funcional das mesmas, pode vir a suscitar-se, em alguns espíritos movidos por má fé, a ideia de que este seu imobilismo poderia ter alguma coisa a ver com a conhecida acrimónia que mantém face ao eng. José Sócrates. Ora sabendo nós, pela lógica da seriedade institucional, que as coisas nunca poderiam passar-se assentes nessas motivações, seria importante que o senhor presidente explicitasse, com grande brevidade, aquilo que nós presumimos seja a sua profunda incomodidade com as irregularidades que atravessam a Justiça. E o que tenciona fazer para ajudar a pôr-lhes cobro. É que se há um magistrado que não pode ficar sob suspeita, mesmo de inação, esse é o "primeiro magistrado da nação".

terça-feira, janeiro 20, 2015

Ainda Charlie

Há pouco mais de uma semana, a França saiu para a rua unida sob o lema "Je suis Charlie". Nos dias seguintes, em conversas em Paris, não encontrei quem não tivesse participado naquela impressionante manifestação. Nela se juntou um pouco de tudo: o choque, o repúdio, a solidariedade, a defesa da liberdade. Escassos foram, contudo, os que abertamente assumiram que aquele sereno e sentido desfile era também um gesto de libertação.
Desde há anos, uma parte significativa da França vem a acumular um forte e crescente incómodo pela forma com a comunidade islâmica se exprime publicamente no país – nos trajes, nos sinais, na afirmação cultural e religiosa, mesmo que nem sempre com laivos agressivos. Para muitos franceses, trata-se de um inaceitável desafio à matriz de laicidade que faz parte da identidade da sua República.  
Nos anos que vivi naquele país, encontrei imensos cidadãos, mesmo gente de espírito muito aberto, que se mostravam chocados com o desfraldar regular de bandeiras argelinas em jogos de futebol entre equipas francesas. Pessoas a quem impressionava o corte de trânsito em ruas para a prática coletiva de orações muçulmanas. Algumas confessaram-me o seu repúdio ao ouvir apupar a “Marselhesa”, diante do chefe de Estado, no “Stade de France”. Outras, ao cruzar pelas ruas mulheres irreconhecíveis, de niqab ou burca, inquietavam-se pela não aplicação das leis que tal proíbem. O comunitarismo com raízes culturais diversas joga mal com uma sociedade que criou uma certa imagem da sua própria identidade – um reflexo onde, claro está!, há também muito chauvinismo e bastante racismo, na recusa em ver alterada a forma de vida que se tem como francesa.

É por isso que entendo que a manifestação de 11 de janeiro foi também um pouco a “libertação” de que acima falei, foi um "basta!" coletivo à pressão que o politicamente correto do multiculturalismo, dominante no discurso oficial, lhes impunha. Nesse dia, com o sólido alibi da barbárie, muitos franceses, numa espécie de exorcismo coletivo, vieram dizer para a rua o seu desagrado em ter de coabitar com manifestações que não respeitam as leis da República. Confesso que não sei como é que isto vai acabar, porque tenho a sensação, que espero errada, de que as tensões não tenderão a diminuir.
Uma última palavra, um pouco contra a corrente, sobre o “Charlie Hebdo”. A revista era servida por artistas geniais, mas há muito que perdera a sua inocência. Optara por ter a permissiva religião católica e o islamismo como os alvos privilegiados da sua ferocidade gráfica. Não será por acaso que, desde há muitos anos, não se lhe via uma graça sobre a questão judaica ou os campos de concentração, bem como piadas sobre negros ou asiáticos, presentes no início da sua publicação e vulgares no seu antecessor, o “Hara-Kiri”. Porquê? Porque o antisemitismo é hoje um tabu e as anedotas racistas são criminalizadas. E porque a islamofobia não só não tem o estatuto de proteção do antisemitismo como segue em sintonia fácil com o tal sentimento de incomodidade que levou a França à rua, naquele dia 11 de janeiro. Isto tem de ser dito.
(Artigo que hoje publico no Diário Económico)

segunda-feira, janeiro 19, 2015

10 notas em jeito de Twitter

1. Será minha impressão ou o PS mete-se numa imensa alhada ao selecionar, em ano eleitoral, um tema "fraturante" como a regionalização?

2. A entrevista do novo presidente da RTP, ao anunciar que vai "entregar os pontos" às televisões privadas, deve soar a estas como música celestial. Em ano de eleições...

3. Contaram-me esta: qual é a diferença entre o "Charlie Hebdo" e o "Jornal da Madeira". É que este último é dirigido por "fundamentalistas" ... de Jardim!

4. A situação de Sócrates em Évora está a ter como consequência um melhor conhecimento e debate sobre as condições das prisões em Portugal.

5. Primeiro, saiu de cena Alberto João Jardim. Agora, Irina separa-se do mais famoso madeirense. Desde os tempos do padre Frederico que o Funchal não vivia em tanto stress...

6. Numa deselegância escusada face ao Brasil, Henrique Granadeiro afirmou que a Ói teve uma "ética de telenovela". E a aplicação da PT na Rioforte? Foi a "moral de dona Inércia"?

7. Em média, e por dia, param nas Lages menos de dois aviões americanos. O diabo seria se, numa crise futura, muitos aviões necessitassem de aí se abastecer e Portugal tivesse entretanto cortado as facilidades aos EUA.

8. A comer castanhas na rua, dei comigo a pensar: isto é como os emails, deixamos sempre para o fim o que é mais difícil de "descascar".

9. As entrevistas diárias nos telejornais aos treinadores de futebol, filmados numa constelação de publicidade, são uma forma indecente de "placement".

10. O papa Francisco, pessoa aliás estimável, deve cuidar um pouco na forma como diz certas coisas: aquela do "murro" foi uma metáfora infeliz.

domingo, janeiro 18, 2015

Nós e o Syriza

A História não acontece como nós queremos, acontece como tem de acontecer. Assim, é completamente indiferente se gostamos ou não da hipótese do Syriza vir a ganhar as eleições gregas de dia 25: quem vota são os gregos, embora as consequências do resultado desse sufrágio possam refletir-se sobre nós. Para o bem e para o mal, sendo este "e" disjuntivo, se bem me faço entender.

Devo dizer que, em tese, não me desagrada a ideia de que alguém possa vir a agitar as águas europeias e obrigar a coligação política, chefiada por Berlim, que dá pelo nome de União Europeia, a reagir a alguma posição mais radical que um governo liderado pelo Syriza possa vir a apresentar, em termos da renegociação da sua dívida pública, num tempo em que "está tudo nas encolhas" por essa Europa, onde mesmo umas tímidas iniciativas de Jean-Claude Junker e anúncios de Mario Draghi são vistos por alguns como uma espécie de revolucionário "New Deal". 

No fundo, esta atitude de tíbio atentismo não deixa de ser uma cobardia da nossa parte: não "mexemos uma palha" e deixamos que os gregos assumam os riscos, que sejam eles a "ver-se gregos", se for esse o caso. Se tiverem êxito, qualquer que seja a medida deste, estaremos "à bica" para sermos "free riders" da flexibilidade que daí puder vir a decorrer para Estados em situações similares. Se falharem, se a Grécia mergulhar numa grave crise, por virtude da relutância europeia em dar acolhimento às novas propostas gregas, estou mesmo a ver que o objetivo oficial português vai ser "tirar o cavalo da chuva", isolando os gregos, tentando que essas retaliações nos não salpiquem. Mais do que isso: já imagino os cultores da conhecida escola "não somos a Grécia!" a mostrarem-se mais papistas do que o papa, a relevar o nosso esforço de ajustamento, a mostrar, com orgulho de "marrão", as notas dadas ao "bom aluno" da escola alemã.

Volto ao início: serão os gregos a escolher. Mas será também o governo português a estar à mesa do "eurogrupo" a apreciar as consequências de uma eventual vitória do Syriza. Infelizmente, temo que  quem por aí nos irá representar nessa circunstância acabe por assumir uma atitude mais subserviente àquilo que Berlim quiser fazer do que seria a de alguns "länder" alemães.

sábado, janeiro 17, 2015

Leituras

Há minutos, "abri" o blogue de uma pessoa amiga. Nesse instante, dei-me conta de que, vai para mais de uma semana, não visitava nenhum blogue. É verdade, não me orgulho disso, mas perdi o hábito, que mantive durante vários anos, de ler regularmente alguns blogues. Nunca fui um grande visitador de blogues e muito menos tenho o hábito de os comentar. Porém, uma vez por semana, costumava dar uma vista de olhos por uns quatro ou cinco que tinha como "favoritos" (entretanto, deixei de ter links de "favoritos", obrigando-me ao esforço de ir caso-a-caso pelo Google, a fim de evitar ficar "addicted"), quase todos alimentados por pessoas com ideias que sabia diferirem das minhas. Às vezes, visitava um blogue de alguém amigo, só para ver como as coisas andavam por lá. Agora... quase nem isso! Praticamente, só vou aos blogues quando me chamam a atenção para um determinado texto.

Faço esta confissão aqui... num blogue que escrevo com o objetivo de que seja lido (embora também o seja para arrumar memórias, sintetizar ideias e deixar alguns desabafos). Espero que os eventuais bloguistas que por aqui passem não levem a mal esta revelação. Mas é o ritmo da vida que assim me obriga.

Salman Rushdie


Ontem vi na TV uma intervenção de Salman Rushdie, numa universidade americana. Defendia a liberdade da blasfémia e a possibilidade das religiões serem objeto de toda e qualquer crítica, à luz da sua interpretação da liberdade de imprensa. Uma posição que não é surpreendente para quem foi alvo de uma miserável "fatwa", uma ordem religiosa emitida por um qualquer "ayatolah" iraniano, que apelou a que os crentes muçulmanos executassem Rushdie onde quer que o encontrassem. Ele seria um blasfemo criminoso, numa interpretação da lei corânica, por ter publicado, em 1989, o livro "Versículos satânicos", em que a figura de Maomé saía maltratada. (Falo "de ouvido", porque, desde então, ainda não consegui ter tempo ou paciência para tirar o livro da estante onde o tenho e lê-lo). É difícil de imaginar como terá sido (ainda será?) terrível a vida de Rushdie ao longos destas décadas, perseguido pela mesma intolerância que agora assassinou os caricaturistas do "Charlie Hebdo". Embora com mais sorte.

Uns anos antes desse episódio, nas salas do Protocolo do nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros, creio que em finais de 1987 ou início de 1988, ocorreu uma receção oferecida por ocasião de um congresso internacional de escritores. Como sempre acontece em ocasiões similares, os portugueses juntavam-se em grupinhos entre si, deixando os estrangeiros à sua própria conta. Notei que uma figura com um ar bizarro, com uma cara algo mefistofélica e pouco comum, se passeava sozinho e olhava, com atenção, a grande tapeçaria que serve de cenário ao grande salão. Ao vê-lo assim isolado, e por uma questão de cortesia, apresentei-me e expliquei-lhe a versão que tinha do significado da cena que era retratada nessa bela peça decorativa. Ele fez um ou outro comentário sobre o palácio onde estávamos, que eu terei referido ter sido residência real até ao dia da implantação da República, como quase sempre faço com estrangeiros, para encher conversa por ali. Ter-me-á dito o seu nome, que não fixei. Apenas anotei que nascera na Índia e vivia em Londres. Fixei aquele fácies pouco comum, mas logo esqueci o episódio. Até ao dia em que Salman Rushdie passou a ser notícia, em todo o mundo.

Alguns anos passaram. Um dia, creio quem em 1993, recebi na embaixada em Londres, onde estava colocado, um telefonema de um dirigente da Juventude Socialista, que eu só conhecia de nome. O seu nome era António José Seguro. Queria falar com o embaixador, que estava ausente nesse dia. Falou comigo, que o substituía. Queria transmitir à embaixada a sua preocupação pelo facto do balcão da TAP, na capital britânica, se recusar a emitir um bilhete para Salman Rushdie se deslocar a Portugal, creio que ao Porto, a uma iniciativa para a qual a JS o tinha convidado. E pedia a nossa intervenção. 
 
Rushdie estava no auge da sua "glória", mas também dos elevados riscos que estava a correr. António José Seguro explicou-me que estava previsto que o escritor viajasse sob pseudónimo, como já acontecera noutras ocasiões, para outros destinos, e que a sua segurança em Portugal estava plenamente assegurada pelas nossas autoridades, onde o comando da PSP tinha o assunto a seu cargo. Expliquei que nada podia fazer, porque desconhecia as regras, em matéria de segurança, pelas quais a TAP se regia. Podia, no entanto, facilitar-lhe um contacto com o diretor da companhia no Reino Unido, a quem ele poderia expor diretamente o problema. Assim fiz. Ao diretor da TAP, sumariando o problema, disse-lhe do telefonema que ia receber. E esqueci o assunto.

Até que, dias depois, mo "lembraram". Mão atenta, da alta hierarquia política no MNE, decidiu pedir ao secretário-geral do Ministério para me instaurar um inquérito, por eu, alegadamente, ter "feito pressão" sobre a TAP para aceitar um passageiro de alto risco, numa deslocação que era "totalmente desconhecida" das autoridades portuguesas. O homem da TAP em Londres deu-me a sua palavra de que não dissera a Lisboa que tinha havido qualquer "pressão" da minha parte, eu informei formalmente o MNE do nome do comandante-geral da PSP que Seguro me dissera estar, desde o inicio, ao corrente do assunto. A questão, não sem alguns outros episódios pouco edificantes pelo meio, acabou por morrer e, até hoje, fiquei mesmo sem saber se Salman Rushdie veio ou não, de novo, a Portugal. Ainda um dia perguntarei isso a António José Seguro, que já nem se deve recordar daquela nossa conversa e, com toda a certeza, nunca soube do problema que ela me trouxe.
 
Aqui fica mais uma das minhas histórias dos outros, para utilizar o título genial das memórias do jornalista brasileiro Zuenir Ventura.

sexta-feira, janeiro 16, 2015

O nosso país


Há uns anos, referi-me por aqui a um dos "pecadilhos" tradicionais de alguns diplomatas: ficarem convencidos com os argumentos dos países onde estão acreditados e tenderem a explicar ao seu próprio governo as razões dos seus anfitriões. Chama-se a isso, na gíria diplomática, "to go native". Quando um diplomata se deixa cair nesta atitude, a melhor solução é retirá-lo de imediato do posto. Não se paga a ninguém para representar os interesses dos outros, porque a regra primeira da diplomacia é "my country, right ou wrong". Ao longo da minha carreira foi-me sempre perfeitamente indiferente se o país que me acolhia tinha ou não razão numa questão bilateral connosco. Eu estava lá para defender a nossa posição, por mais absurda que ela fosse. Quem não perceber isto e assim não pensar é melhor escolher outra profissão.

Lembrei-me disto hoje, ao almoço, ao ouvir o embaixador americano em Lisboa, Robert Sherman, que tive o gosto de ter como meu convidado para uma tertúlia de amigos. Contava ele que o antigo "Secretary of State" (designação dada ao ministro dos Negócios Estrangeiros, nos EUA), George Shultz, tinha no seu gabinete um grande globo, com o desenho de todos os países do mundo. Quando recebia alguém que havia sido nomeado embaixador dos Estados Unidos da América para um determinado posto, costumava pôr o globo a rodar e, quando ele parava, perguntava ao recém-designado chefe de missão: "Aponte aí o seu país". O homem (ou a mulher), que havia estudado bem a sua lição, até para poder passar no exigente escrutínio pelo Congresso, logo descortinava e designava no globo o Estado em cuja capital iria servir nos próximos tempos. Shultz corrigia-o de imediato: "Está enganado! O seu país chama-se Estados Unidos da América!".

Uma bela lição!

XXI


Vai ser publicada a edição de 2015 da "XXI, Ter Opinião", a revista anual da Fundação Francisco Manuel dos Santos (nesta edição surge a indicação 1º semestre, o que faz presumir dois números no corrente ano) dirigida agora por António José Teixeira e João Morgado Fernandes e dedicada este ano às cidades.
 
Os autores são muitos, desde António Mega Ferreira a Alexandra Lucas Coelho, de Alexandre Quintanilha a Augusto Mateus, de Mário Mesquita a Maria João Valente Rosa, de José Manuel Felix Ribeiro a Pedro Lomba, de Miguel Esteves Cardoso a Fátima Bonifácio, de António Barreto a João Marques de Almeida, de Manuel Vilaverde Cabral a Pedro Mexia, de Vitor Bento a Carlos Fiolhais. Uma revista que ninguém poderá acusar de não ser plural. Ao lado de Lídia Jorge, Gisela João e José Avillez também eu publico por lá a minha ideia para cidade.

O lançamento será no dia 22, no Mercado da Ribeira, onde não vou poder estar.

quinta-feira, janeiro 15, 2015

Blake & Mortimer

As sequelas desenhadas por Yves Sente e André Juillard, inspiradas nos desenhos inimitáveis de Edgar P. Jacobs, são "the next best" face aos originais do grande desenhador da escola belga de banda desenhada, que nos deu obras primas como "A Marca Amarela" ou "O Mistério da Grande Pirâmide".
 
Saiu agora "La bâton de Plutarque" (que já tem versão portuguesa, para quem se não sinta à vontade com o francês), que traz a curiosidade de ser uma história em que Francis Percy Blake e Philip Mortimer "passaram" em frente à nossa costa, fazendo uma leitura da posição portuguesa na II guerra mundial. Está-se mesmo a imaginar, aliás, a "preocupação" dos aviões da "pérfida Albion" em não quebrarem a "neutralidade" lusitana ("neutralidade colaborante", chamava-lhe Salazar)... Ou seria o medo à nossa poderosa DCA?

quarta-feira, janeiro 14, 2015

Ao acordar

Numa prática que segue modelos de outros países, o site "Observador" (o "360°", assinado por David Dinis)  e, desde há dias, o de o "Expresso" (o "Expresso Curto", assinado alternadamente por Pedro Santos Guerreiro e Ricardo Costa) oferecem-nos, logo pela manhã dos dias úteis, duas "cartas" assinadas pelos respetivos diretores, contendo uma revista do dia anterior e propostas para o dia corrente, tudo isso com utilíssimos links para outras publicações, nomeadamente internacionais. 

Quem quiser estar a par do quotidiano, tendo a certeza de não perder o essencial, tem agora estes excelentes instrumentos informativos ao seu dispor, nos quais basta inscrever-se. Dirão alguns que, num caso ou noutro, as escolhas são contestáveis. Teriam sempre que o ser, como é típico de qualquet escolha. Mas um caso há em que isso parece deliberado. É o que acontece com o "Macroscópio", uma newsletter que o "Observador" oferece ao final da tarde, assinada por José Manuel Fernandes, com uma seleção de links que claramente privilegia as opções ideológicas do seu autor, excluindo vária outra informação, o que é pena. 

Uma nota, neste domínio da leitura informática, para o surgimento, em Espanha, de um novo site, o El Español. Em Madrid já funcionava o magnífico El Confidencial, que é um produto de grande qualidade, em especial na área económica. Cada vez mais, a boa informação começa a centrar-se na internet.

Já que falamos de informação, desta vez não informática (ou "numérique", como teimam em dizer os franceses), uma nota para a edição de hoje do "Charlie Hebdo": esgotou logo às primeiras horas da manhã. Nenhuma das tabacarias por onde passei, aqui por Paris, tem um único exemplar. É claramente um "número de culto", apenas para coleções. Daqui a semanas, tudo voltará ao que era, como é da lei da vida.

terça-feira, janeiro 13, 2015

Luis Ochoa

Acabo de saber da morte de Luis Ochoa, um jornalista especializado em assuntos europeus que sempre me habituei a admirar e respeitar. Conheci-o em Bruxelas e, mais tarde, cruzei-me por diversas vezes com ele em Lisboa, na RDP, onde assumiu lugares de relevo. Era um "gentleman", de uma grande competência profissional e de um trato pessoal inultrapassável. 

Vão desaparecendo os "homens da Europa" da nossa comunicação social. Há anos, foi o Fernando Balsinha, mais tarde o Rui Moreira, há poucas semanas, o Fernando de Sousa. Agora, o Luis Ochoa. Um sentido abraço para a família do Luís.

Os borregos

Pierre Bourguignon foi, ao tempo em que eu era embaixador em França, um dos grandes amigos de Portugal. Deputado à Assembleia Nacional franc...