sábado, janeiro 17, 2015

Salman Rushdie


Ontem vi na TV uma intervenção de Salman Rushdie, numa universidade americana. Defendia a liberdade da blasfémia e a possibilidade das religiões serem objeto de toda e qualquer crítica, à luz da sua interpretação da liberdade de imprensa. Uma posição que não é surpreendente para quem foi alvo de uma miserável "fatwa", uma ordem religiosa emitida por um qualquer "ayatolah" iraniano, que apelou a que os crentes muçulmanos executassem Rushdie onde quer que o encontrassem. Ele seria um blasfemo criminoso, numa interpretação da lei corânica, por ter publicado, em 1989, o livro "Versículos satânicos", em que a figura de Maomé saía maltratada. (Falo "de ouvido", porque, desde então, ainda não consegui ter tempo ou paciência para tirar o livro da estante onde o tenho e lê-lo). É difícil de imaginar como terá sido (ainda será?) terrível a vida de Rushdie ao longos destas décadas, perseguido pela mesma intolerância que agora assassinou os caricaturistas do "Charlie Hebdo". Embora com mais sorte.

Uns anos antes desse episódio, nas salas do Protocolo do nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros, creio que em finais de 1987 ou início de 1988, ocorreu uma receção oferecida por ocasião de um congresso internacional de escritores. Como sempre acontece em ocasiões similares, os portugueses juntavam-se em grupinhos entre si, deixando os estrangeiros à sua própria conta. Notei que uma figura com um ar bizarro, com uma cara algo mefistofélica e pouco comum, se passeava sozinho e olhava, com atenção, a grande tapeçaria que serve de cenário ao grande salão. Ao vê-lo assim isolado, e por uma questão de cortesia, apresentei-me e expliquei-lhe a versão que tinha do significado da cena que era retratada nessa bela peça decorativa. Ele fez um ou outro comentário sobre o palácio onde estávamos, que eu terei referido ter sido residência real até ao dia da implantação da República, como quase sempre faço com estrangeiros, para encher conversa por ali. Ter-me-á dito o seu nome, que não fixei. Apenas anotei que nascera na Índia e vivia em Londres. Fixei aquele fácies pouco comum, mas logo esqueci o episódio. Até ao dia em que Salman Rushdie passou a ser notícia, em todo o mundo.

Alguns anos passaram. Um dia, creio quem em 1993, recebi na embaixada em Londres, onde estava colocado, um telefonema de um dirigente da Juventude Socialista, que eu só conhecia de nome. O seu nome era António José Seguro. Queria falar com o embaixador, que estava ausente nesse dia. Falou comigo, que o substituía. Queria transmitir à embaixada a sua preocupação pelo facto do balcão da TAP, na capital britânica, se recusar a emitir um bilhete para Salman Rushdie se deslocar a Portugal, creio que ao Porto, a uma iniciativa para a qual a JS o tinha convidado. E pedia a nossa intervenção. 
 
Rushdie estava no auge da sua "glória", mas também dos elevados riscos que estava a correr. António José Seguro explicou-me que estava previsto que o escritor viajasse sob pseudónimo, como já acontecera noutras ocasiões, para outros destinos, e que a sua segurança em Portugal estava plenamente assegurada pelas nossas autoridades, onde o comando da PSP tinha o assunto a seu cargo. Expliquei que nada podia fazer, porque desconhecia as regras, em matéria de segurança, pelas quais a TAP se regia. Podia, no entanto, facilitar-lhe um contacto com o diretor da companhia no Reino Unido, a quem ele poderia expor diretamente o problema. Assim fiz. Ao diretor da TAP, sumariando o problema, disse-lhe do telefonema que ia receber. E esqueci o assunto.

Até que, dias depois, mo "lembraram". Mão atenta, da alta hierarquia política no MNE, decidiu pedir ao secretário-geral do Ministério para me instaurar um inquérito, por eu, alegadamente, ter "feito pressão" sobre a TAP para aceitar um passageiro de alto risco, numa deslocação que era "totalmente desconhecida" das autoridades portuguesas. O homem da TAP em Londres deu-me a sua palavra de que não dissera a Lisboa que tinha havido qualquer "pressão" da minha parte, eu informei formalmente o MNE do nome do comandante-geral da PSP que Seguro me dissera estar, desde o inicio, ao corrente do assunto. A questão, não sem alguns outros episódios pouco edificantes pelo meio, acabou por morrer e, até hoje, fiquei mesmo sem saber se Salman Rushdie veio ou não, de novo, a Portugal. Ainda um dia perguntarei isso a António José Seguro, que já nem se deve recordar daquela nossa conversa e, com toda a certeza, nunca soube do problema que ela me trouxe.
 
Aqui fica mais uma das minhas histórias dos outros, para utilizar o título genial das memórias do jornalista brasileiro Zuenir Ventura.

4 comentários:

Abraham Chevrolet disse...

Netos da gente que não foi com o Vasco da Gama!

Joaquim de Freitas disse...

O combate de Salman Rushdie está longe de ser ganho. Basta ver o que se passou ontem na Sky News, cadeia de informação importante no UK, onde o jornal de Charlie foi proibido imediatamente quando uma jornalista do jornal o apresentava diante da câmara. Aliás, todas as cadeias britânicas não "ousaram" mostrar a "une" do jornal.

Mesmo se não aprecio este jornal satírico, ofensa à inteligência ou não, não há duvida nenhuma que nos encontramos hoje no ocidente perante um desafio à liberdade de expressão,
imposto por uma religião e certos regimes teocráticos obscurantistas que são nossos nossos aliados.

Este atentado marcará a nossa história contemporânea. Resta a saber em que sentido e quais serão as consequências. No contexto actual de "guerra contra o terrorismo" (guerra exterior) e de racismo e de islamofobia de Estado, os actores deste acto aceleraram, conscientemente ou não, um processo de estigmatização e de isolamento na Europa, da componente muçulmana (5 milhões só em França) , real ou suposta, das classes populares.

E o que seria desastroso, é que não se tenha em conta as causas profundas e imediatas, que se isolem as consequências do contexto que as fizeram emergir e de não inscrever um acontecimento tão grave na genealogia dos factores que a tornaram possível. Porque todos sabemos quais são. Mas fechamos os olhos tempo demais.

O mundo não morre, ele está a ser assassinado e os assassinos têm um nome e um endereço.

septuagenário disse...

De gigante a atitude dos INGLESES na garantia de segurança do seu cidadão indiano.

Ingleses indescritíveis!

patricio branco disse...

uma boa historia para umas memórias, é só desenvolver. rushdie olhando a tapeçaria. teria ou não regressado a lisboa? porque não tentou voar na ba?
se tem assim tanta vontade de voltar a blasfemar, ou é um homem sem medos, ou um teimoso, ou um inconsciente dos perigos, para quem já os experimentou, ou quer ver os outros sofrer consequencias, ou não sei qual a intenção dele.
pressão sobre a tap, portanto, disseram eles...

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