quinta-feira, agosto 28, 2014

Os ponteiros do Zé Foquita

Nesta cálida noite de Vila Real, lembrei-me do José Araújo, o Zé "Foquita", como a cidade lhe chamava, sei lá bem porquê. 

Um dei hei-de aqui falar um pouco mais do Zé, esse amigo, um pouco mais velho do que eu, que já se foi há um bom par de anos. O seu primeiro carro, que me lembre, era um "Mini", que comprou no regresso da tropa. Nele se passeava, ar grave e melena ao vento, pelas noites de Vila Real. O Zé não era uma pessoa fácil, irritava-se por dá-cá-aquela-palha, por isso tinha poucos mas fiéis amigos. Com orgulho, fui um deles. Foram décadas de conversas, intervaladas por longos meses e por universos pessoais cada vez mais distantes, mas próximos pelo passado comum. Sempre que nos encontrávamos, reatávamos a charla como se a última tivesse sido na véspera.

Na Vila Real da minha juventude, o "passeio dos tristes" automobilístico fazia-se pelo tradicional circuito, um percurso na periferia urbana, com 6.925 metros, como sempre aprendi, onde anualmente se faziam "as corridas" - uma "mania" da cidade introduzida ainda na primeira metade do século passado, que, aí por julho, lhe dava um ar cosmopolita e a colocava no mapa do desporto nacional. O circuito teve altos e baixos, tendo sido reativado - e bem - este ano, embora já com percurso diverso do tradicional.

A "volta ao circuito"  - onde nunca pensei acabar por vir morar, quando agora por aqui passo uns dias - iniciava-se pela "marginal". (Vila Real não parece mas tem um rio, "lá ao fundo", o Corgo, que se junta com o Cabril "atrás do cemitério" e que dá um ar da sua graça no inverno, e daí a "ousadia" de pretender ter uma "avenida marginal", que não tem esse nome, mas que conhecemos assim, os que a vimos nascer). Saía-se para o circuito pela garagem Loureiro, junto ao quartel velho, passavam-se as tascas do Necas e do Carrico, logo depois eram a casa do Salsa Verde e a "do brasileiro", seguia-se à borda da imensa quinta do Teixeirinha até ao cruzamento para o quartel novo e à garagem Renort.  Descia-se então à ponte da Timpeira (antecedida de duas curvas históricas), subia-se por Abambres, passando pela tasca da Maria do Carmo (hoje um simpático restaurante), atravessando a linha do comboio. Pouco depois, chegava-se à celebrada reta de Mateus (bem pequena, aliás), com a tasca do Coelho, antes de começar a descer, abordando as difíceis curvas de entrada e saída do Bairro dos Prazeres. Prosseguia-se o caminho estreito para a ponte metálica, passando antes entre a garagem do Antoninho do Talho e a casa do Granjo, para logo surgir a passagem de nível da estação ferroviária e o colégio. Ultrapassada a ponte e a subida pela tasca da Cardoa, chegava-se à difícil curva da Areias (pensão histórica da cidade) ou da Salsicharia, dependendo do ângulo e dos gostos. E, lá ao fundo, depois da entrada para o parque florestal e da garagem do Rosas, fechava-se "a volta ao circuito". Que estranho! Um circuito de garagens e tascas, deverá estar a pensar o leitor. E fui parco, creia, na menção das últimas...

Na minha vida, devo ter feito este percurso do circuito largas centenas de vezes, frequentemente à conversa, "nas calmas", ouvindo música, noutras ocasiões "a acelerar", em "picanços" noturnos, a que sobrevivi incólume, ao contrário de outros, menos felizes. É que era assim a vida nesta cidade pequena, algo abafada e monótona, no final dos anos 60 e início dos 70. 

Também com o meu amigo Zé "Foquita" fiz muitas dezenas "de circuitos", sempre devagar, conversando, ele fumando os muitos sonhos nunca realizados, eu "pintando-lhe" a vida do Porto e, depois, de Lisboa, onde entretanto passara a viver. Nesses tempos do petróleo a pataco, ainda os árabes andavam quietos e baratos, recordo-me de metermos "sete e quinhentos da normal", na bomba do Platas, em frente ao Tocaio, apenas para dar uma volta ao circuito. Mas, com ele, não me recordo de ter feito nunca o percurso no sentido que atrás descrevi. Fi-lo sempre na direção inversa. O Zé obstinava-se em percorrer o circuito "ao contrário dos ponteiros do relógio", ao reverso do das "corridas". Sempre. Porquê? Provavelmente porque, como dizia o meu pai de algumas pessoas teimosas, ele sempre "andava contra o vento". Nunca soube porque o fazia e também creio que nunca lhe perguntei. É melhor assim. Ter pequenos e desimportantes mistérios que nos ficam para a memória feliz da vida.

6 comentários:

Club Español de LamasL disse...

Senhor embaixador, que bom recordar momentos e personagens da "bila". O senhor e o Zé Foquita, era assim que eu e o meu irmão o tratavamos, eram alguns dos clientes da Pompeia por quem o meu pai (Neves) tinha grande consideração e amizade. O senhor embaixador, para ele, sempre foi o "Quico". De si, com quem em miúdo, não tive o prazer de conviver, ao contrário do Zé, guardo em meu poder um crachá de uma certa organização sinistra que um dia, depois do 25 de abril, ofereceu ao meu pai. Um abraço, Aníbal Liberal Neves

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Aníbal Liberal Neves. Tem toda a razão: era "Zé Foquita" e não "Zé Foquinha". É que eu nunca o tratei por esse nome. Graças a si, vou corrigir.
Falei já do seu saudoso Pai aqui: http://duas-ou-tres.blogspot.pt/2012/12/sabem-o-que-e-gomes-maioria-dos.html. Mas um destes dias vou escrever sobre a Pompeia. Muito obrigado pelo seu comentário.

patricio branco disse...

boa crónica, tempo e espaço, quem, onde e quê, dá vontade de ir a vila real, de carro, visitar a cidade, fazer o percurso, passar pela marginal, etc

cma disse...

e então a bomba de gasolina da D MIQUELINA ao lado direito da igreja d s pedro
quem se lembra

Agomes disse...

Nascido e criado em Vila Real, onde ainda vivo, apesar de alguns interregnos, adorei reviver Vila Real através da sua crónica. Penso existir nela uma pequena falha, que foi não mencionar a tasca do Coelho na recta de Mateus.
Um grande abraço.

Anónimo disse...

Obrigado por recordar tão "belo" percurso.
Este seu "período" saudosista sabe bem a que lê em Timor.

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