segunda-feira, julho 07, 2014

Ainda Carlos do Carmo

Não consegui ir à homenagem que a Câmara Municipal prestou a Carlos do Carmo. Mas, ao ler um miserável artigo de opinião ontem publicado no "Diário de Notícias", onde se amesquinha o prémio internacional recebido pelo cantor, apeteceu-me dar nota de algo que tem sido pouco sublinhado, mas que merece ser dito: o papel de Carlos do Carmo na aceitação política do fado.

Como canção identitária do país, o fado foi instrumentalizado com algum cuidado pela ditadura. O Portugal passadista, sentimental, a tanger a pobreza e a desgraça, que muitas letras do fado tradicional espelham, ia bem com o paradigma do regime de então. Enquanto o povo rimasse "amar" com "luar", para usufruto de turistas e salões marialvas, Portugal viveria tão "habitualmente" como Salazar gostava. A genialidade de Amália fazia bem a ponte entre todos esses mundos que apreciavam o fado, embora o sobrolho do regime se tivesse começado a franzir quando ela convocou poetas a sério para usufruto da sua voz. Mas o fado, com Fátima e o futebol do Benfica, era a caricatura popular de um Estado que de Novo já só tinha o nome. Até que caiu.

Chegados a abril, o fado sofreu a ressaca de tudo o que surgia ligado ao tempo que passara a ser um passado demasiado pesado para ser louvado sem risco. A demagogia fácil, que por esses magníficos dias também se instalou, transformou Amália no bode expiatório de todo o mundo fadista, com a canção a ser tida por um verdadeiro hino da reação. Nos meios de esquerda, o fado passou por tratos de polé. Lembro-me bem da condescendência irritada de amigos meus quando, no auge dessa onda, onde só se ouviam trovas revolucionárias e militantes, eu louvava a beleza do "Não venhas tarde" ou o "Nem às paredes confesso". Não me arrependo, claro.

Foi então que surgiu Carlos do Carmo. O fadista era "de esquerda", próximo do Partido Comunista. Fadista e comunista? Assim era e foi assim que, em grande parte pela sua mão e pela sua voz, com José Carlos Ary dos Santos à mistura, o fado se "segurou" nessa criativa mas também destruidora agitação. Em 1975, Carlos do Carmo seria o intérprete único do então importante concurso nacional em que se escolhia a canção que representaria Portugal na Eurovisão. Mesmo assim, alguma esquerda demorou tempo a "chegar" ao fado. Outra, suspeito eu, continua a olhar para ele como um rito alfacinha (um seu setor, de que nunca fiz parte, delicia-se com a napolitana versão coimbrã, salva da "tormenta" de 74 por via de José Afonso e Adriano Correia de Oliveira), desconfiando sempre da sua perversa influência melancólica, da apropriação aristocrática e sua banalização turística. Coitados, não sabem o que perdem!

A Carlos do Carmo, para além da contribuição para o seu património de algumas belas melodias, o fado deve muito daquilo que hoje é na memória de Portugal e do mundo, como canção que é, tal como os presidentes da República dizem sempre serem, mesmo quando o não são, "de todos os portugueses".

15 comentários:

Unknown disse...

Caro Francisco

1) Adoro fado;

2) Em "puto" cantei-o com o Carlos Ramos, na "Toca" a apadrinhar-me. Tinha 17 aninhos e já cantava o "Não venhas tarde, dizes-me tu com carinho..."

3) Mas a Dona Glória Ferreira, minha mãe (que administrava justiça com uma colher de pau) calou-me o pio, pois o que eu tinha de fazer era ir para a Universidade e fazer-me "doutor" no que quer que fosse...

4) Perdeu-se, assim, uma vocação que antevia uma grande carreira fadista...

5) O Carlos do Carmo é só o... Carlos do Carmo. Toda a gente o felicitou pelo Grammy mais do que merecido. Só uns escribas tentaram diminuir o êxito da figura maior do fado de hoje - e, quiçá, de sempre.

6) Infelizmente o actual inquilino do palácio de Belém não o felicitou. Que melhor prova do vingativo que o sôr Silva é? O Carlos do Carmo diz que não gosta dele? Então, prontos (sem s) não o felicito como faço a outros cidadões! Se fossem as vacas sorridentes dos Açores o homem felicitava-as...

7) Nem a Virgem de Fátima o ajudou; deve estar cansada de interferir para que corresse bem uma avaliação da troika.

8) Quosque tadem Aníbal abutere patientia nostra?

Abç

iseixas disse...

De facto há uma dimensão da pequenez que ofusca o discernimento...
Também acho Carlos do Carmo um Senhor da nossa música com uma voz inigualável.

Prémio bem merecido.

Anónimo disse...

O Sr. Embaixador acaba de demostrar que os 3 F nada têm a ver com os regimes, seja a ditadura ou a democracia, e que a inveja e a caturrice são características bem vincadas neste povo!
O Fado é uma canção só portuguesa e o Carlos do Carmo defende-a muito, muito bem. Só por isso deveria ser medalhado no 10 de junho (não sei se já foi). Quanto à política é lá com ele. (adoro “ouver” elton John e o fredy apesar de tudo)
Em Inglaterra já seria Sir Carlos do Carmo há muito tempo!
antónio pa

Anónimo disse...

Para Antunes Ferreira: quousque tandem, não qosque tadem (gralha) Aníbal (Catilina), abusarás da da nossa paciência. Que é vingativo, é. O seu fairplay não existe, tal como está desprovido de sentido de humor

Anónimo disse...

Gostei muito deste texto que nos fala do fado e como ele era visto em tempos recentes naquela trilogia dos "éfes"... Mas para o "F" do Futebol não deve apenas ser restringido" ao "futebol do Benfica"! Apetece-me dizer (apenas neste caso - e não sou Benfiquista) "abaixo o Benfica" !
O "F" era um "F" de Futebol Prezado Embaixador! Tire lá aquele "beliscão" ao Benfica porque o "Puorto" o Sporting, o Braga, o Belenenses... merecem o mesmo trato!
Apenas aceitaria distinguir o Lourosa, para recordar o José Mário Branco, senão futebol é futebol...
Agora a propósito de Carlos do Carmo, penso que ele é mais do que um excelente fadista e é um artista a quem o sucesso não embebeda. Não apreciaria mesmo nada que este merecido prémio viesse "bolir" com a sua postura de homem popular. É um grande Fadista, sabe que o é e sabe ser discreto.
Recordo esta sua postura recente na véspera de uma atuação numa associação portuguesa aqui na região de Paris onde tomou acento muito simplesmente numa só cadeira à mesa de um restaurante sem provocar qualquer alarido à sua volta...
E até duvido que a ausencia de felicitações de Cavaco Silva, que não é muito afeiçoado a estas coisas de cultura, tenha afetado o orgulho de Carlos do Carmo tanto como José Saramago exprimiu na altura do seu prémio Nobel...
José Barros

Anónimo disse...

O fado pode ser cantado muito bem sem uma grande voz: Alfredo Marceneiro tinha uma grande voz? Mas no caso de Carlos do Carmo isso não é verdade. Tem uma voz formidável ( sai à mãe). Isso não impede de o julgar um grande parvalhão, passe o exagero literário.
João Vieira

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Anónimo das 19.39. Não há nenhuma "bicada" ao Benfica, como não há ao fado. O Benfica mobilizou todos os portugueses nesses anos 60, comigo incluído. O aproveitamento que o regime fez da justa projeção internacional daquele clube é o meu ponto.

opjj disse...

Caro Dr. Seixas da Costa, o caracter faz parte da educação que se recebeu do berço e dos ensinamentos adquiridos.
Alguém que se refere ao nosso PR-Cavaco Silva como " aquela coisa em Belém" não tem carácter e é um mal formado e por isso merece desprezo.Mais, é um rancoroso subtil.Infelizmente há sempre quem veja o filme ao contrário.Interesses.
Cumps.

Helena Sacadura Cabral disse...

Francisco
Já escrevi no meu blogue sobre a justiça deste prémio dado a Carlos do Carmo. Discordamos politicamente, mas sou amiga da família e fiquei muito feliz com esta distinção. E é ela e o fado que estão aqui em causa. Porém, houve outro fadista de alto gabarito também, que se tem batido pelo fado e por cantar os nossos grandes poetas, que é João Braga. São - dos da sua geração -, dois grandes artistas!

Unknown disse...

"Anónimo" das 09:47

Tem toda a razão. Foi um lapso do "teclado"... :-) :-) :-)

Muito obrigado

Abç

Anónimo disse...

O Fado:
Será que deixou de ser entendido como "Arte Burguesa" que foi o horror dos horrores em arte??
Na "luta de classes", na qual estamos inseridos, o que interessa é: o campesinato, o proletariado e a classe média assaltarem o poder para ascender à burguesia a qualquer preço ou custo. Se se vão encantar com arte como o Fado, o qual puxa ao sentimento, perdem a garra e antes de lá chegarem já pensam como os burgueses decadentes.
Desculpem-me estas palavras mas tenho uma atenuante: não sou politizado e por isso tenho estes pensamentos deslocados.

patricio branco disse...

amalia e carlos do carmo, agentes da internacionalização do fado, grandes interpretes, magnificas vozes e dicção, digna e boas presenças em palco, boas letras e musicas, mas já agora eu acrescentaria o espanhol carlos saura e a sua pelicula fado, tambem muito importante para a internacionalização, divulgação, tambem a unesco e patrimonio cultural mundial-
carlos protagonizava a pelicula espanhola, parece que foi consultor, ele e marizaa dominaram a pelicula, misia foi ignorada por saura, porquê? pois se já nos anos 90 cantava nas melhores salas europeias, berlim, paris, hamburgo, madrid, fez e faz muito pelo novo fado esta misia que foi pioneira das novas gerações de fadistas.
carlos saura premiado e com mérito, mas o fado é trabalho de todos os bons, antes e depois, marceneiro, herminia, o carlos ramos (lembrado por haf e bem), teresa tarouca, maria da fé, a familia hermano da camara, a propria mãe do carlos, lucilia.
carlos do carmo é o saramago do fado e talvez vice-versa, nobel e grammy, literatura e canção.
sim, caro haf, não venhas tarde é um grande fado, bem escolhido para o cantares...

Portugalredecouvertes disse...

A minha mãe cantava fado com muita frequência enquanto costurava em casa, não por ser do tempo da ditadura, mas porque ela tinha uma voz muito boa e afinada (e isso é uma característica do fado)
ela expressava os sentimentos que sentia, muito só por o meu pai estar quase sempre ausente!

Alvaro silva disse...

Sr embaixador
Uma treta essa do Carlos do Carmo Progressista e Não sei que mais. O que lhe posso dizer é que assisti no Sá da Bandeira no Porto, algures em 73 a um espectáculo dele (a 1ª parte) e do Chico Buarque (a 2ª). A grande maioria dos presentes era do reviralho, como então se dizia e fartaram-se de apupar e assobiar este futuro cantor "progressista",que nessa tempo não era considerado como tal, antes pelo contrário. Depois veio o 25 A e virou a jaqueta e o verbo como tantos outros. E mais não digo pois a tal assisti e posso testemunhar. Mas não misturem capacidades canoras com política, pois o homem canta e cantava bem.Cumprimentos Álvaro Silva

opjj disse...

À v/compreensão se assim o entender.

O 1º opinador parece destilar ódio e rancôr a Cavaco Silva em todos os seus escritos. Afinal onde mora os seus apregoados saberes? Não será ele o portador de tais defeitos?
Mais, se não sabe construir frases em latim, faça-o em português, com ou sem acordo O.
Cumps.


Os borregos

Pierre Bourguignon foi, ao tempo em que eu era embaixador em França, um dos grandes amigos de Portugal. Deputado à Assembleia Nacional franc...