quinta-feira, abril 24, 2014

O meu dia 24 de abril

O meu dia começou cedo. Ido de Santo António de Cavaleiros, onde vivia desde que casara, poucos meses antes, entrei de carro na Escola Prática de Administração Militar (EPAM) onde, às 9 horas iniciei a primeira aula de "Acção Psicológica" aos ensonados soldados-cadete. Às 11 horas, recolhi à biblioteca que orientava (além de "oficial de Ação Psicológica" da unidade, era coordenador do próprio curso de formação de oficiais milicianos nessa especialidade, bibliotecário e também diretor do jornal da unidade, "O Intendente"). Foi aí que fui procurado pelo António Reis.

Um parêntesis para explicar que o António Reis, hoje um consagrado historiador e professor universitário, era o contacto privilegiado dos milicianos da unidade com os oficiais do quadro, para o conjunto de movimentações político-militares que, desde há meses, acompanhávamos. Conhecia o António dos tempos da luta da oposição democrática, onde ele tinha tido um papel destacado, nomeadamente como candidato oposicionista por Santarém. Para surpresa de muitos de nós, em especial para meu grande espanto, António Reis surgira, meses antes, integrado na especialidade de Ação Psicológica, que eu orientava. A máquina das informações militares, na sua articulação com a PIDE (que, nessa altura, já era designada por DGS), tinha algumas lacunas e só semanas mais tarde, já muito próximo da data da Revolução, mandara "reclassificá-lo", devendo regressar a Mafra, onde iria ser Atirador de Infantaria. Esta determinação tinha sido por nós sonegada ao comando da unidade, através de cumplicidades burocráticas internas, pelo que não viria a ter qualquer efeito prático até ao 25 de abril. O António pôde, assim, assumir o importante papel que desempenhou nesse dia.

Regressemos à biblioteca. Com um ar conspirativo, nesse final de manhã, o António pediu-me para reunir alguns oficiais milicianos já previamente "apalavrados". Juntámo-nos na sala e ele informou que o golpe militar estava previsto para essa noite. Ficámos tensos, confrontados com a gravidade da informação recebida. Só mais tarde iríamos saber o que de cada um de nós se esperava. Aos pedidos de detalhes que colocámos, nomeadamente no tocante à dimensão da ação militar (o fracasso da tentativa de golpe de 16 de março ainda estava muito "fresco"), o António adiantou explicações naturalmente vagas.

Depois, só me recordo da tarde, já após a saída da unidade. Encontrei-me com António Franco, hoje embaixador aposentado, que tinha feito a especialidade de Ação Psicológica comigo, mas que fora requisitado pelo MNE. Tomámos um café no snack-bar "2000", ao Campo Pequeno, e revelei-lhe a iminência do golpe. Não havia nenhuma razão especial par eu cometer essa indiscrição, mas esse gesto (que hoje posso ver como algo irresponsável) foi espontâneo, face a um amigo em que eu confiava em absoluto.

Dei a informação também ao meu pai, que estava de visita a Lisboa. Democrata dos sete-costados, o meu pai alimentava uma desconfiança persistente sobre a capacidade dos militares derrubarem o regime que ele sempre detestara. Recordo-me o comentário depreciativo que ele fez sobre "a tropa", à saída do hotel "Suíço Atlântico", onde fomos juntar-nos com um tio meu, então deputado do regime... Acabámos todos a jantar em casa de outros familiares, nos Olivais. Foi uma ocasião estranha: se a operação militar que iria decorrer, horas depois, tivesse sucesso, o futuro desse meu tio - um grande amigo de todos nós, a começar por mim - iria sofrer uma grande mudança. À mesa, apenas eu, o meu pai e a minha mulher estávamos a par dessa forte possibilidade, pelo que a conversa, para nós os três, não deixou de ter sempre isso como pano de fundo.

Acabado o jantar, deixei os meus pais na Feira das Indústrias, à Junqueira, onde havia uma exposição de antiguidades. Pretextei algo para regressar a casa. À saída da exposição, ao deparar com o Bentley que transportara o presidente da República para a inauguração do evento, o meu pai disse para a minha mãe uma frase enigmática, que ela lembraria até ao fim da vida: "Se uma coisa que o nosso filho hoja me disse vier a acontecer, a partir de amanhã o Américo Tomaz não volta a entrar neste carro". E mais não adiantou. O dia 24 de abril de 1974 estava a terminar. 

9 comentários:

João Manuel Vicente disse...

Muito interessante podermos ter esse seu insight das horas que antecederam a madrugada libertadora. Nem de proposito, o dr. Antonio Reis vem agora a Macau falar-nos tambem do 25 de Abril, concretamente no Clube Militar. Dai que o seu post nos 'municie' com alguns pontos para topicos de conversa. Uma feliz coincidencia, portanto.

patricio branco disse...

interessante relato.
pelo que leio, o antónio reis era militar oficial de carreira, ou seria miliciano repescado para suprir faltas dos de carreira, como aconteceu noutros casos.
antonio reis foi depois figura do ps se não erro, como antónio arnauth. os 2 podem ser associados.
o colega a quem revelou o golpe foi portanto um dos felizes civis que sabiam de antemão, embora neste caso sem papel activo no golpe. não deixaria de ser interessante ouvir a narração dele, as expectativas, como passou o resto do dia e a noite, etc.
conheço bem o quartel do campo grande, ali fiz anos antes parte do serviço militar, onde é hoje uma honradissima universidade, embora no texto possivelmente seja indicado o da alameda linhas torres.
confesso que tive pena do tio deputado à an, mas não adiantava dizer lhe nada, a operação estava em curso.
estes 40 anos do 25a têm sido ocasião para testemunhos pessoais, na tv já deram muitos, incluindo o da filha de marcelo caetano, branquando um pouco a figura do pai, o que se percebe, filha é filha.
marcello rebelo sousa tambem contou, diz que sabia do golpe, embora não a data certa.
mas os dias 26 e 27 tambem são interessantes de serem contados.
o meu 25a foi passado em casa ouvindo desde as 7 da manhã as noticias na radio e tv a preto e branco, aconselhavam aliás a não sair às ruas, curioso, a carreira 31 de autocarros cumpriu todo o dia a sua função, passava pela rua onde morava, só que passava sempre vazio embora regularmente.
tinha havido um exercicio naval da otan e navios de guerra de vários países estavam fundeados no tejo, nas docas na zona de sta apolonia, pois nos 2 dias anteriores, 23 e 24, foram mandados sair, sem explicação, o que incomodou os comandanntes que tinham previsto estar mais 1 dia ou 2 ali, agora descansando, oferecendo recepções a bordo, saindo a ver lisboa, etc. na marinha, bem colocados em relação ao proximo golpe, tambem havia oficiais associados e em posição de poder mandar os barcos estrangeiros sair, por segurança, precaução, etc. na tarde de 22 tinha estado no navio da holanda.
não sei se é verdade, mas tambem ouvi contar que espanha tinha contactado marcelo caetano para ver se podia em alguma forma ajudar ou dar lhe animo ou saber coisas.
fialho gouveia foi o escolhido para ir dando as noticias na rtp.
no cinema imperio passavam uma pelicula de ingmar bergmann, ali estive a vê la na noite de 24.



Jose Tomaz Mello Breyner disse...

Senhor Embaixador,

Penso que era um Rolls Royce e não um Bentley

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro José Tomaz de Melo Breyner: muito obrigado pela dica. Vou tentar verificar com alguém que sabe isso pela certa. Eu escrevi de vaga memória e, de facto, não tinha a certeza.

Vasco Mello disse...

Em tempo, só para corrigir uma informação. A viatura de Américo Tomás em 1974 era um Vanden Plas Princess, carro belga, fabricado em 1967. O esforço de guerra em África obrigou a economias nos carros e a Presidência não escapou às orientações de Salazar quando, em 1967, adquiriu o mais barato dos seus grandes carros. A opção pelo Vanden Plas, produzido por um fabricante belga de carroçarias ligado à Austin de Inglaterra, teve muito a ver com o preço de 470 contos que, ainda assim, dava para 16 jovens obterem cada um o seu Austin Mini. O carro, com motorização mais fraca, apresentava acabamentos de requinte, com muito recurso a madeira, e era, na Grã-Bretanha, conhecido como o ‘carro dos políticos’ ou a "imitação do Bentley".

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Patrício Branco: António Reis era então "Soldado-cadete", com duas estrelas. Era-se Soldado-cadete durante três meses com uma estrela. Depois de enviado para a especialidade, o Soldado-cadete passava a exibir duas estrelas. No fim da especialidade, que também durava três meses, passava a "Aspirante a oficial miliciano". Depois, bastante mais tarde, ascendia-se a Alferes. Na altura da passagem à disponibilidade, era-se passado à reserva com a categoria de Tenente. É esse o meu caso, tal como o António Reis e muitos milhares de oficiais milicianos. A uma historia hoje com graça. Na altura, não tinha nenhuma.

patricio branco disse...

esclarecido sobre antonio reis.

ps. houve de facto alguns tenentes
milicianos na reserva ou disponibilidade que foram repescados uns anos depois e convidados a seguir a carreira, passando a capitão etc, alguns lá foram, conheço um caso

Francisco Seixas da Costa disse...

Para o ignatz: já experimentou bicarbonato?

ignatz disse...

"já experimentou bicarbonato?"

já, para cozer grelos. na lavagem de tangas, não.

Os EUA, a ONU e Gaza

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