sexta-feira, outubro 19, 2012

Manuel António Pina (1943-2012)

Foto António Sabler
É aí vamos nós, neste ritual de obituários. As mortes não se programam. Agora foi a vez de Manuel António Pina, uma das mais lúcidas e desassombradas vozes deste país, senhor de uma escrita que, até quando era agreste, era poética. E com um humor subtil, muito raro entre nós. 

Conheci-o no Porto, em meados dos anos 6o do século passado, onde ambos frequentávamos o "Piolho". Nessa altura, a diferença de idades não nos aproximou. Também por isso, embora nos conhecêssemos, nunca fomos íntimos. Iamo-nos encontrando, em contextos muito diversos, de anos a anos. Lia-o com regularidade e recordo-me de, um dia, lhe ter dito, aqui em Paris, em 2000, ano em que Portugal foi o país convidado para o Salão do Livro: "Às vezes tenho raiva de si, por você escrever aquilo que penso de uma forma que eu não sou capaz fazer". Dele recebi, de volta, um sorriso sereno e uma palavra amável. Foi sempre muito portuense, até na constante cerimónia nos nossos contactos breves. 

No último ano, encontrávamo-nos no Conselho geral de Guimarães - capital da Cultura, a que ambos acedemos no mesmo dia, com António Mega Ferreira, a convite de Jorge Sampaio. 

Nesta hora da despedida, são muito tocantes as palavras que Francisco José Viegas lhe dedicou: "Neste dia, plantemos uma árvore em seu nome. Uma árvore que transporte a sua poesia para dentro dos nossos dias. Este é um dos dias mais tristes da minha vida. Nenhuma lágrima conseguirá redimir essa tristeza, infelizmente". Um abraço também para si, Francisco. 

9 comentários:

Felipa Monteverde disse...

Ouvi na RR e nem queria acreditar, logo agora que eu o tinha descoberto!
Não o conhecia pessoalmente mas tenho os seus dois livros mais recentes, o primeiro comprado em fevereiro e o segundo em julho, ambos este ano. Fiquei apaixonada pela sua escrita.
Tenho pena não o ter conhecido mais cedo. Lia as suas crónicas no JN e ainda me lembro bem da última, em que fugiu ao tema habitual e escreveu sobre os seus gatos. Apesar de eu não gostar de gatos gostei muito do que ele escreveu.
Uma perda considerável, sem dúvida.

Isabel Seixas disse...

"a sua poesia para dentro dos nossos dias"
FJV Citado por FSC



A um Homem do Passado

Estes são os tempos futuros que temia
o teu coração que mirrou sob pedras,
que podes recear agora tão fundo,
onde não chegam as aflições nem as palavras duras?

Desceste em andamento; afinal era
tudo tão inevitável como o resto.
Viraste-te para o outro lado e sumiram-se
da tua vista os bons e os maus momentos.

Tu ainda tinhas essa porta à mão.
(Aposto que a passaste com uma vénia desdenhosa.)
Agora já não é possível morrer ou,
pelo menos, já não chega fechar os olhos.

Manuel António Pina, in "Nenhum Sítio"

Um Jeito Manso disse...

Pois é, Embaixador, partiu um Homem livre e bom.

As palavras dele vivem nos livros que tenho sempre junto de mim mas e a lucidez desassombrada com que escrevia sobre a vida que nos rodeia?

Tantas perdas este ano.

LUIS MIGUEL CORREIA disse...

Mais uma perda, mas fica a palavra escrita e a memória como legado. A Família e os Gatos sentem muito a falta de certeza... A vida é efémera.

Anónimo disse...

(de ERA UMA VEZ)

Sou um gato triste
embrulhado numa manta que adivinha "invernos"

a meu lado ele sonhava poemas ainda por escrever
enquanto me tocava no pelo e no focinho em gesto preguiçoso
outras vezes lia-me versos acabados de nascer

cuidadoso
ajeitava a manta que nos cobria
contava-me história de crianças como de eu fosse uma delas
e depois
cansado
limpava demoradamente as lentes
e comigo adormecia

margarida disse...

Os obituários, pela sua profunda delicadeza, merecem a pena de quem observa o mundo com cuidado e conhecimento, como é o incontestável caso de quem aqui se debruça sobre a partida das figuras mais relevantes que teve a fortuna de conhecer.
Instantes de registo, sobretudo em tempos fragmentados, por isso, ainda mais valiosos.
Da partida, o sinal: sobre eles, que deixaram palavras, feitos, histórias, marcas, heranças geniais, há o elogio justo, o lamento sincero, a saudade instantânea e já perene; nós, outros, deixaremos pouco mais do que nada.
Um dia talvez tenha feito coro sobre este reiterado hábito de aqui se timbalar as partidas em tão sucessivas vagas, para leituras serenas e conformadas ou intensas e doridas, aponto de perturbar o sono sossegado; hoje agradeço o conforto das suas palavras.
Escrita aqui, e não na água; obituário terno, especial:da memória - um bem fundamental.

EGR disse...

Senhor Embaixador : sem querer de, modo algum estabelecer outro tipo de comparações, também eu sempre que me decido a escrever aqui não consigo despir a minha pele cerimoniosa de portuense. Mas, permita-me que deixe hoje uma palavra de testemunho.
Por causa de um amigo comum que, ao tempo era actor no TEP-onde então se representavam Santareno e Ionescu-tive alguma convivencia com o Manuel Antonio Pina; depois seguimos vidas diferentes mas,mas por circuntancias ligadas a minha participação na vida autarquica fui-o, a espaços encontrando em várias ocasiões e trocando sempre algumas palavras de recíproca simpatia.
Guardo dele a memoria de alguem dotado de uma inteligencia brilhante,grande cultura,e enorme
simplicidade.
Quanto aos seus meritos no dominio da escrita não me atrevo a acrescentar uma palavra aos depoimentos já efectuados.
Partilho,neste momento,os sentimentos de tristeza pela sua partida.





Anónimo disse...

Gosto de poemas e de gatos.

Sinto a partida do poeta
Adorei o poema de Era uma Vez.
Deve ter gatos. Só quem os tem pode sentir assim.

Francisca Maria

Isabel Seixas disse...

"A pobreza mete-nos medo. E, no entanto, alimentamo-nos da pobreza, é o seu sangue que move os nossos carros topo de gama e as nossas fábricas e é à sua sombra que florescem os nossos paraísos de consumo."

Manuel António Pina

Fora da História

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