terça-feira, julho 03, 2012

A palavra

Portugal esteve hoje presente naquele que é o "exame" anual a que a sua economia é sujeita no âmbito da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), uma instituição multilateral sedeada em Paris, que acolhe 34 Estados democráticos e economias de mercado. Portugal foi um dos países fundadores da OCDE, em 1948, embora o seu regime estivesse então longe de ser democrático, mas a realpolitik da "guerra fria" a isso ajudou. Pode dizer-se, com algum rigor, que foi no âmbito da OCDE que algumas elites político-diplomáticas portugueses iniciaram a sua aculturação àquilo que viria, muitos anos mais tarde, a abrir o nosso caminho a uma integração plena nas instituições europeias.

Por alguns anos, estive ligado à representação governamental portuguesa nas reuniões da OCDE. Foi numa dessas presenças que aconteceu a historieta seguinte.

Naquele mês de abril de 1998, Portugal presidia à reunião ministerial anual da organização. No primeiro dia, o ministro das Finanças, Sousa Franco, dirigira a sessão plenária. Eu ainda lhe "dei uma mão" na respetiva sessão, chegado a meio do dia de Estrasburgo, onde estivera retido por uma qualquer razão.

No dia seguinte, coube a Jaime Gama, ministro dos Negócios Estrangeiros, para além de conduzir a sessão, orientar o almoço de trabalho, o qual é sempre é feito em torno de um determinado tema. Dessa vez, tratava-se do AMI (Acordo Multilateral de Investimentos), uma questão muito controversa, tão divisiva que o acordo nunca chegou a passar do papel. Sobre o assunto, eu havia mantido uma polémica, nas páginas do "Diário Económico", com o saudoso deputado do PCP, João Amaral. Creio que nunca lhe cheguei a dizer que vim a concluir que, afinal, era ele, e não eu, quem tinha razão sobre o assunto.

O ministro português dos Negócios Estrangeiros assumiu o seu lugar na presidência dos trabalhos, no topo da grande mesa quadrada, tendo ao seu lado o secretário-geral da organização e, à sua frente, a sofrível refeição que os integrantes têm direito a digerir durante essa hora e meia de exercício declaratório. Como me competia, como secretário de Estado, sentei-me na cadeira da nossa delegação, por detrás da placa onde se lia o nome de Portugal. Claro está que, com o ministro português a assumir a presidência da sessão, eu me preparei para um almoço bem calmo.

Jaime Gama abriu a sessão, fazendo uma intervenção inicial, aí com uns cinco minutos, com que introduziu o debate. Conhecendo antecipadamente o texto, devo confessar que quase me não dei ao cuidado de atentar no que dizia o meu ministro. Só quando, em certo momento, "ouvi" um silêncio, é que percebi que terminara.

O presidente português da sessão convidou então os representantes dos Estados membros da OCDE a intervirem sobre o tema. Como muitas vezes acontece neste tipo de reuniões, nomeadamente em questões muito polémicas, há uma certa inércia em "abrir as hostilidades", com uma retração em fazer a primeira intervenção. E foi isso que aconteceu: ninguém se inscreveu para falar - o que é feito colocando, ao alto, a placa com o nome do respetivo país. Jaime Gama insistiu e voltou a anunciar que estavam abertas as inscrições. O silêncio manteve-se.

Foi então que o presidente da sessão olhou para mim, sentado num lugar bem distante do seu e disse, com a maior naturalidade do mundo: "Dou a palavra a Portugal". 

Julguei ter ouvido mal, mas, ao detetar um leve sorriso na cara de Jaime Gama, percebi que ele me "passara a bola", como forma de resolver o súbito impasse. E, um tanto atrapalhado, lá avancei com um: "Thank you, mr. chairman. Mr. chairman, the Portuguese delegation considers that..." - e já nem sei bem o que disse, durante três ou quatro minutos, em que procurei debitar a doutrina que à época tínhamos sobre o AMI. No final da minha improvisada intervenção, já se viam diversas placas com nomes de países colocadas na vertical. E o debate lá avançou.

À saída, comentei para o ministro: "Pregou-me uma bela partida...". Jaime Gama, irónico, retorquiu: "Mas eu achei que você tinha tinha pedido a palavra...!"

13 comentários:

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Anónimo disse...

"já se viam diversas placas com nomes de países colocadas na vertical" ?


pode explicar caro embaixador?


bem haja

Carlos Fonseca disse...

Era para fazer um comentário - e o texto merece-o - mas estou com pressa porque preciso de ir à Universidade Lusófona entregar o meu currículo, a fim de me poder licenciar daqui a um ano, aproveitando as "Novas Oportunidades Universitárias".

De preferência, em Ciência Política e Relações Internacionais.

Isabel Seixas disse...

"ouvi" um silêncio(...)In FSC

Normalmente Prelúdio de que alguém vai cantar o fado...

EGR disse...

Senhor Embaixador:como habitualmente a "historieta" que nos conta é deliciosa.
Mas, hoje, não resisto a colocar no mesmo patamar de apreciação o comentario de Carlos Fonseca.

Jose Tomaz Mello Breyner disse...

Carlos Fonseca

Está desactualizado, um curso num ano é coisa banal. Bom mesmo é fazer exames ao Domingo, isso sim é o que está a dar

Anónimo disse...

Excluiu o meu comentário. Tomo boa nota. Continuo leitor atento.

Anónimo disse...

O título do post tem um ar um tanto ou quanto “bíblico”: “A palavra”

Será por isso que Exmos comentadores tenham sido impelidos para glosas sobre licenciaturas que agora incluem o prefixo “pós”. Já conhecia a licenciatura “pós Bolonha” (de nome, porque não faço a mínima ideia do que podem licenciar). Agora já há mais, que se podem designar por licenciaturas “pós socráticas”, que até dão para ministro.

Seriam mais decorosas licenciaturas “honoris causa”…

Armando Pires disse...

"Está desactualizado, um curso num ano é coisa banal. Bom mesmo é fazer exames ao Domingo, isso sim é o que está a dar"

Este comentário é bem revelador da mediocridade a que chegamos.
Com tantas oportunidades, senão mais facilidades, em querer ser um doutorzinho qualquer, ignorante QB, só pode ser alguém que tira um curso (inho) num ano. Andou esta gente a atirar pedras ao telhado do vizinho...
Uma nota em termos de rodapé; porque será que este tipo de coisas acontece, nas universidades privadas! Estarei eu enganado?

Carlos Fonseca disse...

Caro José Tomaz Mello Breyner,

Claro que não ignoro - quem o poderia ignorar? - a extrema facilidade que constitui para os estudantes poderem, eventualmente, fazer exames ao domingo, ainda para mais podendo usar essa, relativamente moderna, ferramenta, que é o fax.

Mas essa é uma questão ultrapassada e por demais glosada.

A apresentação de currículos, com base numa legislação que parece um fato feito por medida, é que uma novidade (e, se a legislação já não é nova, parece ter passado despercebida).

O caso agora conhecido, é tão especial, que o presidente da Associação Portuguesa do Ensino Superior Privado, não conhece qualquer situação similar.

Os meus cumprimentos.

Anónimo disse...

Pois, senhor embaixador: os comunistas, às vezes, podem ter razão. Desde que já mortos...
Pedro Leça

AL disse...

Como é costume uma boa estória. Nada tenho a ver com o PS e a esquerda, mas que grande Presidente da República seria Jaime Gama. Culto e irónico, o tal peixe de águas profundas.
Já agora sobre o assunto Relvas: Estava o sujeito a jantar sózinho quando entra um grupo que lhe pergunta sózinho a jantar? Responde-lhe ele: estou no jantar de fim do curso!!!!

Isabel Seixas disse...

Um debate interessante é também o da competência da Palavra...

Daquela que e bem(?!!!) oriunda de cursos longos e obedientes a todos os protocolos...
Nos faz pensar a relação causa efeito entre longo percurso académico(livre de suspeição com frequência de segunda a sexta, se for esse o busilis do viés, oh, é pacifico) e a aquisição de competências Para...

Conheço tanto doutor , mas tanto, que coitados já em Burnout me fazem equacionar se de facto nas suas cartas de curso seriamente assinadas e ou lavradas de segunda a sexta em universidades inquestionáveis, não beneficiariam mais da benção de Domingo.

Fora da História

Seria melhor um governo constituído por alguns nomes que foram aventados nos últimos dias mas que, afinal, acabaram por não integrar as esco...