sexta-feira, junho 22, 2012

Camarate

No dia 4 de dezembro de 1980, eu jantava na "Farmácia Campos", em Matosinhos, quando alguém entrou e encostando-se ao balcão, disse alto, ouvido por toda a sala: "Morreu o Sá Carneiro. O avião em que vinha para o Porto caiu". Alguns dos presentes levantaram-se e pediram para se ligar a rádio. Era verdade.

Estávamos a escassas horas das eleições presidenciais portuguesas, em que Soares Carneiro defrontaria Ramalho Eanes, na sua tentativa de reeleição. O país estava fortemente polarizado entre as duas candidaturas. Nessa noite, na televisão, a tese do acidente prevaleceu, na voz de praticamente todos quantos se pronunciaram. Num dos dias seguintes, a (única) televisão fez do funeral de Francisco de Sá Carneiro um lamentável e vergonhoso espetáculo. Portugal nunca poderá orgulhar-se desses tristes dias de desbragada manipulação política.

Depois, começaram as dúvidas. Acidente ou atentado? Por mim, pouco atreito às teses da conspiração, e muito convicto de que a teoria do atentado era uma mera arma política de arremesso, acreditei piamente na hipótese do acidente. E o facto, entretanto provado à saciedade, de que Sá Carneiro só se havia decidido, no último momento, pela viagem no avião sinistrado mais me reforçou a convicção de que a ideia do atentado mais não era do que um mero expediente para vender uma versão politicamente "biaisée", como por aqui se diz. E fui desqualificando e ridicularizando, durante muitos anos, a tese do atentado.

Arquivei assim "Camarate", nome pelo qual o assunto ficou para a história, na prateleira das questões políticas que já tinha por resolvidas. Um dia, porém, um episódico antigo colega de governo, o advogado Ricardo Sá Fernandes, publicou um "pavé" sobre o assunto. O qual, segundo ouvira dizer, privilegiava a tese do atentado. Fiquei curioso. Tinha optado, quase em definitivo, por deixar de ler sobre Camarate. Os escritos que conhecia, quase sempre cheios de ódio e de enviesamento político, incitavam-me a isso. Mas, já nem sei bem porquê, decidi-me a ler o livro de Sá Fernandes, Avancei por ele dentro muito cético, bem de "pé-atrás". Era um livro imenso. Em duas noites, li-o. E, confesso, as dúvidas colocaram-se-me, em força. Será que, no fim de contas, teria sido atentado? Seria Adelino Amaro da Costa o alvo?

O parlamento português foi entretanto constituindo sucessivas "comissões parlamentares de inquérito", umas vezes dominadas pela direita, outras vezes pela esquerda. Sem surpresas, nesse balançar opinativo, por entre testemunhos de diferente credibilidade, muito para alimento dos tablóides, tais "comissões" iam concluindo, umas vezes pela hipótese do atentado, outras pela do acidente. Com o tempo, setores da esquerda juntaram-se à primeira das hipóteses, credibilizando-a um pouco mais.

Noutro patamar, a justiça foi também caminhando sobre o assunto, ora seduzida pelo mediatismo e pelo espetáculo, ora presa ao formalismo. Em todo o caso, as conclusões a que chegou, sempre prenhes de incidentes e das inevitáveis prescrições, foram pouco mais do que nenhumas. Dava a sensação de ficar entretida entre as fantasias de José Esteves e os mistérios de Lee Rodrigues, registando, pelo meio, algumas gratuitas insinuações, sem fundamento sólido comprovado, sobre figuras da nossa vida pública. E, claro, os processos não chegaram a nenhuma conclusão, ficando a aguardar "melhor prova". 32 anos depois?

Mas a que vem isto, aqui e agora? É muito simples: estará em curso, ao que leio, a constituição da 10ª (!!!) "comissão parlamentar de inquérito" sobre o "desastre" de Camarate ("desastre" ou "tragédia" é o refúgio lexical de quantos não têm certezas sobre o assunto).

Como dizem os brasileiros: dá para acreditar?

8 comentários:

margarida disse...

Claro que sim. As teorias da conspiração alimentam muitos romances, públicos e a publicar.
As autoridades aeronáuticas nacionais, bem como os especialistas americanos, analisaram os destroços e concluíram (cientificamente)pelo acidente. Aquele avião não devia ter levantado voo e o piloto deixou-se tentar pela responsabilidade 'virtual' das entidades que transportava, em vez de ter recusado iniciar a viagem.
Isto de fonte que sabe do que fala. O resto, por mais tentador que tenha sido (ou ainda seja), é vontade de acreditar, como o homem dos ovnis.
Admito que durante anos também cri que pudesse ter sido, efectivamente, atentado (os dados estavam todos lá), mas ouvindo a voz sábia, serena e politicamente desapaixonada de quem sabe por dentro tudo sobre as questões técnicas da aviação e, sobretudo, das perícias a acidentes, o tema está encerrado.
Com o eterno pesar por todas as vidas que se perderam daquela forma tão trágica.

Fada do bosque disse...

Claro que sim, Senhor Embaixador e enquanto isso privatizam a água, o ar e o mar, depois privatizam-nos a nós como escravos, quer melhor?
Mas isso sou eu que sou conspiracionista... Camarate veio mesmo a calhar!

Anónimo disse...

I shouted out, who killed the kennedys? When after all it was you and me.

Dá p`ra acreditar?... na DEMOcracia?

Anónimo disse...

Por ironia do destino tive a oportunidade de ser dos primeiros cidadãos a chegar ao local onde tudo aconteceu.

Chegaram entretanto as várias polícias e um residente acolheu-me.

A opinião unanime era a de explosão.

Isabel Seixas disse...

Subscrevo o post e os seus distintos comentadores, lamentando as vidas perdidas,com todo o respeito por quem não conseguiu fazer o luto, acredito também na versão implicita no comentário da Margarida.

Anónimo disse...

Seja qual for a verdade, 32 anos após será difícil de alguma vez se chegar a uma conclusão. Num texto que circulou na Net, um dos putativos implicados, preso, ao que se julga, algures em Sintra, teria, depois de 3 décadas, mostrado “arrependimento e remorsos” e toca de colocar a boca no trombone, “revelando a verdade dos factos”.
Será esta uma das razões para que a dita Comissão Parlamentar irá ser constituída? Estranho!
A tese de Ricardo Sá Fernandes está bem construída e não é de menosprezar, todavia, fica sempre a pergunta: porque é que nunca – antes – se conseguiu chegar a uma conclusão definitiva? Aquilo que a comentadora Margarida refere faz, igualmente, todo o sentido. Li em tempos, um relatório de um perito da Aeronáutica Nacional e o que ali se escreve e, sobretudo, se descreve, desmonta bem a teoria conspirativa. Mas esta, tem igualmente alguns pontos fortes.
Na PJ (e até no MNE) há gente que poderia dar algum contributo. Houve comportamentos (sobretudo na PJ à época) que mereciam ser averiguados. E do MNE partiu alguma informação para a PJ (na altura) e ali (na PJ) veio a desaparecer. Anos depois, anos 90, por ocasião de uma outra Comissão Parlamentar qualquer, agentes da PJ foram ao MNE, com vista a analisarem certa documentação, que, para “surpresa” deles...não conseguiram encontrar naquela ocasião!
Todavia, julgo que, passados tantos anos, qualquer investigação ou inquérito, por muito bem intencionado que venha ser, não logrará chegar a uma conclusão convincente. Quer-me parecer. Por mim, talvez porque o tema esteja gasto, acho que o assunto perdeu interesse e nada se apurará. Passou á História. E cada um acreditará na tese que melhor preferir.
Por razões que espero o autor do Blogue compreenda, não me identifico. Está, porém, no seu pleno direito de publicar - ou não este comentário.
a)“Anónimo”

Anónimo disse...

Pois é... mas havia neste acidente muitos interesses em jogo. Foi numa época de grandes choques de interesses nacionais e internacionais em Portugal. Não interessa hoje se foi atentado ou não mas sim o não se ter concluido um inquérito credível. A História de Portugal contemporâneo está cheiinha destes casos. Mas... eu não sei.

Julia Macias-Valet disse...

Drôle d'endroit pour diner ! : )))

Obrigado, António

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