segunda-feira, janeiro 09, 2012

Acordo de cooperação

O ministro voltou-se para trás, para o adjunto do diretor-geral (era assim que, à época, se designavam, no MNE, os subdiretores-gerais), e perguntou:

- Não há nada para assinar?

Nesses anos 70, estávamos numa reunião entre delegações presididas pelos ministros dos Negócios Estrangeiros de Portugal e de S. Tomé e Príncipe, no palácio das Necessidades. A discussão tinha uma longa agenda, nesses tempos complexos de resolução do contencioso remanescente da transição pós-colonial e do início de alguns modelos de cooperação. Os trabalhos prolongar-se-iam pelo dia seguinte, culminando com uma conferência de imprensa.

A assinatura de um acordo, ou de um outro instrumento jurídico bilateral, ajuda sempre a "compor" uma visita oficial, produzindo, no imaginário público, resultados mais concretos. Durante muitos anos, quando não havia nada para assinar, era vulgar rubricar-se um "acordo de supressão de vistos em passaportes diplomáticos". Hoje, como esses acordos têm consequências mais sérias, é comum o recurso a "protocolos de cooperação", entre instituições da mais variada natureza. Alguns úteis, outros apenas inócuos.

O responsável diplomático, meu chefe, olhou para mim, que tinha o pelouro, passando-me implicitamente "a bola".

- Não, senhor ministro, não há nada para assinar, respondi.

Nos anos anteriores, tinha sido firmada uma montanha de acordos e protolocos entre os dois países. Estava praticamente tudo concluído. Contudo...

- Bom, há um texto que está em estudo no ministério da Saúde. É um protocolo de cooperação que permite prolongar, depois da independência, a possibilidade dos funcionários públicos de S. Tomé terem acesso ao antigo hospital do Ultramar, bem como outras facilidades. Mas não sei em que pé está essa apreciação...

- Veja isso já! Veja isso com o gabinete do ministro da Saúde! Era bom termos algo para assinar amanhã, disse o ministro, voltando-se para a frente.

O meu chefe, excelente amigo e magnífico diplomata, sorriu-me, como que a dizer-me: "já que 'abriu a porta', agora amanhe-se...". E eu fiquei com a "batata quente". Arranquei para o meu local de trabalho, falei com o ministério da Saúde (lembro-me bem de que o meu interlocutor foi um adjunto do ministro, chamado Paulo Mendo... que, bastantes anos mais tarde, viria a ser ministro da pasta!) e, por um milagre, o assunto estava já desbloqueado, com parecer positivo. Fui pessoalmente ao ministério buscar o texto e conferi-o com a embaixada santomense, a qual, sem problemas, anuiu a tudo, até porque praticamente só tinha efeitos unilaterais.

Mandei então dactilografar o acordo. Disse à senhora (as dactilógrafas eram, nesse tempo, todas mulheres) para fazer dois exemplares: um para nós, que abria com "A República Portuguesa e a República Democrática de S. Tomé e Príncipe..." e outro para S. Tomé, em que a ordem dos países era trocada. Para quem não saiba, a regra é que, num acordo, cada país fique com a cópia que começa com o seu nome. O mesmo se passa no lugar das assinaturas, na última página, onde, na nossa cópia, a assinatura do nosso responsável se situa à esquerda. Normalmente, cada país tem o seu próprio papel e capas para os acordos, bem como as suas próprias fitas coloridas, que entrançam as folhas, além de usar um sinete próprio, para firmar o lacre. Coisas da diplomacia universal...

Na tarde da cerimónia da assinatura, que antecedia a conferência de imprensa, tudo correu impecavelmente. Ainda tenho uma fotografia dessa cena publicada no "Diário de Notícias", comigo com um cabelo bastante comprido, largo bigode tipo mexicano e gravata com um nó imenso. A notícia do jornal fala de um "importante instrumento jurídico" assinado nesse dia. O pior foi, no entanto, o dia seguinte.

Nessa manhã, fui acordado bem cedo, em casa, pelo meu interlocutor da embaixada santomense, quase em pânico. É que, na cópia santomense, o nome do seu país não estava apenas trocado no início do texto: em vários pontos do articulado, onde, por exemplo, na cópia portuguesa, se lia que "Portugal compromete-se a facilitar o acesso às suas unidades hospitalares aos funcionários públicos de S. Tomé e Príncipe", surgia "S. Tomé e Príncipe compromete-se a facilitar o acesso às suas unidades hospitalares aos funcionários públicos de Portugal"... As "responsabilidades" para S. Tomé passavam a ser imensas!

O que acontecera? A dactilógrafa havia feito uma leitura "extensiva" da instrução que eu lhe dera para a troca dos nomes dos países, decidindo mudá-los ao longo de todo o texto do acordo. A culpa do que acontecera era, claro, totalmente minha, que, com a precipitação, não tinha tido o cuidado de fazer a verificação dos dois exemplares do acordo.

Levei algum tempo a acalmar o meu colega santomense, explicando-lhe que, mesmo depois de assinado pelo seu ministro, o texto só seria válido após publicado e, naturalmente, isso nunca aconteceria antes de estarem feitas as devidas correções. E, logo nessa tarde, fez-se um novo exemplar, que se pediu, já não sei bem com que argumentário, que o nosso ministro assinasse. E tudo se resolveu.

Ainda hoje guardo o "extraordinário" exemplar assinado pelo ministro Miguel Trovoada, onde S. Tomé se compromete, por exemplo, a "facilitar o envio para Portugal de medicamentos" e outras formas similares de "cooperação".

E só há uns anos, na mesa do "Procópio", ousei contar a história ao ministro português de então, de quem vim a tornar-me amigo. Riu-se a bom rir!

8 comentários:

EGR disse...

Senhor Embaixador: esses episódios são uma verdadeira delicia,talvez porque tem o "picante" de nos mostrarem os bastidores de um mundo que para o comum cidadão tem algo de misterioso.

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro EGR: ...e acho que servem para mostrar que os diplomatas também sabem assumir publicamente os seus erros.

patricio branco disse...

talvez tenha chegado a altura de s. tomé nos enviar os medicamentos e outras ajudas previstas no 1º texto, o original por assim dizer...
Interessante e divertido texto de recordações e memórias sobre os bastidores da diplomacia a trabalhar a todo o vapor preparando uma visita de trabalho internacional a portugal.

patricio branco disse...

a propósito dum comentário que me despertou a curiosidade, fui ao texto ver a passagem visada. o verbo lembrar tanto pode ser transitivo como intransitivo. Lembro-me de ti, lembro-te, lembro-me da casa, lembro a casa. Deve haver casos em que se impõe melhor um uso que outro. No uso que aqui se faz parece-me que serve tanto um como o outro, eu pessoalmente escreveria lembro-me bem que o meu etc

Anónimo disse...

O Dr Medeiros Ferreira tem, além de inteligência e tato político, bom humor e capacidade de se rir com os amigos.
Afonso MG

Isabel Seixas disse...

Também achei a história uma delícia, essas situações acontecem...
De facto é de assinalar o assumir da culpa com dignidade,episódios houve(e há) em que tenderia para a secretária.

Helena Sacadura Cabral disse...

Belo episódio! As "gaffes" diplomáticas ou outras dão quase sempre, à posteriori, excelentes "estórias"!

Anónimo disse...

oh não, lá vem o "estórias"...

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Pierre Bourguignon foi, ao tempo em que eu era embaixador em França, um dos grandes amigos de Portugal. Deputado à Assembleia Nacional franc...