terça-feira, julho 26, 2011

Par de óculos

Nunca foi homem de abraços e gestos leves. A afetividade, naquele embaixador, homem grande e de movimentos largos, traduzia-se sempre por fortes amplexos, palmadas nas costas, acompanhados por sonoras manifestações de regozijo pelos reencontros.

Ao cruzá-lo nesse dia, naquele corredor das Necessidades, o diretor-geral, "civil servant" antigo, oriundo das Finanças ultramarinas, onde fizera carreira de mérito, figura pequena e levemente inclinada para a frente, deixou-se embrulhar pelo entusiasmado e imenso diplomata, que ia produzindo frases de sincero contentamento por vê-lo.

Mas o estalido não enganou. O choque dos peitos, no amigável encontro, teve como dano colateral os óculos do diretor-geral, colocados no bolso superior esquerdo do casaco. Recompondo-se, procurou com dois dedos a armação, logo sentindo um chocalhar de pedaços, a cair pela algibeira abaixo. Discreto como era, nada disse. O amigo embaixador nem sequer havia notado os efeitos da sua colisão frontal, seguindo o seu caminho, depois de deixar uma palmada mais nas costas do diretor-geral, com este já a planear passar pelo oculista.

Decorreram uns meses. O cenário foi outro, o restaurante de um hotel. Acordado por um berro cordial, o diretor-geral vislumbrou o coreográfico diplomata, que já o saudava à distância, com os braços levantados, a voz forte a atroar a sala.

Um novo, enérgico e "fatal" abraço adivinhava-se, para instantes depois. O diretor-geral, já "escaldado", levou a mão ao bolso superior do casaco e, prudente, retirou deles os novos óculos, bem caros, por sinal! E guardou-os na mão fechada, não fosse o diabo tecê-las!

O embaixador, previsível, avançou para um imenso amplexo. Mas, desta vez, o diretor-geral pode entregar-se-lhe com confiança. Os óculos não ficariam esmagados no bolso, como acontecera da outra vez. Estava, seguros, no seu punho.

Desfeito o abraço, que ideia teve o embaixador? Nem mais nem menos do que agarrar, com força, ambas as mãos do diretor-geral, como testemunho de solidez de uma inquebrantável amizade. Encontrou uma das mãos aberta ao gesto, a outra, porém, com o punho fechado. Como se isso fosse um problema! Agarrou esta última, pela parte de fora e, se o punho estava cerrado, mais cerrado ficou com a força da manápula do diplomata, que indejava entretanto os braços do pobre diretor-geral, para cima e para baixo.

E foi desse punho, cada vez mais fechado, de onde saíam extremidades de uns óculos que o embaixador não vira, que não tardaram em pingar uma pequenas gotas de sangue, misturadas com os vidros do uma lente, que iam sobrando para o chão.

Esta história dos anos 80 - que ficou famosa nos anais do MNE - não recolhe reações posteriores, eventuais desculpas, sólidas contrições seguramente produzidas. Também nunca se ficou a saber se o embaixador foi informado que aqueles eram já os segundos óculos que destruíra ao seu amigo diretor-geral.

10 comentários:

patricio branco disse...

noutra interpretação, podemos supor que o homem grande sabia muito bem o que fazia, que o homem pequeno tremia ao vê-lo, que escondia ou protegia os óculos, etc.

Anónimo disse...

Viva sr. Embaixador

Os seus "relatos" são impagáveis...até parece que estou a presenciar a cena.
Boas férias!
arm.

Gil disse...

Suponho tratar-se do mesmo Embaixador cujas musculadas manifestações de afectividade produziram incontáveis vítimas, até entre autoridades eclesiásticas.
Um ex-membro do seu Gabinete, a partir do momento em que as suas funções deixaram de exigir proximidade espacial com o “chefe”, recusava sistematicamente os amáveis e exuberantes convites do Embaixador para que se sentasse ao seu lado em reuniões de trabalho ou ocasiões sociais. Davam-se um com o outro como Deus com os anjos mas, ao contrário destes, não possuía corpo insubstancial; a experiência ensinara-lhe que as manifestações de carinho e de amizade do Embaixador podiam ser perigosas para a sua integridade física.

Helena Sacadura Cabral disse...

O que me ri, Senhor Embaixador, com tamanhos infortúnios...
Lembrei-me de um colega beijoqueiro que atravessou vários dos lugares que ocupei e que me osculava salivarmente. Era amizade, eu sei. Mas ainda hoje fujo dele mal o enxergo!
Felizmente não fazia danos físicos. Apenas dermatológicos!
:))

Nuno Sotto Mayor Ferrao disse...

Caríssimo Embaixador Francisco Seixas da Costa,

Muito bom este episódio dos anais do MNE! Parece uma autêntica peripécia de um filme cómico: Louis de Funès não faria, seguramente, melhor!

Saudações cordiais, Nuno Sotto Mayor Ferrão
www.cronicasdoprofessorferrao.blogs.sapo.pt

concha disse...

Por obra do acaso,deparei-me com este blog e não consegui conter o riso ao ler tamanhas peripécias.
Uma sequência de imprevistos que contados com sentido de humor,dispõem bem.

Anónimo disse...

No MNE fujo a sete pés, mas de um determinado aperto de mão.

Os ossinhos ficam sem conserto! :)

Isabel BP

Helena Sacadura Cabral disse...

Ai Isabel BP o que me fez rir...

Anónimo disse...

Ora "Atão"

Venham dai os óculos(...)

Isabel Seixas

Luís Cabral disse...

Ficámos muito sensibilizados com as referências feitas a meu primo-irmão Luís Gaspar da Silva.
Bem haja pelo bem que nos fez...
Luís Gaspar Cabral e Família

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