domingo, janeiro 31, 2010

100 mil visitantes!

Foi há minutos: o sitemeter registou 100.000 visitantes deste blogue, medidos desde 15.2.09!

Viva a República!

Nesta data de 31 de janeiro, que comemora a revolta republicana que prenunciou o fim do regime monárquico, em 1910, tiveram início oficial em Portugal as comemorações do centenário da República.

Temos perante nós uma interessante oportunidade de dar destaque, perante as novas gerações, aos valores da ética republicana, que hoje constituem o fundamento da nossa Democracia, a que o 25 de abril deu corpo. 

Da mesma maneira que, durante a ditadura, a República foi diabolizada pelos seus inimigos, vamos agora, com toda a certeza, assistir por aí ao afloramento, mais ou menos folclórico, de iniciativas "antirepublicanas", que mais não são do que estertores da memória dos que foram afastados em 5 de outubro de 1910 e em 25 de abril de 1974. Sejamos magnânimos, porque é esse o único comportamento digno dos vencedores para com os derrotados da História.

Acordo

A Lusa passou, a partir de hoje, a distribuir o seu noticiário nos termos do Acordo Ortográfico.

Na coluna ao lado, colocamos um link para a consulta na Infopédia, da Porto Editora, que permite verificar a conformidade das palavras com o Acordo Ortográfico.

sábado, janeiro 30, 2010

Tempo

Há dias, dei-me conta que um dos nossos comentaristas regulares tem um curioso blogue dedicado às questões do tempo.

A temática do tempo é uma disciplina sempre interessante, dá origem a livros e mobiliza escolas de pensamento. Nunca tive muito "tempo" para aprofundar o assunto, mas acabei, um dia, por me cruzar com ele numa discussão governamental, na qual se analisava a questão de Portugal poder vir a ficar com a mesma hora de Bruxelas - e de outros países que a partilham. Não ficou. Foi nessa ocasião que pude perceber, e ver inventariado com minúcia, todo o complexo conjunto de reflexos que este problema tem na nossa vida, desde os efeitos sobre os gastos energéticos às questões escolares e de transportes. A partir daí, passei a estar mais atento ao tema.

Quem sabe se, daqui a poucos anos, tendo já passado à "disponibilidade", uma figura de pré-reforma que existe no meu Ministério, não serei tentado a pedir para representar o MNE nesse grupo de trabalho, com um nome tão insólito como promissor, que se chama Comissão Nacional da Hora. Espero ainda ir a "tempo" de poder colocar essa linha no meu currículo.

Faits divers


É curioso observar esta inescapável tendência da comunicação social para "agarrar" o insólito, o imprevisto, mesmo que insignificante para a história. Ninguém resiste a esta tentação. 

Há uns anos, numa cerimónia pública a que eu assistia, o presidente Lula deixou cair ao chão um copo de água. Os fotógrafos "flasharam". Recordo-me de ter dito para o chefe de gabinete de Lula, que estava ao meu lado: "Vai ser curioso ver quantos jornais amanhã não trarão esta fotografia...". Sem excepção, todos trouxeram!

Já tenho pensado que um bom trabalho de "marketing" político poderia mesmo planear incidentes inocentes, feitos apenas para a fotografia, por forma a humanizar certas personagens políticas. Algumas estão bem necessitadas disso...

Num terreno idêntico, esta questão faz-me recordar a prática de uma pessoa pública que conheço, a qual, durante as entrevistas que concede, sempre "deixa cair" uma ou duas expressões, procurada e controladamente "chocantes", num tom contrastante com o resto das suas declarações. Para quê? Para tentar que essas frases sejam "chamadas" para títulos da entrevista, evitando que os jornalistas venham a escolher outras. Assim procurando contornar a velha regra de qualquer entrevista jornalística: a nossa pior frase será, quase sempre, o título.

sexta-feira, janeiro 29, 2010

Trabalho

Para começar bem o fim-de-semana, deixo-os com uma história clássica da diplomacia brasileira. Já a vi contada como se tivesse sido passada em Lisboa ou em Paris, mas sempre com um porteiro português à mistura.

Um dia, de visita a uma daquelas cidades, uma senhora brasileira decide fazer uma surpresa ao seu sobrinho, diplomata em posto. Bate à porta do consulado brasileiro e pergunta por ele. O porteiro - que tinha de ser português... - responde-lhe:

- Não está.

- E não vem?

- Não, de manhã ele não vem.

- Então volto à tarde.

- Não vale a pena, minha senhora, porque, à tarde, ele não trabalha.

Já houve belos tempos na diplomacia!

Jô Soares

Leio na imprensa que Jô Soares inicia hoje, em Lisboa, espetáculos em torno de Fernando Pessoa.

Jô Soares é uma figura interessante, culturalmente com substância,  com uma escrita limpa e ritmada, autor e ator de grandes momentos de comédia televisiva, com a criação de personagens que ficaram na memória coletiva. Hoje, infelizmente, perde-se um pouco pela obrigatoriedade que a si próprio se impôs de apresentar um talk show seis dias em cada semana. Com raras exceções, acaba, nessa atividade, por fazer programas demasiado "leves", muito abaixo daquilo que é a sua real qualidade profissional. Por isso, um pouco como acontece com Herman José, conheço muita gente que hoje já tem grandes saudades do "velho Jô Soares".

Há três anos, no Brasil, convidou-me para ser entrevistado no seu programa, um dos mais vistos de toda a TV brasileira. É um trabalho de produção e realização impressionante. Há duas gravações por semana. Em cada um desses dias são feitos, de seguida, três programas, que depois são apresentados em três dias consecutivos.

A conversa que tivemos foi bastante simpática, com referências ao amigo comum que era Raul Solnado. Falámos da vida diplomática, do 25 de Abril, de dom João VI e, inevitavelmente, das diferenças entre o português do Brasil e de Portugal. Com notas dele ao nosso "sotaque", claro. E também lá se falou da sua paixão pela obra de Fernando Pessoa.

Para mim, o momento mais delicado do programa foi quando Jô Soares puxou a conversa para uma velha anedota sobre Salazar e Américo Tomás, passada no hospital onde o primeiro estava internado após a sua queda, historieta em que intervém o médico americano que tratou o ditador. Jô Soares procurou a minha ajuda para completar a anedota, a qual, aliás, é algo cruel. Não lhe dei "saída". Acho que ser embaixador de Portugal  não é compatível com a colaboração no apoucamento, num país estrangeiro, de figuras de Estado portuguesas, por mais detestáveis que elas possam ser, como era o caso. Assim, acabei por ficar aquilo que se pode dizer, desta vez muita com propriedade, "sem graça".

quinta-feira, janeiro 28, 2010

Camões

Ao final da tarde de ontem, o centro cultural Gulbenkian proporcionou-nos uma conferência de António Coimbra Martins sobre temática literária, ligada a Lorenzo di Medici e a Luiz de Camões.

Intelectual e académico, António Coimbra Martins viveu grande parte da sua vida em França, onde teve ação destacada nas fileiras da oposição à ditadura portuguesa. A partir de 1965, criou e dirigiu a biblioteca do centro cultural Calouste Gulbenkian - a maior e mais importante existente fora de Portugal, depois da biblioteca do Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro. Dirigiu, depois, o próprio centro cultural Gulbenkian (1997-98). Anos antes, havia exercido funções como embaixador português em França (1974-79) e, mais tarde, como ministro da Cultura em Portugal (1983-85).

Ontem, ouvimo-lo, no "seu" centro Gulbenkian, enquanto académico, especular de forma brilhante sobre curiosas coincidências entre aspetos de obras de Médici e de Camões. A quem não é do "ramo", fez imensamente bem ouvir argumentos inteligentes situados em temáticas distantes do nosso quotidiano.

quarta-feira, janeiro 27, 2010

Conselho de Segurança

Este é um post longo. Como diria alguém, não tenho tempo para ser sintético.

Portugal é candidato a um novo mandato como membro não permanente do Conselho de Segurança da ONU, no biénio 2011/2012.  No passado, exercemos por duas vezes essas funções, sempre com grande eficácia.

Há dias, um amigo perguntava-me por que razão Portugal queria obter, de novo, essa posição, numa eleição que implica gastos e uma mobilização diplomática intensa. A resposta é, de certo modo, simples.

Portugal é um país com uma história e com uma imagem bem firmadas no mundo. Somos um Estado europeu de média dimensão que sempre deu mostras de um forte empenhamento no quadro das relações externas da União, para a definição do qual muito temos contribuído desde a nossa adesão, por vezes numa escala bem superior à de parceiros com um perfil similar.

Estamos no centro de uma Comunidade línguística em crescente projeção internacional, que se forjou por laços culturais e afetivos e que foi ajudada pelo cimento da pertinácia comum em torno da luta pelos direitos de Timor-Leste.

Temos hoje um quadro muito coerente de relações externas, fruto de uma ação séria no seio da comunidade internacional, que nos reconhece como uma entidade dialogante, moderadora, que age na base de princípios e que respeita, em prioridade, a preeminência da ordem multilateral.

Soubemos ultrapassar os tempos traumáticos da conflitualidade colonial e, desde a reimplantação da democracia, somos um dos mais comprometidos parceiros com o mundo africano, tendo sido responsáveis pela iniciativa de duas cimeiras União Europeia-África, momentos únicos na paciente construção de um diálogo institucionalizado entre os dois continentes. Temos sido, além disso, na União Europeia e fora dela, dos mais dedicados promotores de políticas de ajuda ao desenvolvimento e da reflexão sobre os modelos de como elas devem evoluir.

Somos um país exemplar em processos de integração de comunidades estrangeiras, respeito pelas minorias e combate às formas de exploração humana, conduzindo, no quadro da União Europeia e em outras estruturas multilaterais, uma ativa política nesse domínio, fundada em valores humanistas e de solidariedade à escala global. Essa posição, deriva muito do facto de termos vindo a aculturar, após séculos da nossa própria diáspora, atitudes de relação humana e de respeito pela diferença que são hoje uma componente essencial da nossa matriz identitária.

Não sendo, geograficamente, um país mediterrânico, somos considerados pelos nossos parceiros do Magrebe como um dos Estados europeus que melhor entende as questões desse espaço, do mundo árabe e dos desafios de desenvolvimento e segurança que atravessam toda essa região. No Médio Oriente, a nossa voz é reconhecida como sempre tendo mantido uma grande coerência no tocante à procura de soluções de justiça que, simultaneamente, compatibilizem os direitos do povo palestino e a prestação de garantias a um Estado israelita com fronteiras fixadas à luz das determinantes do Direito internacional.

Na América Latina, para além da muito especial relação com o Brasil, temos um excelente entendimento com todos os países de língua espanhola, fruto de laços antigos e de novas solidariedades, muitas das quais firmadas no quadro íbero-americano e na atenção que sempre demos à promoção dos seus interesses dentro da União Europeia.

Portugal é um país respeitado no seio da Aliança Atlântica, mantendo com os Estados Unidos, o parceiro mais importante nesse contexto, um constante e amigável diálogo. Olhamos para o laço transatlântico como um elemento axial do quadro de segurança em que estamos inseridos. A perspectiva que Portugal tem alimentado vai também no sentido de considerar que uma relação eficaz entre os Estados Unidos e a Europa é uma condição indispensável para a promoção, com sucesso, de alguns dos valores que entendemos dever proteger na ordem internacional. As derivas conjunturais ocorridas do outro lado do Atlântico, a que se somaram patéticos seguidismos pontuais assumidas nesta banda, devem ser levadas à conta de meros interlúdios, projetados num quadro que continuamos a ler como estruturante para a preservação dos nossos interesses estratégicos.

As grandes questões relacionadas com a segurança internacional, nomeadamente nos cenários de tensão pós-11 de setembro, têm, aliás, encontrado em Portugal um parceiro interessado e interveniente. Estamos presentes no esforço para a estabilização do Afeganistão, terreno de operações considerado fundamental para evitar uma catastrófica desregulação da região, com consequente aumento dos riscos de proliferação nuclear e propagação do terrorismo - flagelo a que temos dado a maior atenção nos diversos quadros em que é combatido. Ainda na área da segurança, estamos a preparar a cimeira da Nato, que este ano terá lugar em Lisboa, a qual terá no centro da sua agenda a definição do seu novo conceito estratégico, reformulação essencial para a imperiosa "recriação" da organização, à luz das novas ameaças e das novas áreas geopolíticas de actuação.

A imagem de Portugal na Ásia, fixada por uma memória histórica muito positiva, é a de um país cujo passado por lá deixou marcas iniludíveis, nas culturas como nas línguas, como saldo de uma excepcional capacidade de relacionamento humano. Soubémos gerir uma eficaz transição em Macau, num exemplar diálogo com a China. Contrariamente ao que muitos esperariam, a nossa coerência na questão timorense garantiu-nos um respeito acrescido na Ásia e em Estados da Oceania, que apreciaram a sabedoria com que retomámos uma construtiva e descomplexada relação com a Indonésia.

Voltando à Europa, é interessante notar que Portugal teve, desde muito cedo, o mérito de perceber que a abertura do projeto comunitário a novos parceiros era uma exigência, não apenas estratégica mas igualmente ética. A nossa inabalada coerência de atitude face ao conjunto de interesses dos novos Estados membros, do seu desenvolvimento à sua segurança, dá-nos hoje um crédito de reconhecimento que igualmente os ajuda a entender a nossa determinação no aprofundamento do diálogo com a Rússia, bem como o nosso empenhamento na resolução de conflitos e na superação de tensões na importante área de vizinhança da União Europeia a leste, tal como na descoberta de fórmulas mais inclusivas na cooperação com o restante mundo euroasiático.

Portugal trabalha nas instituições multilaterais com "as cartas" sobre a mesa, sem jogos de bastidores, com uma agenda de preocupações que assenta na busca de soluções dialogadas, numa lógica de comportamento que sempre tentamos que seja partilhada pelos nossos parceiros e aliados, situados nos diversos contextos multilaterais ou multinacionais onde nos inserimos e atuamos. Tentamos ser sempre uma voz moderada, que procura até ao limite conseguir soluções fruto do diálogo e do consenso, sem prejuízo do cumprimento das normas internacionais e do corpo de princípios a que aderimos. Sem fundamentalismos  nem ilusões, seguimos uma linha que tenta ser coerente nos processos de promoção da democracia, dos direitos humanos e dos valores do Estado de direito. Estamos também crescentemente atentos às temáticas do ambiente e do desenvolvimento sustentável, onde damos, dia-a-dia, um testemunho próprio de envolvimento no uso intensivo das energias alternativas.

Não será também por acaso que nomes portugueses assumem hoje lugares cimeiros no diálogo entre civilizações, nas instituições europeias ou na protecção dos direitos dos refugiados. Para além das razões de natureza pessoal que os recomendaram, não há a menor dúvida que isso decorre também do facto de beneficiarem da imagem projetada pelo país de onde são originários, onde antes apareceram no exercício de outras funções.

Ao longo dos últimos anos, com a nossa intervenção em processos de manutenção de paz - de Moçambique aos Balcãs, de Timor ao Líbano, entre outros cenários de instabilidade -, mostrámos que não éramos apenas produtores de retórica, tendo muitas vezes assumido um perfil de participação superior àquilo de alguns podiam esperar do nosso estatuto e dimensão económica. As Forças Armadas portuguesas têm-se constituído, pela capacidade e equilíbrio revelados na sua acção em cenários externos de tensão, como uma magnífica e moderna imagem do nosso país.

É a globalidade dessa experiência, a que se soma a continuada vontade de darmos a nossa contribuição para a paz e segurança internacionais, que nos leva a querer estar, por direito próprio, no órgão mais operacional da ONU, uma instituição em cujo futuro acreditamos e cujo papel central na regulação dos conflitos continuamos a defender. Somos intransigentemente a favor do princípio da rotação dos Estados que não têm um estatuto permanente no Conselho de Segurança, pelo que somos fortemente contra uma espécie de subliminar  "usucapião", através do qual alguns procuram ser mais iguais que os outros... Temos também defendido a urgente necessidade de uma reforma do Conselho, que lhe reforce a democraticidade e representatividade, através de uma abertura a novos membros permanentes provenientes da África, Ásia, América Latina e Europa.

Aqueles que, em Portugal, colocam reticências a este esforço de sustentação do nosso prestígio devem pensar que ser português é também ser o herdeiro desta vocação tradicional de afirmação externa, num tempo em que já não queremos estar "orgulhosamente sós". A imagem de Portugal, a promoção dos nossos legítimos interesses, a abertura de espaços de diálogos de toda a natureza, tudo isso passa pela visibilidade e pelo prestígio que uma presença no Conselho de Segurança proporciona. Não perceber isto, assumir atitudes de autolimitação economicista primária, é ajudar a condenar o nosso país a um destino de irrelevância. Uma irrelevância que, de facto. parece ser o sonho de alguns profetas da desgraça que por aí rondam colunas, blogues e debates televisivos.

Alguns poderão interrogar-se sobre a natureza deste longo post. Quem me conhece sabe que ele não é um mero exercício de retórica, nem representa nenhum "recado" oficioso que me tenham "encomendado". É, muito simplesmente, aquilo que eu penso.

Embaixada aberta


A Embaixada de Portugal em Paris rejuvenesceu.

Hoje, um grupo de crianças do ensino primário de português da secção internacional de Chaville, acompanhado de professores, veio cá cantar as Janeiras.

Almoçaram, viram e comentaram um filme sobre Portugal e foi organizada uma representação teatral inspirada no quadro existente na Embaixada, que simboliza a partida, de Lisboa para Inglaterra, de Catarina de Bragança.

Um belo dia!

Europa (2)

Há pouco mais de uma década, no exercício de outras funções, declarei publicamente que o Governo português de então se não revia na perspetiva de uma Europa federal. Essa declaração não fora feita de ânimo leve: refletia uma orientação definida por quem tinha então autoridade política para o fazer e, com ela, queria marcar o sentido das nossas propostas para a revisão do tratado da União Europeia, que estava em curso.

Essa minha tomada de posição valeu-me ser zurzido então por alguma imprensa, que destacou o que considerou ser a nossa falta de "ambição" (palavra que, no jargão europeu, é sinónimo de entusiasmo pelas ideias federalistas) e ter colado Portugal a uma perspectiva "recuada" do projeto europeu.

Perante essa forte reação mediática às minhas palavras, um político português, com responsabilidades superiores às que eu então titulava, disse-me para eu me não preocupar muito e desenvolveu uma irónica teoria: alguns desiludidos com o fim dos "amanhãs que cantam" tinham acabado por encontrar no federalismo europeu um corpo doutrinário de substituição para o internacionalismo proletário, que no passado defendiam...

Lembrei-me ontem dessa leitura das coisas quando, à saída da conferência de Hubert Védrine, de onde transpareceu uma imagem algo desencantada do projeto europeu, alguém lançou, também com uma grande ironia e muita graça: "Tiraram-nos o socialismo, agora tiram-nos a Europa..."

Europa

O Tratado de Lisboa foi o pretexto, mas Hubert Védrine foi muito para além disso na excelente conferência que, ontem ao final da tarde, fez no centro cultural Gulbenkian, aqui em Paris.

Apresentado por Teresa Gouveia, que deu uma bela lição de como se deve fazer a introdução de um conferencista, o antigo MNE francês terá surpreendido pela franca lucidez do seu raciocínio, na abordagem da situação internacional, em geral, e da Europa, em particular.

Hubert Védrine atacou alguns mitos fundacionais da unidade europeia, revelou alguns dos logros em que o pensamento dominante no continente se deixou enredar por décadas e foi de um realismo muito frio quanto às possibilidades da Europa se afirmar como potência no cenário mundial. Por isso, e uma vez mais, volto a recomendar o seu mais recente livro, de que já falei aqui.

Haiti


O Haiti é um Estado que ocupa apenas parte da ilha Hispaniola, a qual abriga, mais a ocidente, um outro país, a República Dominicana.

O Haiti já era, antes do terramoto, muito mais pobre que a República Dominicana, da qual ninguém ouve agora falar e que não sofreu quaisquer efeitos do sismo que destruiu o seu vizinho.

Este post serve apenas para notar este singular contraste.

terça-feira, janeiro 26, 2010

A sombra

Quem eu fui há vinte anos
veio hoje tomar-me do braço e perguntou:
o que fizeste de mim?

Respondi-lhe: fiz tudo quanto deixaste
que eu pudesse fazer.

A sombra sorriu de troça.
E desapareceu.

(Ainda preciso de desculpas
para tudo o que não fiz). 

Luis Filipe Castro Mendes

Poema, com contribuição de memória parisiense, no excelente Tim Tim no Tibet

segunda-feira, janeiro 25, 2010

Lusos


Devíamos ter desconfiado. Por aquele preço, uma viagem Oslo-Paris e volta, com uma semana de hotel, não podia augurar grande coisa. E a prova aí estava: o Hotel des Messageries, na rue des Messageries, a que acabáramos de chegar, num autocarro ido do longínquo aeroporto de Beauvais, onde o charter pousara, era absolutamente infrequentável, mesmo que só por uma noite.

O bando de noruegueses que nos acompanhava parecia de tal modo deslumbrado com a cidade que nem notava a flagrante falta de qualidade do soit-disant hotel. A julgar pelos caixotes cheios de garrafas vazias que enchiam a portaria, despojos do grupo anterior que regressara a Oslo no nosso avião, a semana nórdica em Paris iria ter uma predominante componente etílica.

Por isso, o problema era apenas nosso. Colocámos a questão ao guia norueguês, solicitando-lhe ajuda para encontrar um alojamento alternativo, naturalmente pagando algum diferencial de preço. Acomodada que foi a excursão "viking", conduziu-nos, alguns quarteirões adiante, a um outro hotel. Tinha muito melhor aspeto, vi que aceitavam "American Express", o que me pareceu ser, desde logo, um bom sinal.

Mas a desilusão foi imediata: estavam completamente cheios. O cavalheiro da recepção foi seco e peremptório. Explicou-nos que havia clientes em espera, para a improvável hipótese de vir a surgir uma vaga. Depois de alguma insistência, o guia norueguês, simpático e prestável, confessou-se impotente para, nessa manhã de domingo, resolver o nosso problema. Talvez segunda-feira se conseguisse algo...

Lembrei-me de tentar, eu próprio, obter uma vaga em algum dos hotéis parisienses que conhecia. E pedi ao recepcionista se podia guardar a nossa mala, apenas por umas horas. Deu-me um recibo e tomou nota do meu nome. Ao ouvi-lo, perguntou: "Vous êtes portugais, par hasard?".

Quando disse que sim, a cara do homem, até então seca e formal, abriu-se num sorriso. E o nosso excelente senhor Correia, de Balsemão, perto de Lamego, sossegou-nos: "Sr. Costa, vou-lhe dar o quarto 322. Tem pouca vista, mas é o que se pode arranjar".

O curto diálogo teve lugar perante a incomprensão do guia, que passou de perplexo a quase ofendido, quando viu a chave de um quarto na minha mão. Tentou "tirar satisfações" ao recepcionista: então, perante a anterior démarche dele, não havia nenhum quarto e agora, depois de um minuto de conversa numa língua bizarra, o quarto já aparecia?! Expliquei, como pude, que aquela fora uma solução que emergira de uma vetusta solidariedade lusitana, quiçá incompreensível à luz da righteousness nórdica.

Durante essa semana em Paris, o senhor Correia, que "fazia" os domingos e as noites, passou a aguardar-nos para uma charla no hall do hotel.

Há uns tempos, num fim de semana, passámos pela área. O Hotel des Messageries desapareceu, o que muito terá "debilitado" o património de apoio turístico em Paris... Mas ainda não conseguimos descortinar o hotel onde o senhor Correia nos arranjou o miraculoso quarto.

Como esta história se passou há precisamente 30 anos, presumo que o senhor Correia tenha regressado a Balsemão, onde lhe desejo uma ótima e merecida reforma.

Jorge Molder


Esta é uma ocasião única que a Fundação Gulbenkian nos oferece para apreciar um vasto conjunto de obras fotográficas de Jorge Molder. A exposição foi há pouco inaugurada no seu Centro Cultural em Paris, com a presença do autor.

São três tempos diferentes e complementares do trabalho do artista que nos são apresentados, o mais recente dos quais é a sua colorida "interpretação dos sonhos" - em letra minúscula,  para não se confundir com a obra homónima de Freud, como ironizou o próprio Molder.

São trabalhos poderosos, com grande intensidade dramática, onde predomina o jogo preto-e-branco a que Molder nos habituou, com magníficas expressões de movimento, algumas "memórias" do cinema e uma sempre muito imaginativa exploração dos espaços. Pelo menos, foi assim que eu vi as coisas.

Uma grande exposição, uma excelente "marca" da cultura portuguesa, que uma vez mais ficamos a dever ao magnífico trabalho que a Gulbenkian faz em Paris.

domingo, janeiro 24, 2010

Exportação


Termina amanhã, perto de Paris, a "Maison & Object," uma das mais importantes feiras profissionais de produtos de mobiliário e decoração, realizadas em todo o mundo. Portugal é o 7º país com mais expositores (acreditem!), tendo aumentado substancialmente a sua presença, face a anos anteriores. A direção da feira, que é conhecida por fazer uma exigente e quase cruel seleção dos candidatos, disse-me estar altamente surpreendida com o crescente nível da oferta portuguesa.

Também a mim me impressionou muito a qualidade dos stands e dos produtos portugueses, bem como a atitude profissional dos empresário presentes. Há um novo ou renovado Portugal industrial que é preciso continuar a ajudar a promover, como hoje o faz a AICEP, em aliança com as associações sectoriais. Até porque esse mesmo Portugal, pelo prestígio externo de que já disfruta, constitui parte da nossa própria nova "cara" no mundo.

Sei que vou em contra-corrente ao vento de tragédia que alimenta algum colunismo luso, mas quero dizer que encontrei por lá, nas cerca de 30 empresas cujos stands visitei, dentre as quase 60 que aqui vieram representar a indústria portuguesa, um espírito de saudável otimismo. Com certeza que não é exemplo que se possa generalizar, mas um dos industriais com quem falei, ao ter-lhe perguntado como via as expectativas de saídas para a crise, disse-me, com o sotaque nortenho da maioria, apenas isto: "Que se fale menos e se trabalhe mais". Apeteceu-me vê-lo no "Prós e Contras".

Obama


Um ano passou sobre a eleição de Barack Obama. As discussões sobre o "saldo" destes primeiros meses provam que o novo presidente americano é uma óbvia vítima da elevada expectativa que criou à sua volta.

Se tivesse sido John Mc'Cain a ganhar, muito provavelmente não estaria a ser "cobrado" como agora acontece com Obama, em quem se concentraram esperanças de cura de todos os males da América. E até do mundo.

Reconheça-se que muitas coisas não correram bem, até agora. Algumas delas relevam da insuperada rigidez do sistema americano, como a reforma da saúde ou o imbróglio sobre Guantánamo, a que acrescem os efeitos da crise económica. Outras derivam de uma situação internacional onde os EUA descobrem os limites para que a sua influência e o seu voluntarismo sejam determinantes, como no caso de Israel, ou que não bastam tropas para ganhar as guerras, como acontece no Iraque ou no Afeganistão. 

A constatação de algum desapontamento neste primeiro ano de mandato do presidente americano, tanto na sua opinião pública como no exterior, não nos deve levar a conclusões apressadas. George W. Bush começou bem alto nas sondagens e acabou como acabou. Obama poderia repetir Mark Twain, dizendo que as notícias sobre a sua morte política são muito exageradas. Por muito que isso contrarie os seus adversários.

sábado, janeiro 23, 2010

Luis de Sousa Rebelo (1923 -2010)

Leio que entrou para o Partido Comunista no ano em que eu nasci. Era um homem sereno, com um sorriso simpático e uma fantástica e viva erudição. Durante muito tempo, foi para mim apenas o nome que, em cada ano, assinava textos sobre Portugal nos volumes de atualização da "Encyclopedia Britannica". Vim depois a inteirar-me da sua excelente carreira académica, com uma cátedra no King's College, onde trabalhou 36 anos. Com também vim a saber, anos mais tarde, através dessa curiosa figura do Portugal londrino que foi António de Figueiredo, que Luis de Sousa Rebelo foi uma das figuras centrais na elaboração do "Portuguese and Anticolonial Bulletin".

Quando vivi em Londres, foi-me um dia apresentado por Bartolomeu Cid dos Santos. A partir daí, passei a encontrá-lo com alguma frequência, muitas vezes na companhia de Hélder Macedo e de Eugénio Lisboa, dois dos seus amigos mais próximos. Habituei-me a admirar a sua palavra doce e a sua ironia fina. Além de umas passagens de ano em casa do Bartolomeu, em Sintra, juntaram-nos também jantaradas anuais da Crabtree Foundation, em Londres. Da última vez que o vi, senti-o já irremediavelmente frágil.

Luis de Sousa Rebelo teve uma carreira académica de grande mérito, como ensaísta, tradutor e crítico literário. Passou grande parte da vida no Reino Unido. Morreu há dias, em Portugal.

e-book


Um amigo brasileiro, diplomata e prolífico escritor da área das relações internacionais, mandou-me um convite para o "lançamento virtual", hoje, de um seu e-book, isto é, um livro em edição eletrónica, que pode ser adquirido aqui. A sessão tem como ponto alto um "chat" com o autor, a ter lugar aqui. Para o convite ser completo, só não fica clara a forma como poderemos ter acessos aos salgadinhos que estas ocasiões sempre proporcionam.

O mundo muda muito...

Distância

 
O suplemento "Weekend" do "Económico", de hoje, traz uma longa entrevista comigo, concedida há mais de um mês - sobre a diplomacia e sobre muitas outras coisas da vida corrente. Vejo no "site" a minha foto lado-a-lado com o popular pugilista leonino Sá Pinto, escolha editorial, no mínimo, curiosa.

Não conseguindo "abrir" o jornal à distância, resta-me aguardar, daqui a dias, a chegada do texto em papel. É uma sensação um pouco estranha: ser responsável por declarações que outros podem ler e de que eu já quase me não lembro...

sexta-feira, janeiro 22, 2010

Condecorações


Ontem, ao final da tarde, procedi à entrega das insígnias da Comenda da Ordem do Infante Dom Henrique ao Dr. José António Ribeiro Monteiro, uma personalidade portuguesa, residente em Paris, que se destacou na área académica e empresarial e cujo perfil profissional e pessoal foi considerado pelo Presidente da República, sob proposta do Governo, como merecedor de destaque e de distinção pelo Estado. Um condecoração merecida e justa, que ressoa o lema histórico do Infante: "talent de bien faire".

Cada vez acho mais importante que este tipo de reconhecimento do Estado português seja feito com grande rigor e com fortes critérios seletivos, a fim de ficar garantido, na memória comum, que o gesto tem significado e não constitui um mero sinal de natureza protocolar. As condecoração são, de certo modo, a forma contemporânea de nobilitação. Devem, por essa razão, corresponder a uma leitura muito ponderada das qualidades daqueles a quem são atribuídas e, muito em especial, da contribuição por eles dada ao prestígio da comunidade que os distingue.

Identidade nacional

O debate sobre a identidade nacional, que o governo francês estimulou nos últimos tempos, tem aqui sido objecto de tomadas de posição muito contrastantes.

Para alguns sectores, tal discussão comporta o risco de derivas no sentido do isolamento de comunidades de origem estrangeira cujas expressões culturais públicas se afastam daquilo que a França tradicional tem por "norma". Nessa perspectiva, as comunidades muçulmanas aparecem como as primeiras visadas e a tentação do apelo a políticas mais restritivas à imigração acabará por ser a resultante final do exercício.

O governo assume uma outra perspectiva. Na sua ideia, é importante tentar identificar aquilo que entretanto mudou na sociedade francesa, permeada por imigrações de várias origens, hoje marcada por expressões sócio-culturais muito diversas oriundas de núcleos de cidadãos nascidos já em França. Essa identificação é feita em paralelo com o sublinhar dos elementos que se entendam relevantes para a fixação de uma matriz identitária, histórico-cultural, colada à especificidade de "ser francês".

Como pano de fundo para esta discussão está a tomada de consciência, para muitos franceses, de que o país onde nasceram era muito diferente daquele em que hoje vivem e que essa mudança foi também produto da presença de estrangeiros e, agora, de novas gerações, já  nascidas francesas, deles originários. O modo como a sociedade francesa olha para este facto varia imenso.

Porque este debate assenta muito na questão da introdução da "diferença", sem o qual não teria razão de ser, acaba naturalmente por ser potencialmente mais agressivo para comunidades com origens sócio-culturais que se afastam do padrão europeu tradicional. Quero com isto dizer que ele não afecta diretamente, por exemplo, a comunidade de origem portuguesa.

Estamos longe do fim desta polémica, mas talvez ela acabe por ter de consagrar uma ideia simples que alguém, há dias, apresentou num debate televisivo: gostem ou não alguns cidadãos franceses desta realidade, as regras da cidadania democrática vão acabar por obrigá-los a aceitar essa coisa comezinha de que é francês quem tenha um bilhete de identidade francês.

quarta-feira, janeiro 20, 2010

Futebóis

Há dias, o "Blogue" de Marcelo Rebelo de Sousa publicado pelo "Sol" (semanário que, aqui a Paris, "llega quando llega"), recordou uma historieta clássica da relação luso-brasileira, que não resisto a registar, com a devida vénia.

Estávamos em Março de 1975, tempo "quente" e revolucionário da política portuguesa, com Vasco Gonçalves como primeiro-ministro de Portugal. No Brasil, a ditadura estava em pleno, com Ernesto Geisel na presidência. Enfim, época forte para os militares de ambos os países, embora de sinal bem contrário. Por isso, um ambiente de alguma tensão nas relações bilaterais, em que cabia ao embaixador português, Futscher Pereira, usar toda a sua conhecida genialidade diplomática para acalmar as hostes locais.

A seleção portuguesa fora convidada para disputar contra o Brasil o jogo inaugural de um estádio, numa cidade não muito distante de Brasília. Embora formalmente "amistoso",  o jogo acabou, a certa altura, por gerar um incidente: um jogador português lesionou-se e foi substituído. Minutos depois, aparentemente por confusão, o mesmo jogador reentrou no jogo. Portugal jogava, assim, com 12... O árbitro apercebeu-se e encetou um longo e ácido "bate-boca" com Pedroto, então treinador português. A nossa equipa começou a ser apupada por todo o estádio e o anedotário lusófobo deve ter sido escasso para alimentar a expressão do desagrado do público local. Pedroto pretendia que a sua equipa abandonasse o terreno de jogo. Marcelo Rebelo de Sousa (à época, membro da direcção da Federação Portuguesa de Futebol, para quem não saiba) e o seleccionador Abílio Rodrigues conseguem evitar o que seria um escândalo. Mas não conseguem evitar que os brasileiros, na ressaca da irritação, cancelem a receção em honra dos representantes da "mãe pátria".

A vida não ia então fácil para as relações luso-brasileiras. Para a história, Portugal perdeu o jogo, o que terá acabado por atenuar o desfecho do incidente.

33 anos depois, também na inauguração de outro estádio, também perto de Brasília, também num jogo amigável, Portugal voltou também a perder - desta vez por uns esmagadores 6-2! O embaixador português era outro, não ameaçámos abandonar o terreno de jogo, não houve incidentes diplomático-protocolares, mas, podem crer!, a noite também não foi fácil para quem então representava Portugal no Brasil. E se, em 1975, jogámos com um dúzia, fiquei com a sensação de que, dessa vez, jogámos apenas com meia-dúzia... É que houve jogadores que não cheguei a "ver" em campo. Valha-nos o facto de, agora, as relações bilaterais serem excelentes.

Hipócrates?


O senhor bastonário da Ordem dos Médicos portuguesa afirmou hoje ser contra a decisão de abertura de mais vagas nos cursos de Medicina e que, se essa tendência se prolongar nos próximos anos, teremos "pessoas a acotovelarem-se nos hospitais".

Não disse qual era a solução alternativa, mas, presumivelmente, ela passaria sempre por um modelo que preservasse a manutenção da capacidade reivindicativa que a actual escassez de médicos dá aos respetivos sindicatos.

O senhor bastonário poderia talvez ouvir as pessoas que penam horas nos serviços de urgência com médicos sobrecarregados de trabalho, as que passam meses à espera de uma consulta especializada ou de uma operação, as que têm de se deslocar muitos quilómetros pela ausência de clínicos nas zonas rurais e periféricas, as que perdem dias nas salas de espera dos consultórios, aguardando que alguns médicos saltitem entre empregos. E poderia perguntar-lhes se essas pessoas acham que há médicos a mais, em Portugal. Mas esses são problemas pelos quais, estou seguro, o senhor bastonário não passa, pois não?

OSCE


O Casaquistão assume, durante 2010, a presidência da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE).

Convirá dar uma ideia do que é a OSCE. Trata-se de uma organização que decorre do processo de "détente" entre o Leste e o Oeste, consagrado, em 1975, pelo Acto Final de Helsínquia. A OSCE teve um papel relevante na estruturação do diálogo que envolveu a então URSS e o mundo ocidental, muito em especial no enquadramento dos processos de regulação dos armamentos convencionais de ambos os lados dessa "trincheira" política. Com o fim da União Soviética e da Guerra Fria, a organização passou a juntar todos os Estados que dela emergiram, a generalidade dos países europeus, bem como os Estados Unidos e o Canadá. Tem hoje 56 países, dos 192 que a ONU comporta.

Com sede em Viena, a OSCE funciona hoje como um barómetro de certas tensões internacionais, quer de ordem militar e de segurança, quer de natureza puramente política - como questões de democracia, Direitos Humanos, protecção de minorias, etc. É uma organização com uma dinâmica muito dependente dos equilíbrios do diálogo russo-americano. O facto de decidir por consenso torna-a refém fácil de quaisquer situações polémicas que ocorram no seu vasto espaço.

Dentro da OSCE foram-se desenhando, ao longo do tempo, dois mundos diversos: o dos Estados "a oeste de Viena" - o ocidente - e o mundo dos países "a leste de Viena". Este último, grosso modo composto pelos Estados resultantes da implosão soviética, e não obstante algumas diferenças mantidas dentro de si, tem uma leitura muitas vezes desconfortável da atitude do primeiro, que interpretam como algo "patronizing" e promotora de "lições" de Democracia e regras básicas do Estado de direito. Acresce que os chamados "frozen conflicts" (Nagorno-Karabach, Transnístria e a situação na Geórgia - com a questão da Ossétia do Sul e da Abcásia) contribuem para alguma crispação do diálogo em Viena.

Até hoje, só Estados do ocidente tinham presidido à organização. A presença do Casaquistão, o mais importante Estado da Ásia Central, à frente da OSCE constituirá, assim, uma "première" e, ao mesmo tempo, um forte desafio à organização, tanto mais que ela tem uma estrutura central relativamente débil, muito dependente da capacidade de liderança das presidências. Soma-se a isso o facto do Casaquistão se propor organizar uma Cimeira dos chefes de Estado e de Governo da OSCE, durante o corrente ano, a qual, a ter lugar, pode assumir um papel decisivo numa reorientação futura da organização.

Portugal presidiu à OSCE em 2002, depois de ter realizado uma sua Cimeira em 1996. Coube-me presidir ao Conselho Permanente da OSCE na fase decisiva da nossa presidência, concluída na reunião ministerial do Porto, em Dezembro desse ano.  Porque vivíamos o tempo posterior ao 11 de Setembro, tentámos colocar o tema do combate ao terrorismo no centro da nossa agenda, por nos parecer que era uma área com condições de federar uma leitura comum ao "oeste" e ao "leste" de Viena. Essa perspetiva prevaleceu e a presidência portuguesa ficou, na história da OSCE, como a última que conseguiu fazer aprovar as suas conclusões por unanimidade.

Em 2004, fui convidado pelas autoridades casaques para, na sua capital, Astana, fazer uma exposição sobre a nossa experiência enquanto presidência, estando já então o Casaquistão a alimentar a sua vontade de vir a assumir tais funções. À época, foi para mim muito interessante detetar o que poderia vir a ser uma agenda de preocupações e intenções dessa futura presidência, que se afastava, em alguns pontos de uma perspectiva mais "ocidental". Veremos, agora, como ela se objetiva.

Portugal é visto, no seio da OSCE, em particular pelos países situados "a leste" de Viena, como um parceiro muito construtivo, dialogante e sempre preparado para ajudar a "construir pontes". Sem nos afastarmos um milímetro dos compromissos assumidos noutros contextos, nunca interpretamos a organização como uma espécie de terreno para a batalha ideológica, mas sim como um espaço privilegiado para o diálogo. É talvez essa a nossa diferença e é com ela que procuraremos ajudar a presidência casaque a ter sucesso.

terça-feira, janeiro 19, 2010

Línguas

O homem era simpático, bem-falante e parecia conhecedor daquilo que o trazia a Nova Iorque. Era um tema muito técnico e o nosso perito parecia, de facto, ser a pessoa adequada para o abordar. A sua intervenção estava prevista para a tarde do dia seguinte e, por essa razão, o embaixador perguntou-lhe se já trazia a sua intervenção preparada. O nosso homem sacou de três folhas da pasta, que entregou ao embaixador. O texto vinha em português. O embaixador inquiriu: "Prefere que façamos a tradução para inglês ou para francês?", línguas em que estava previsto que a leitura fosse feita. A resposta deixou o embaixador sossegado: "Tanto me faz!". Até que, um segundo depois, o nosso perito acrescentou: "Não falo nenhuma das duas..."

Pessoa(s)


No sábado passado, na Casa de Portugal, na Cité Universitaire de Paris, teve lugar uma sessão de divulgação sobre Fernando Pessoa, uma excelente iniciativa que se fica a dever ao entusiasmo de Manuel Rei Vilar, diretor da Casa. Música, cinema, leitura de poemas e, muito em particular, um excelente debate sobre a projeção de Pessoa em França ocuparam algumas belas horas, sem perda de ritmo e com grande interesse do público presente.

Numa das suas intervenções, a especialista pessoana Teresa Rita Lopes, que coordenou o debate, contou uma divertida história, que aqui reproduzo.

A propósito do (des)conhecimento que Pessoa sofria, em tempos, aqui por França, Teresa Rita Lopes referiu que José Augusto Seabra (uma figura intelectual e política de quem, em breve, falaremos com mais detalhe) pretendeu um dia obter de Roland Barthes uma carta de apoio para um pedido de subsídio que queria apresentar à Fundação Gulbenkian, com vista a preparar uma tese sobre Fernando Pessoa. Uma recomendação de uma figura como Barthes seria, seguramente, um elemento muito importante para a consideração do seu projeto.

Seabra "mexeu os cordelinhos" e lá conseguiu obter a almejada carta de Roland Barthes, com que contava abrir as portas à obtenção da bolsa. Dias mais tarde, os seus amigos perguntaram-lhe se já tinha enviado a recomendação à Gulbenkian. Embaraçado, Seabra revelou que não, que decidira não juntar a carta ao processo de candidatura. É que Barthes, no seu texto, ao querer sublinhar a importância do trabalho do investigador,  referiu que ele  pretendia fazer um estudo sobre a obra de "quatro poetas portugueses": Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis...

segunda-feira, janeiro 18, 2010

Exposição


Há dias, encontrei à venda na internet esta reprodução da entrada do pavilhão de Portugal na Exposição Universal de Paris de 1878.

De facto, impressionante!

domingo, janeiro 17, 2010

A leste


Em 2002, um "think tank" que apoia as Nações Unidas, a "International Peace Academy", dirigido então por esse magnífico diplomata canadiano que dá pelo nome de David Malone, organizou um "retiro" de dois dias, num hotel a umas horas de Nova Iorque, juntando quinze embaixadores.

O objetivo, se bem me lembro, era discutir a ideia "impossível" de articular melhor a actividade do Conselho de Segurança com a do Conselho Económico e Social (ECOSOC), de que eu era então um dos quatro vice-presidentes. Era uma ideia antiga, que surgia de tempos a tempos, ressuscitada por um qualquer pretexto de conjuntura. O exercício estava, uma vez mais, condenado ao fracasso porque, por razões curiosamente opostas, quer Cuba quer os Estados Unidos discordavam do aprofundamento dessa cooperação.

Por um motivo que não importa agora para aqui, eu havia-me empenhado em organizar uma sessão especial do ECOSOC dedicada à matéria, para a qual consegui "arrastar", não sem algum esforço, o meu colega britânico, Jeremy Greenstock, que nesse mês presidia ao Conselho de Segurança. O resultado foi o que foi, mas excitou o interesse da "International Peace Academy", que sabia que o tema agradava ao SG da ONU, Kofi Annan.  Dada a minha actividade nesse contexto, fui "upgraded" para o grupo, onde predominavam os embaixadores dos chamados P-5 (os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança) e de outros "key" ou "major players" internacionais.

Mais para equilibrar geograficamente o debate do que por qualquer outro motivo, foi convidado um embaixador de um grande país "do sul", um antigo político, pouco vocacionado para reflexões especiosas sobre matéria técnicas de relações internacionais. Desde o início, verifiquei pelo seu "body language" (ou melhor, pela sua visível sonolência) que estava muito pouco interessado no tema, que não intervinha e que revelava um enfado com as discussões - que, aliás, foram bem interessantes.

Logo ao final do primeiro dia, cruzei-me num corredor com o nosso homem, de malas aviadas  de regresso a Nova Iorque. Disse-me, na sua língua, que "estava farto" e que a discussão lhe parecia "estéril" - no que podia ter alguma razão, num plano imediatamente prático, se se  esquecessem algumas dimensões políticas mais subliminares. E acrescentou, ao despedir-se: "Só me faltava vir para aqui discutir a Alemanha de Leste!"

Não percebi o que quis dizer e não tive tempo para me esclarecer, porque desapareceu, apressado. Mas fiquei com a frase na cabeça. C'os diabos!, que eu me lembrasse, ninguém tinha falado da Alemanha de Leste, nem tal vinha a propósito, tantos anos depois da queda do muro de Berlim, ainda por cima na presença do embaixador alemão.

Dias depois, encontrando-o na ONU, não resisti e perguntei-lhe: "A que propósito, há dias, no "retreat", referiste a Alemanha de Leste? Esse tema nunca foi discutido...". O homem abespinhou-se: "Em bem vi na agenda da reunião que vocês, no dia seguinte, iam falar disso! Era o único tema para metade dessa manhã. Estava lá bem escrito: DDR! Ora, para o meu país, isso agora já não interessa nada!"

Não sei se ele me perdoou alguma vez a sonora gargalhada que dei no Delegates Lounge. Na linguagem "onusina" e não só, DDR significa "demobilization, disarmement and reintegration"...  

Frase

"Já não há ricos. Já não há pobres no Haiti. Agora, são todos iguais" - Gilberto Nunes António, português que vivia no Haiti há 27 anos, à sua chegada à Europa.

sábado, janeiro 16, 2010

Tintin na China


As aventuras de Tintin vão passar a ser publicadas na China, depois de largas décadas de proibição. Com a óbvia excepção do "Tintin no país dos sovietes", porque há demónios que não convém, por ora, chamar à vida. E estou curioso com a edição do "Tintin no Tibete".

No que nos toca, os chineses terão agora oportunidade de apreciar as astúcias mercantis de Oliveira da Figueira, a sabedoria académica do professor coimbrão Pedro João dos Santos e as movimentações africanas do jornalista sem nome do "Diário de Lisboa" - as três únicas personagens portuguesas criadas por Hergé, com o primeiro apenas com alguma relevância.

Pergunto-me também de que forma as imprecações do capitão Haddock vão ser vistas pela China e nem posso a imaginar o que pensarão do já clássico insulto "bachi-bouzouk". Contudo, com o seu volume demográfico, talvez os impressionem menos os "mille milliards de mille sabords de tonnerre de Brest"..

Quanto a eventuais censuras nos álbuns, a ocorrerem, elas estariam longe de ser as primeiras: até por cá já tivemos intervenções "à Estaline", no tempo do saudoso "Cavaleiro Andante" e da nada saudosa ditadura, como em tempos lembrei aqui.

Eleições

Uma nova pré-campanha eleitoral vai ter início em Portugal. Ainda parece que foi ontem que terminou o annus electoralis de 2009 (europeias, legislativas, municipais) e lá vamos nós para mais um ritual de sufrágio, que vai voltar encher os jornais e as televisões, desta vez de uma forma ainda mais fulanizada. Regressam as sondagens, as suas contradições e as dúvidas quanto à sua fiabilidade. Com os nomes do costume e alguns "realinhamentos" para provocar surpresa, listas de personalidades alinharão por detrás dos candidatos. Regressarão os "blogues da política" aos seus dias gloriosos, uns mais independentes, outros farouchement sectários, uns com linguagem marcada por uma saudável urbanidade, outros roçando a boçalidade insultuosa. Enfim, um déjà vu.

Este é o preço da nossa democracia, que tem a superior vantagem de colocar nas mãos dos cidadãos as múltiplas escolhas possíveis, nos variados níveis institucionais em que elas se podem objectivar. Um preço que, não obstante poder ser considerado pesado, por virtude das dispersão de atenções em temáticas muitas vezes mais adjectivas do que substantivas, deveria ter como contrapartida a geração de uma maior consciência pública e o lançamento de um debate mais aprofundado sobre as grandes opções que estão por detrás das escolhas de natureza política que são propostas.

Interrogo-me, contudo, se será possível detectar, como resultante desta cumulação de debates eleitorais, a decantação de uma opinião pública cada vez melhor informada para fazer face às propostas com que se vai confrontar no momento do sufrágio, a quem as campanhas eleitorais tenham proporcionado instrumentos de formação de vontade, assentes em verdadeiras alternativas objectivas de natureza programática. Nunca poderemos ter certezas sobre isto, mas sinto, de forma um tanto impressionista, que o debate político português mantém um superávite de "espuma dos dias" e um défice de racionalidade.

Esta constatação, a ser verdadeira, pode justificar algum desencanto com a "coisa pública" que se pressente em sectores mais jovens do eleitorado e, num contexto completamente diferente, o alheamento que se verifica em áreas das Comunidades portuguesas no exterior, que acabam por reflectir na abstenção a distância que sentem face à realidade política que observam.

Mas, enfim, sejamos optimistas. Pode ser que a próxima campanha eleitoral contribua para um muito melhor esclarecimento. Portugal e os portugueses merecem isso.

sexta-feira, janeiro 15, 2010

Afeganistão


Às vezes, tenho sensação de estar a viver uma segunda vida, como profissional de relações internacionais, de tão diferentes e surpreendentes que algumas coisas se apresentam.

O artigo há dias publicado no "International Herald Tribune" por dois altos responsáveis russos, intitulado "Conselhos russos no Afeganistão", tinha-me escapado, e só o "Le Monde" de hoje mo fez recuperar. Os autores são o embaixador russo junto da NATO e o antigo comandante militar russo no Afeganistão.

Todo o texto é interessantíssimo. Essencialmente, procura convencer os aliados da NATO a não desinvestirem na guerra do Afeganistão, porque isso iria ter consequências desastrosas para toda a região, nomeadamente para os Estados da Ásia Central, que faziam parte da antiga URSS e que, vale a pena lembrar, são hoje, cada um à sua maneira, vistos por Moscovo como uma "almofada" potencial de segurança contra o islamismo radical. Em especial, foi-me patente o flagrante contraste do texto com a clara orientação subjacente à posição do comandante de uma unidade russa destacada no Tajiquistão, na fronteira com o Afeganistão, numa visita que aí fiz com três colegas da OSCE, em inícios de 2004.

Mas é o estilo do que se diz no artigo que prova o que o mundo terá mudado. Quem, há uns tempos, veria dois altos responsáveis russos exprimirem-se da seguinte forma?:

- "Se a Aliança não cumprir a sua tarefa, o comprometimento mútuo dos seus 28 Estados-membros ficaria afetado e a Aliança perderia o seu fundamento moral e razão de ser".

-  "Uma saída (do Afeganistão) sem uma vitória poderia causar um colapso político das estruturas de segurança ocidental".

- "Fomos os primeiros a defender a civilização ocidental contra os ataques dos fanáticos muçulmanos. E ninguém nos agradeceu por isso".

- "O mínimo que requeremos da NATO é consolidar um regime político estável no país e evitar a talibanização de toda a região".

- "Estamos muito insatisfeitos com o ambiente de capitulação no Quartel-General da NATO, quer ele se exprima por um "pacifismo humanista" ou por pragmatismo".

E mais não transcrevo, porque os leitores deste blogue só ganharão em ler a peça toda aqui.

Já tenho observado muitas reviravoltas no panorama internacional, mas ver Moscovo a falar  no registo de um general do Pentágono e a apelar, da forma que o faz, para o reforço de compromissos da NATO out of area constitui uma experiência verdadeiramente única. Até porque tem toda a razão...

quinta-feira, janeiro 14, 2010

José Gil


José Gil é um pensador da "coisa portuguesa", espécie intelectual bastante rara. Quanto mais não seja, só por isso, merece toda a nossa atenção.

Mas o que dele aqui trago hoje é uma imagem, porventura polémica, da sua visão sobre as "categorias" entre os imigrados políticos portugueses em França, no tempo do Estado Novo, que há dias li numa sua entrevista ao "Público":

"Uma delas eram grupos que não se abriam à sociedade francesa e europeia: fechados sobre si, só falavam do que estava a acontecer em Portugal, da avenida da Liberdade, das notícias que chegavam de Portugal. Outros abriam-se malgré eux - sem que eles o quisessem; e como não estavam preparados para isso, perdiam-se. Entravam em loucura, em alcoolismo, as promessas de juventude de que seriam grandes poetas iam por água abaixo, suicidavam-se. Uma terceira categoria: rapazes e raparigas que se abriam à sociedade francesa, e que o queriam. E aí começava um tumulto de outro tipo: não ser integrado pela sociedade francesa e perder todos os benefícios secundários que se tinham em Portugal. Em Portugal, quando havia problemas emocionais, desregulamentos, havia sempre uma família."

Seria assim?

Google


Há muito que havia quem previsse que, cedo ou tarde, a globalização (ou mundialização, como dizem os franceses) da internet poderia ser fortemente ameaçada. Vários países condicionam já o acesso dos seus internautas ao espaço global, intervindo nos respectivos servidores. Um "corte de relações" total não ocorreu ainda, mas a actual crise entre a Google e China já não surpreende ninguém.

A "net" é um meio complexo, passível de distorções e fonte de muitos equívocos. Mas, por cima de tudo isso, ela criou um espaço ímpar de comunicação, de intercâmbio e de divulgação do conhecimento. Julgo que isso é incontestável. Sem a menor dúvida, há dois tempos históricos na comunicação universal: antes e depois da internet.

A diplomacia tem as suas regras e a "realpolitik" também. Por isso, apenas digo que, para mim, o direito ao usufruto da internet é hoje uma das liberdades fundamentais que nos compete proteger.

quarta-feira, janeiro 13, 2010

Diplomacia e liberdade

Acaba de ser publicado um livro com uma longa entrevista com o antigo primeiro-ministro Lionel Jospin. Dele falaremos em breve.

Para já, gostava de transcrever a razão dada por Jospin para abandonar o Ministério dos Negócios Estrangeiros francês, onde ingressou por cinco anos, no início da sua vida profissional: "O trabalho interessava-me, os constrangimentos da vida de embaixada menos. E, depois, tudo passava pela renúncia a valores, a referências, a esperanças que eram muito importantes para mim". Para acrescentar: "Quis reencontrar a minha liberdade de pensamento, de acção, de empenhamento, pelo que senti a exigência de uma ruptura", porque "aumentava o fosso entre os desejos e as esperanças do estudante de esquerda que eu tinha sido e o destino que se desenhava para o jovem alto funcionário em que eu me tinha tornado".

Aqui está a prova provada de como, num país como a França, podem germinar experiências bem diferentes daquelas que são concedidas em Portugal aos profissionais do mesmo ofício. Para honra do Ministério dos Negócios Estrangeiros português.

Hedi Annabi


Uma noite de 2002, em Nova Iorque, depois de um jantar que ofereci na residência do embaixador de Portugal na ONU, lugar que eu então exercia, Hedi Annabi, um dos convidados, disse-me que tinha de sair, ainda antes da hora do café. E explicou-me: "Moro longe, em "upstate" e, logo de manhã, tenho de estar no meu gabinete. Tenho de apanhar o comboio. É por isso que raramente consigo aceitar os teus convites para jantar".

Sendo em geral simpáticos, os salários que a ONU pagava aos seus funcionários, mesmo de nível superior, como era o caso, não davam para poder ter um bom apartamento em Manhattan, pelo que alguns preferiam ir viver na parte norte do estado de Nova Iorque, isto é, "upstate", como ali se diz.

Heddi Annabi era "Assistant Secretary General" no departamento de operações de paz, nessa altura com o tema de Timor-Leste sobre a mesa. Era voz corrente ser muito escutado por Kofi Annan. O meu "número dois", o ministro-conselheiro Nuno Brito, assinalara-me Annabi como uma das pessoas que era importante cultivar, desde o primeiro momento, na gigantesca máquina da ONU. E tinha razão. Foi talvez das primeiras pessoas que fui visitar, depois da minha chegada a Nova Iorque.

Era uma figura discreta, serena, sorridente, que logo notei muito organizada e meticulosa. Tinha humor, sabia ter ironia sem ser cínico, o que era uma prova de caráter. E era homem de uma só palavra, o que nem sempre é comum na vida multilateral - e noutras também, convenhamos. Criámos uma excelente relação pessoal, com consequências funcionais que se tornaram evidentes.

Quando saí de Nova Iorque, deixei de saber de Annabi. Aconteceu-me o mesmo com outros amigos diplomatas que fui deixando espalhados pelo passado, nacionais de países onde trabalhei ou outros estrangeiros que entretanto rodaram pelo mundo. Alguns, poucos, voltei a cruzar em outros postos, com outros fui trocando mensagens, mas, com a esmagadora maioria, fui perdendo contacto. Foi o caso de Annabi.

Até um dia de 2005. Tinham passado três anos desde que eu tinha saído de Nova Iorque. Acabara de chegar ao Brasil, como novo embaixador. Um dia, o meu colega Rui Macieira, então ministro-conselheiro na nossa missão na ONU, telefonou-me de Nova Iorque. Annabi contactara-o, pedindo que me transmitisse um convite de Koffi Annan para poder apresentar o meu nome como Representante Especial do Secretário-Geral da ONU para a Costa do Marfim. A resposta tinha de ser rápida.

O conceito de "zona de conforto" veio-me logo à cabeça. Sempre embirrei com o regular elogio que é costume fazer-se a quem sai "fora da sua zona de conforto". Ora a "zona de conforto", se a conquistamos, deve ser preservada. Olhei à minha volta e pensei: o Brasil era o penúltimo posto da minha carreira, antes de ter obrigatoriamente de abandonar o serviço externo. Tinha para mim que a vida me ia correr bem por ali. Por que diabo iria sair de Brasília? Ir viver em Abidjan, num país politicamente convulso, deixando a minha carreira, para ganhar uma linha curricular e, possivelmente, algum dinheiro mais? Nem ousei suscitar a hipótese à minha mulher! Fiquei muito grato a Annan e a Annabi, disse isso mesmo ao Rui Macieira e não pensei mais no assunto. (Soube, entretanto, que o lugar veio a ser ocupado pelo antigo representante permanente da Suécia na ONU, Pierre Schori, com quem eu coincidira em Nova Iorque e que já era um amigo antigo, de outras "guerras").

Desde então, passaram cinco anos e não tinha tido mais notícias de Hedi Annabi. Até hoje, quando soube que morreu no terramoto que assolou o Haiti, onde chefiava a missão da ONU naquele país.

terça-feira, janeiro 12, 2010

República(s)



Há dois dias, troquei impressões com um bom amigo português, de visita rápida a Paris, sobre a diferença de perspetiva em torno do conceito de República, existente em França e em Portugal. Concordamos em que, enquanto entre nós a República é muitas vezes vista apenas como um regime que se opõe à Monarquia, em França o ideário republicano é aceite como uma ética de cidadania, em que assenta a própria democracia.

A diabolização da I República, que o Estado Novo hiperbolizou pela sua rejeição dos partidos políticos e da Democracia, acabou por colar, para muitos, o conceito republicano à face trágica do regicídio, às perseguições religiosas e a algumas das "trapalhadas" do período 1910-1926. Deliberadamente, essa estratégia de propaganda, feita sem oposição doutrinária, tentou fazer esquecer que muita dessa instabilidade, originada no quadro de uma democracia jovem e em curso de implantação, foi ela própria fruto da ação destabilizadora dos seus inimigos - com alguns monárquicos sempre na primeira linha. Para além dos erros que os republicanos cometeram - e não foram poucos -, é importante deixar claro que foram os seus inimigos quem abriu as portas à ditadura, em 1926, e que construíram ou apoiaram o regime autoritário subsequente, que só o 25 de Abril derrotou, quase quatro décadas depois.

Lembrar alto e bom som esta realidade, revisitar e sublinhar todas virtualidades da República, constitui uma tarefa exigente que, durante este ano do seu primeiro centenário, todos os republicanos portugueses serão chamados a fazer, com vigor e sem concessões, denunciando, com frontalidade, os revisionismos da História.

A Embaixada de Portugal em Paris, para além de se associar a diversas comemorações e eventos alusivos aos 100 anos da República, irá organizar, durante 2010, iniciativas nesse quadro celebratório. 

Ficções e realidades

Hoje, almocei com um amigo que está a acabar um trabalho de ficção em prosa. De passagem cá por casa está um consagrado poeta. Eu fico-me em prosaicas realidades. E não desgosto.

segunda-feira, janeiro 11, 2010

Rohmer


É, com toda a certeza, uma questão geracional, mas marca-me cada vez mais a desaparição de personalidades cujas obras funcionaram como "tijolos" da própria construção daquilo que sou. Há pouco, pela televisão, chegou-me a notícia da morte de Eric Rohmer.

Por instantes, veio-me à memória um ciclo de cinema francês, numa sala perto da avenida de Roma, em Lisboa, no início dos anos 70. E recordei-me dos seus "Contes Moraux". Dos embaraços à beira-lago da figura de Brialy, no sempiterno "Genou de Claire". Das angústias existenciais da personagem de Trintignant, no "Ma nuit chez Maud" (na imagem), filme que me levou a ler Pascal e que me criou uma ideia mítica de Clermont-Ferrand. E do inesquecível "L'amour l'après-midi", de onde um amigo meu retirou o dito magnífico de que "mais vale à tarde do que nunca"...

Ao rever agora a filmografia de Rohmer, dou-me conta dos vários filmes dele que ainda não conheço. Fica-nos essa sua magnífica herança.

Porém, que deste post não nasçam confusões: tal como Philippe Séguin, desenhado ontem à tarde no belo discurso de despedida do presidente Sarkozy, sinto-me por vezes melancólico, nunca nostálgico.

Ainda Caminha

Foi um par de horas de conversa, na tarde de sábado, na Biblioteca Municipal de Caminha, tendo como anfitriã a vereadora da Educação, dra. L...