sábado, outubro 23, 2010

Moratinos

Estávamos num jantar de trabalho, no Luxemburgo, no fim do primeiro dia de um Conselho de ministros Assuntos Gerais da União Europeia, em 1996.

Abel Matutes, ministro espanhol de "Exteriores", revelou-me que a Espanha tinha um candidato para o importante lugar que o Conselho Europeu iria criar, dentro de dois dias, de enviado especial da UE para o Médio Oriente. Tratava-se de garantir à Europa uma maior visibilidade política no processo de paz, à altura do apoio que a ele já prestava no domínio económico. Matutes hesitava, contudo, em avançar, desde já, com o seu nome, porque tinha indicações de que os britânicos se lhe oporiam, pelo interesse que se dizia poderem ter no cargo. Porém, não tendo aparecido outros candidatos, a imediata colocação em liça de um nome colocaria a Espanha na dianteira, com todos os eventuais futuros nomes já a surgir como seus "challengers". Estas eram as razões que fundamentavam a hesitação.

Matutes explicou-me também que a figura espanhola pensada para o cargo era o seu recém-nomeado embaixador em Tel-Aviv, Miguel Ángel Moratinos. Perguntou-me se acaso eu poderia vir a obter o apoio de Lisboa para o candidato espanhol. Expliquei-lhe que não precisava de consultar Lisboa e ele que podia contar, a 100% e desde logo, com o pleno apoio do governo português. (Esta é, na prática, uma regra não escrita nas relações luso-espanholas contemporâneas: apoiamos mutuamente os nossos candidatos, a menos que tenhamos interesses próprios a salvaguardar ou compromissos com terceiros a respeitar).

Animado com a minha reação, e após discretas aproximações positivas a mais dois colegas, Matutes acabou por lançar para a mesa a proposta do nome de Moratinos. Como era de esperar, o britânico David Davies, "minister for Europe", pediu mais tempo para refletir. Para grande satisfação de Matutes, fui o primeiro a "sair à carga", argumentando que o desenvolvimento rápido da situação na região impunha que a Europa mostrasse, de imediato, uma "cara" no processo de paz que tomava então formas crescentemente positivas e que Portugal propunha formalmente que, daquele jantar, saísse já uma aprovação "de princípio" do nome espanhol (que elogiei sem sequer conhecer...). Por uma daquelas dinâmicas que, às vezes, ocorre neste tipo de encontros, e um tanto pelo efeito surpresa provocado pela proposta de Matutes, acabou por gerar-se um sentimento alargado de apoio ao candidato espanhol. O nome de Moratinos foi anunciado formalmente, logo nessa noite, como a proposta unânime dos chefes da diplomacia ao Conselho Europeu (isto é, aos primeiros-ministros). David Davies, à saída do jantar, estava agastado comigo e com a "pressão ibérica" que eu tinha ajudado a transformar em decisão...

Miguel Ángel ("Curro", para os amigos) Moratinos permaneceu no cargo de enviado especial da UE para o Médio Oriente de 1996 a 2003, tendo sempre mantido conosco um excelente relacionamento, nomeadamente durante a nossa presidência da UE, em 2000. Com um trato pessoal de grande afabilidade, que esconde uma forte determinação, Moratinos ajudou a credibilizar a voz europeia num processo onde, por uma culpa que não é sua, a Europa tem sempre e apenas o "óscar" para o "melhor ator secundário".

(Para a "petite histoire", posso revelar que, num jantar idêntico ao de 1996, que teve lugar na Grécia em Junho de 2003, os chefes da diplomacia europeia abordaram a questão da substituição de Moratinos, o qual pretendia abandonar o cargo de representante especial da UE para o Médio Oriente. Um único nome foi então discutido e a aprovação dos ministros em torno dele ficou praticamente garantida. O nome era... o meu! Porém, o governo português de então não havia tido nem o cuidado nem a elegância de me consultar previamente, tendo optado por "testar" a aceitabilidade do meu nome sem querer saber da minha eventual disponibilidade, contando que eu aceitaria o facto consumado. Por essa e por outras razões, recusei a possibilidade de indigitação. O Conselho Europeu ficou então sem um candidato que nunca o fora e Moratinos acabou, muito contra a sua vontade, por ter de prolongar-se por mais alguns meses nas funções. Esta historieta surgiu em vária imprensa da época, como, por exemplo, aqui. Na altura, sobre o assunto, escrevi isto.)

Moratinos seria chamado, anos mais tarde, a dirigir a diplomacia do seu país. O seu relacionamento com Portugal manteve-se excelente. Saiu anteontem do governo espanhol, numa remodelação surpresa efetuada pelo presidente Zapatero. 

A diplomacia espanhola e a diplomacia portuguesa têm, nos dias que correm,  fortes pontos de contacto e de convergência. Isso deve-se muito a homens como "Curro" Moratinos.

6 comentários:

Helena Oneto disse...

Gostava de ter com a ilusão de que, se o Senhor tivesse sido o representante especial da UE para o Médio Oriente, haveria hoje dois estados soberanos e independentes, não desfazendo, claro, a acção do Senhor Moratinos. Mas a política é o que é e não o que devia ser, hélas!

Francisco Seixas da Costa disse...

Cara Helena: está enganada. Ninguém faria melhor que Miguel Moratinos.

Helena Oneto disse...

No meu 1° comentario queria dizer "gostava de ter ficado com a ilusão" de... Neste, e depois de o ler, resta-me ficar com a certeza que nem ilusões podemos ter...

Ainda a propósito de impostos, verdade seja dita que se a ilusão pagasse imposto, os portugueses seriam o povo mais pobre du mundo!

patricio branco disse...

Não sei se moratinos foi um bom bom ministro dos assuntos exteriores ou não, no todo. Mas em relação a cuba e veneuela foi quase repugnante, funcionou como advogado daqueles regimes junto da UE, nunca se preocupando com o desrespeito pelos dhs por lá, pela falta de democracia. Nunca palavra sua de condenação se ouviu, em tudo lançava água fria na fervura, bem como a vice la vega. Foi ao ponto de comprar os presos politicos cubanos e os levar para espanha, para dar a ilusão que era o regime que expontaneamente os libertava.O regime aceitou, eram divisas que entravam, foi uma transacção. E chavez fazia dele o que queria.
Claro que na base de tudo isto está o ambicioso projecto espanhol de dominar económicamente a AL
e de muito ganhar com as enormes riquezas do continente. À ecepção do méxico, espanha é já o 1º investidor na resto da AL. Uma forma de neo colonialismo, por dinheiro moratinos/espanha esquecia os dhs.
Até o rei que mandou calar chavez pelos horrores que ele estava a dizer sobre espanha foi obrigado a retratar se e pedir desculpa algum tempo depois.
É boa a saida de moratinos, que zapatero lhe dê uma embaixada ou o psoe o coloque como candidato à camara duma importante cidade do sul numas proximas eleições autarquicas.

patricio branco disse...

Posso acrescentar que a ultima de moratinos em relação a hugo chavez foi desvalorizar ou tentar suavizar a presença activa de membros da eta na venezuela, onde parece que até têm campos de treino, sendo o chefe da organização lá o vasco cubillas (que tem um alto cargo publico, bem como sua mulher, esta na presidencia da republica). Moratinos e la vega suavizaram tudo.
Chavez, por seu lado, em represália a decisões de tribunal espanhol sobre cubillas, não achou melhor maneira de retaliar que confiscando uma grande e modelar empresa agrícola de canarios na venezuela.
Mas para moratinos e la vega nem a presença da eta, o apoio às farc, as relações com o irão, as nacionalizações intempestivas de bens espanhóis por chavez têm especial importancia.
Creio que para zapatero já bastava de moratinos e a eta foi a gota que fez entornar o copo

patricio branco disse...

sem querer abusar, acrescento um fait-divers protagonizado por moratinos. Os governantes deram em chorar em publico, tal como lula da silva, que o fez ultimamente em duas ou três ocasiões. pois tambem moratinos chorou em publico ao saber que deixava de ser MAE.
Contraria foi a reacção na venezuela e cuba, onde se expressou alegria e até se celebrou a saida de moratinos.
O escritor espanhol artur perez reverte ridicularizou moratinos pela choradeira ao sair, e não só.
Só josé socrates não chora, o sorriso não lhe sai da cara.

Obrigado, António

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