sábado, julho 31, 2010

Álvaro Salema (2)

O post que, há dias, publiquei, sobre Álvaro Salema, provocou surpresas: "Quem era? Nunca tinha ouvido falar". Creio que alguns, lá no íntimo, terão julgado que eu estava apenas a magnificar um conhecimento pessoal, por discriminação de simpatia.

Talvez estivesse, mas não estava sozinho. Leiam (um pequeno extrato d)o que escreveu Jorge Amado, na sua "Navegação de cabotagem", quando soube da morte de Álvaro Salema:

"A morte de Álvaro Salema chega-me pelo telefone (...). Ai, meu Deus! exclamo quando Nuno (Lima de Carvalho) me diz: desculpa chamar-te para má notícia, Salema morreu. (...) A partir de agora Portugal será menos ensolarado, menos alegre, menos fraterno. Perco o amigo português de toda a minha vida, o amigo perfeito, o de todos os instantes, aquele que tudo sabia e tudo podia entender.(...) Eu projetara ir a Portugal nesse outubro (...). Já não irei, cadê coragem de olhar para o rosto de Elisa, de pronunciar o nome de Álvaro? (...) O homem mais modesto, o mais corajoso, o mais leal, o mais digno, Álvaro Salema. Em silêncio se retirou de cena, pouco antes do final da tragicomédia, personificava a decência, já não tinha lugar no palco."

Rua José Saramago, Porto

Paris, 2010

sexta-feira, julho 30, 2010

Culpados públicos

Não é novidade para ninguém que há hoje figuras, que já eram ou se tornaram públicas, ligadas a processos judiciais, que surgem como irremediavelmente "condenadas" no imaginário popular, por muito que as imputações preliminares ou as reais acusações a eles dirigidas acabem por ser não provadas. 

Não se diga que esta atitude resulta apenas de deficiente formação cultural ou que está restrita a um mundo opinativo excessivamente condicionado pela comunicação social "tabloidizada". Quem, de entre nós, não acha que este ou aquele autarca "tem uma cara chapada" de corrupto, que aqueloutro dirigente desportivo "tem mesmo pinta de vígaro" ou que uma ou outra personagem "tem um arzinho" de pedófilo? Por muito que controlemos, em público, esses nossos sentimentos íntimos, a verdade é que há juízos de convicção que já formámos e que, no fundo, acabarão por condicionar o próprio modo como avaliamos o desfecho dos processos.

Com frieza, teremos de concluir que esta subjetividade apreciativa tem a ver com o modo como fomos "digerindo" aquilo que nos entrou portas dentro, pelas televisões ou pelos jornais, com a leitura que, intimamente ou em grupo, fomos fazendo de tomadas de posição ou das notícias vindas a público. Nestas se incluem as fugas ao segredo de justiça, os "leaks" promovidos, a "desinformação" provocada, além da má-fé e, quiçá, alguma informação verdadeira.

Mas - assumamos! - há outros fatores que nos condicionam a todos, uns de ordem política e ideológica, outros de mera simpatia ou antipatia, seja pelos sujeitos em causa, seja pelos veículos mediáticos ou pelos "opinion makers" que titularam posições nos diversos casos. Ninguém está virgem neste contexto, por mais neutral que possa julgar-se.

Duas entidades se salientam, para o bem e para o mal, em todas estas histórias: a justiça e a comunicação social.

Da primeira, o mínimo que se pode dizer é que perdeu, em poucos anos, um prestígio que, historicamente, mantinha no imaginário público, devida ou indevidamente. A ânsia de expressão mediática, as contradições entre os seus agentes e instâncias, a frequente propensão para jogar com os "media", a assumida lentidão de procedimentos e a comum dilação de atos formais  - tudo isso se traduz hoje numa imagem degradada do estado da justiça portuguesa, provavelmente muito superior àquele que corresponde à sua real situação. Aquilo que deveria ser um esteio de estabilidade psicológica na nossa sociedade transformou-se, infelizmente, num fator de polémica, de aparente arbítrio e de real insegurança.

Quanto à comunicação social, assistimos, nos últimos anos, à perversa absolutização do chamado "direito à informação", uma espécie de desígnio divino assumido, às vezes, por uns histéricos estagiários com um "corneto" ou um gravador na mão, arautos do interesse de uma opinião pública de que alguém os arvorou representantes. Vida privada e privacidade, presunção de inocência e distinção entre estádios de investigação, tudo isso são pormenores despiciendos para quem apenas tem como objetivo fazer títulos ou "peças" sonantes. O que ainda me espanta é que alguns profissionais, criados noutra escola deontológica, que levou anos a "ganhar" o seu estatuto em democracia, estejam agora a "mandar às urtigas" os princípios em que foram formados, mercantilizando-se para vender minutos de imagem ou páginas de jornais.

A conjugação da ação destas duas instâncias conduz a que, no termo dos processos, quando as conclusões da justiça não são aquelas a que já se haviam "sentenciado" algumas personalidades, a conclusão dos opinadores de sofá ou de "snack-bar" seja: "estão todos feitos uns com os outros", "eles sempre se safam" e "isto é tudo a mesma pandilha".

Será assim? Não é. Há culpados e inocentes, há vigaristas soltos, figuras caluniadas e, provavelmente, alguns injustiçados. Este é, contudo, o preço de uma democracia frágil, pouco educada e com um nível cívico muito baixo. É o retrato do Portugal de hoje, do país que somos. E, se não somos melhores, a nós e só a nós o devemos.

quinta-feira, julho 29, 2010

Outra "República"

Há 35 anos exatos, o António Pinto Rodrigues chegou uma noite a minha casa, em Lisboa, com uma ideia "genial". O "caso República" estava no auge, a polémica em torno da saída forçada de Raul Rego e dos restantes membros socialistas do jornal, tomado de assalto por uma linha radical, havia-se transformado num acontecimento internacional. Que tal publicar um livro "rápido", com um dossiê sobre o assunto? O mercado estava maduro...

Para quem o não conheça, convém começar por dizer que o António era e é um empreendedor nato, com ideias sempre a transbordar, às vezes só travadas por essa trágica parede de desilusão que é a realidade das coisas.

"Quem edita? Estás a brincar... Toda a gente quereria editar um livro desses, mas nessa é que não caímos: editamos nós! Vamos ganhar uma pipa de massa! Arranjamos uma tipografia, assinamos umas letras e damos ao Lopes do Souto para distribuir. É dinheiro em caixa. Vai por mim!". E eu fui.

A conversa com Lopes do Souto, uma figura consagrada da distribuição, que o António já conhecia, não me deixou sossegado: "Olhem que o mercado está saturado de livros políticos. Estamos no pico do Verão. Isto desatualiza-se rapidamente".

Qual quê! O António não se deixava ir nestas cantigas desanimadoras: "Estes gajos são uns medricas. Isto está para lavar e durar! Vai ser um êxito. E, para evitar a chatice das reedições, fazemos já 12 mil exemplares". A edição deste tipo de livros raramente excedia 1500 exemplares, mas o entusiasmo do António, que tinha trabalhado no ramo, calou as minhas dúvidas - num tempo em que eu estava mais ocupado a fazer a estranha transição entre ser militar do PREC e passar a diplomata dos Negócios Estrangeiros, em cujo concurso de entrada fora entretanto apurado.

Em duas noites, escrevi o texto que estruturava o livro. Hoje, sorrio ao observar a linguagem e o estilo dessa longa introdução, que é menos uma reflexão ponderada sobre o "caso" em si e, muito mais, um belo retrato de mim mesmo, nesses tempos. O livro ficou artesanal, com tipo e papel bem pobres, estrutura estilo "recorta-e-cola", com alguns depoimentos recolhidos à pressa, outros pirateados da comunicação social. Salvava-se a capa, com alguma graça. As gralhas foram mais do que muitas,  mas, apesar de tudo, muito menos que os milhares de exemplares que ficaram por vender e que, a certa altura, já nem sabíamos onde guardar.

Claro que, de imediato, veio a fatura. As letras venciam-se e nós tínhamos de as reformar, dos nossos próprios pobres salários da época. Era "fiador" o então sogro do António, José Palla e Carmo. Foi bastante duro, durante vários meses.

Depois, o António e eu fomos viver por esse mundo fora, encontrando-nos a espaços, amigos para sempre, tendo como "obra" comum "O Caso República". E a memória ímpar desse mítico verão de 1975.

Ah! não vale a pena procurarem um exemplar de "O Caso República". Está esgotadíssimo!

Prou!

terça-feira, julho 27, 2010

Verão!

40 anos

Estava um dia de intenso calor. Tinha acabado de desembarcar na estação da Régua, vindo de Vila Real, pela velha linha do Corgo. Aguardava o comboio que, partido de Barca d'Alva, me levaria ao Porto. Aí apanharia a ligação para Lisboa, onde deveria chegar depois de uma viagem de cerca de 10 horas. Era assim, no Portugal de então. "A rádio está a anunciar que morreu o Salazar", disse-me o meu cunhado, que tinha ido tentar apanhar, na tabacaria, o "Diário de Lisboa" do dia anterior, que não tinha chegado a Vila Real e cuja leitura era então, para nós, "obrigatória".

Recordo-me bem de não ter tido qualquer sentimento particular perante a notícia. Salazar tinha morrido politicamente quase dois anos antes, em Setembro de 1968, quando fora substituído por Marcelo Caetano. Desde então, a decadência física do antigo ditador havia sido exposta algumas vezes à mórbida curiosidade pública, com patéticas aparições cuja mediatização quase que parecia destinada a sublinhar o deperecimento político do próprio salazarismo. Alguns, mais bem informados, conheciam o episódio caricato da entrevista ao "L'Aurore", que revelava a existência de um cenário de ilusão em S. Bento, que dava a Salazar a ideia de que ainda era chefe do governo, com a participação teatral de alguns ministros.

No que aos portugueses verdadeiramente interessava, o caetanismo mostrara, nesse período, ter chegado ao limite em termos de abertura política. Uma crise académica séria atravessara o país. As eleições de 1969 haviam constituído uma enorme farsa, a política colonial mostrava-se, definitivamente, como o eixo cristalizador de um regime em que a repressão e a censura se acentuavam de novo. Sá Carneiro e a "ala liberal" iam perdendo as esperanças na propalada "primavera política".

Passam hoje 40 anos sobre esse dia, quase tantos quantos o regime autoritário dirigido por Salazar, que começou e se prolongou sob tutela militar, havia imposto a Portugal. Menos de quatro anos depois, outros militares iriam pôr termo ao que restava do salazarismo.

Desde então, Salazar transformou-se numa curiosidade histórica. Revindicado por saudosistas ou diabolizado pelos opositores, talvez venha a propósito lembrar que a única vez que se sujeitou a sufrágio - e foi eleito - foi durante a vilipendiada Primeira República. 

segunda-feira, julho 26, 2010

Chamar um embaixador

Há dias, a nossa comunicação social comentou bastante o facto do embaixador de Israel em Portugal ter sido chamado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, por virtude de declarações públicas que havia proferido e que Lisboa considerou menos consentâneas com o seu estatuto.

"Chamar um embaixador" estrangeiro é um gesto excecional, que, na maioria dos casos, se pratica e anuncia publicamente quando se pretende manifestar o desagrado do governo face ao Estado que esse embaixador representa ou, o que também acontece, perante o comportamento, tido por inadequado, de um dos seus agentes diplomáticos - como foi agora o caso. Mas outras situações podem justificar o ato.

(Como curiosidade, vale a pena deixar aqui registada aquela que é uma prática tradicional das diplomacias: quando há uma coisa desagradável a dizer a um governo estrangeiro, utiliza-se para tal o embaixador desse país na nossa capital; quando a mensagem é agradável, usa-se o nosso embaixador acreditado nesse país. A lógica, óbvia, é preservar mais o nosso diplomata...)

Há uns anos, vi-me obrigado a ser protagonista de um caso similar.

O representante diplomático em Lisboa de um país candidato à entrada na União Europeia, no decurso de um jantar numa outra embaixada, perante muitos convidados portugueses e estrangeiros, afirmou, alto e bom som, que o governo português de então (ao qual eu pertencia) era de uma "refinada hipocrisia". Segundo o diplomata, Portugal andava a espalhar que era favorável ao alargamento da União quando, na realidade, toda a gente sabia que tinha imensas reservas a isso e que tudo iria fazer para boicotar a entrada de novos países na União.

Esta acusação era perfeitamente infundada, como o futuro veio a provar à saciedade. Portugal terá sido, dentre os países comunitários, um dos que mais favoreceu o alargamento, por entendê-lo como um importante passo estratégico para a ideia de Europa que cultivava. Só que, pelos vistos!, isso não era ainda percebido por alguns.

O meu chefe de gabinete e uma alta responsável do MNE estavam presentes nesse jantar e reagiram de imediato, defrontando-se então com a reiteração obstinada do embaixador, que insistiu mesmo noutros comentários negativos sobre o nosso suposto comportamento, tudo isto dito perante larga audiência. Algum estímulo etílico poderia ter contribuído para a prolixidade crítica do embaixador, mas a inimputabilidade alcoólica não faz parte dos privilégios e imunidades dos diplomatas.

Mandei chamar o diplomata, com caráter de urgência, ao meu gabinete, sem o informar do tema. Recebi-o, acompanhado do director-geral político-económico do MNE. Disse-lhe ter sabido das suas afirmações (cujo teor exato eu tinha entretanto confirmado), as quais não pretendia comentar nem era minha intenção discutir. Queria que soubesse que considerávamos que ele estava no pleníssimo direito de ter, sobre o governo português e as suas atitudes, todas as opiniões que muito bem entendesse. Da mesma forma, o governo português sentia-se no direito de, em face dessas declarações, que entendia da maior gravidade, delas vir retirar todas as consequências que considerava óbvias para as relações futuras entre Portugal e o seu país. 

Dito isto, levantei-me e, com um "Have a good day!", dirigi-me à porta, onde fiquei à espera do embaixador, de cara fechada. O nosso homem ainda ficou sentado por um segundo, depois levantou-se, gelado e branco, tartamudeando, nos breves passos até à saída, algumas desculpas, onde figurava a ausência de quaisquer intenções ofensivas no que dissera. Estendi-lhe a mão, sem mais uma palavra, e fi-lo sair do gabinete. O diretor-geral, que me acompanhava e a quem eu não tinha prevenido do "modus operandi" que iria seguir, estava siderado e, logo que ficámos sós, soltou uma impublicável interjeição, surpreendido com o que testemunhara.

Não me arrependi. Para a história: as relações entre Portugal e esse excelente país não foram, claro!, afetadas. Fui, entretanto, sabendo que o pobre do embaixador passou a desfazer-se em elogios a Portugal e à política do nosso governo, em tudo quanto eram ocasiões públicas e perante interlocutores ele sabia que poderiam vir a informar-nos.

Respeitar o governo perante o qual se está acreditado, comportar-se com contenção na apreciação pública das suas políticas ou das suas autoridades e, em especial, esforçar-se por interpretar corretamente as intenções do governo local é uma regra de ouro para qualquer profissional da diplomacia. Nas comunicações internas que enviamos às autoridades que representamos temos o direito e a obrigação de dizer tudo o que pensamos, por mais cáustico que isso possa ser; nas nossas tomadas de posição públicas, mesmo em ocasiões sociais, temos que ter toda a parcimónia e consideração devidos ao país que nos acolhe. Quem assim não proceder, e em função da gravidade do ato praticado, deve saber que as regras são claras: ou é subtilmente "isolado" e desprezado pelas autoridades do país onde está acreditado, ficando com a sua atividade limitada, ou recebe uma "rabecada" formal, mais ou menos publicitada, ou, no limite, é considerado "persona non grata" e terá de abandonar o posto. A escolha é sempre do diplomata.

O futuro da CPLP

O pedido de ingresso da Guiné-Equatorial na CPLP, evidenciado na cimeira de Luanda, tem a virtualidade de lançar um debate identitário no seio da organização e de, por essa via, vir a potenciar e a clarificar alguns dos seus alinhamentos internos de forças - que são uma real floresta por detrás da árvore de retórica que sempre tem de envolver este tipo de cimeiras. 

Todas as eventuais clivagens que este processo possa vir a revelar devem ser encaradas com naturalidade, porque elas são apenas o salutar sintoma de que a CPLP começa a ter uma crescente relevância na projeção estratégica de alguns dos seus Estados-parte.

Lisboa, 41 º C !

domingo, julho 25, 2010

Cinema

António Pedro de Vasconcelos pertence a uma raça muito rara de cineastas portugueses que conseguem cumular três características: terem indiscutível qualidade, não serem chatos e, seguramente por isso, terem, entre nós, um público que paga para ver as suas obras - essa coisa pouco comum, algo "suspeita" e até menos dignificante, no peculiar mundo da produção cinematográfica lusa. José Fonseca e Costa é outro desses autores.

O cineasta tem, por essa razão, toda a autoridade - profissional e cultural - para se pronunciar como o fez, numa carta que dirigiu à ministra da Cultura, que pode ser lida aqui. A sua tese é simples: o Estado democrático não deve ter uma política do gosto.

Não tenho a menor dúvida que esta declaração, frontal e corajosa, de António Pedro de Vasconcelos vai ao arrepio da opinião de quantos, lá no fundo, não se importam de ver as salas de cinemas do nosso país "cheias" como a imagem documenta. São os adeptos de um cinema português para uns "happy few", onde se contam os amigos, os amigalhaços da crítica e, presumo, os membros dos júris que lhe atribuem os subsídios.

Personalidade

Quando o embaixador pediu ao motorista para parar o carro, aí a uns 500 metros do hotel para onde se dirigiam para almoçar, o jovem diplomata que o acompanhava ficou um tanto surpreendido. Estavam alguns graus negativos, o caminho tinha muita neve e, na realidade, não havia nenhuma justificação para que a viatura oficial os não deixasse, confortavelmente, à porta do hotel. Porquê ficar àquela distância? Atendendo, porém, ao facto de que o seu recém-chegado chefe estava a ser pródigo em atitudes algo bizarras, o nosso jovem já nem reagiu. "Vamos a pé", comandou o embaixador, levantando a gola e arrancando, sob o vento e a neve, para o distante hotel. 

O secretário de embaixada seguiu-o, naturalmente. A passada do embaixador começou, contudo, a acelerar, assumindo quase um ritmo idêntico ao dos corredores da marcha olímpica. O jovem diplomata ainda o acompanhou por algumas dezenas de metros mas, a certo ponto - o que é demais é erro! -, decidiu ir ao seu próprio ritmo, sem seguir aquela passada sem sentido, cansativa e desnecessária. Quando, por fim, chegou à porta do hotel, o embaixador esperava-o, há quase um minuto, com um sorriso leve. E foram almoçar.

Passou um ano. As relações entre o embaixador e o seu secretário estabilizaram num bom ambiente, com as manias do primeiro a serem aceites, já sem surpresas, pelo segundo. A certo ponto de uma conversa, o embaixador perguntou: "Você lembra-se, um dia, de eu ter acelerado muito o passo, numa ida a um restaurante, tendo você ficado para trás?". Claro que o secretário se lembrava desse episódio, nunca tento tido a ousadia de o referir. "Você marcou pontos nessa ocasião", disse o embaixador. "É que aquilo foi um teste. Eu tinha acabado de chegar, não o conhecia bem. Tomei essa atitude para o experimentar. Se você me tivesse seguido, no ritmo exagerado de passada que eu utilizei, isso significava que você era uma pessoa fraca. Como não me acompanhou, mantendo o seu próprio ritmo, percebi que você tinha personalidade e vontade própria. Passou no teste".

Esta é uma história verdadeira. As pequenas embaixadas são microcosmos onde se potenciam as idiossincrasias, onde por vezes se agudizam gratuitamente tensões e onde o isolamento faz vir ao de cima traços insuspeitados de caráter, às vezes mesquinhos e autoritários, outras vezes surpreendentemente generosos e delicados. São "caixas de Pandora" da personalidade de cada um, mas onde nem sempre as surpresas são as melhores.

Como Salazar dizia das pessoas que trabalhavam num certo departamento do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e por conta desta historieta, às vezes fico sem saber se há alguns que vão para a carreira diplomática porque são assim ou se ficam assim por terem ido para a carreira diplomática...

sábado, julho 24, 2010

Vuvuzelas

O Sporting foi o primeiro clube português a anunciar a proibição do uso de vuvuzelas no seu estádio.

Pode não vir a ganhar mais nada, mas já ganhou o campeonato do bom-senso.

Suissa

Ontem, numa emissão da RTP dedicada às comunidades portugueses no exterior, ao ser referido um tema de literatura, apareceu a identificação de um cidadão como residente em Genebra, na "Suissa".

É claro que o escriba da legenda não estava a procurar transcrever a forma antiga do nome do país alpino. Fê-lo, obviamente, por efeito dessa iliteracia que hoje se propaga como endemia, sem vacina à vista, na nossa comunicação social, que leva a erros de calibre bem mais chocante, de que as legendas que correm no fundo dos telejornais são recorrente sintoma.

O grande problema é que, no caso vertente, e muito provavelmente, ninguém fez qualquer observação ao "jornalista" em causa, os poucos que terão notado o erro não o devem ter considerado relevante e, dessa forma, tudo vai continuar na mesma. Aliás, é nessa "cultura" de facilismo e de falta de exigência que alegremente prossegue o "serviço público" fornecido por essa boa ideia transformada em tragédia "pimba" que dá pelo nome de RTP Internacional.

Álvaro Salema

Ontem, numa conversa, veio à baila o nome de Álvaro Salema. Muitos dos leitores deste blogue não o conhecerão bem, alguns nem sequer terão ouvido falar deste ensaísta e jornalista que desapareceu, com 77 anos, em 1991, e que, com Álvaro Cunhal, chegou a dar aulas a Mário Soares, no Colégio Moderno.

Devo começar por dizer que, de há muito, considero que Álvaro Salema é uma das  importantes figuras portuguesas a que o 25 de abril, por que tanto lutou, não fez a justiça que lhe era devida. A culpa é de todos nós, a começar pelo próprio Álvaro Salema. Já explico porquê.

Salema foi uma figura da maior importância na vida intelectual portuguesa, a partir dos anos 40. Professor e crítico literário, foi um escrupuloso cultivador de uma ética pública de grande rigor, que o levava a um auto-apagamento que acabou por afetar a visibilidade do lugar que lhe é devido na história cultural de Portugal. A política era, para ele, um espaço de exercício de serviço à comunidade, pelo que alimentava uma exigência que o tornava quase intolerante perante os que entendia que dela apenas se serviam. Com um intocável currículo na luta pela democracia,  ao tempo em que era arriscado assumi-la como objetivo, foi preso e perseguido. Nunca procurou cargos ou prebendas, alimentando mesmo um cáustico desprezo por quantos viviam nessa obsessão.

Durante muitos anos, Álvaro Salema foi redator principal do "Jornal do Comércio", um dos mais antigos diários económicos portugueses. Dirigiu os suplementos literários do "Diário de Lisboa" e de "A Capital" - ao tempo em que esses espaços tinham um papel fundamental na vida intelectual do país. Colaborou em inúmeras publicações, como a "Seara Nova", o "Sol Nascente" ou o "Colóquio Letras", tendo obtido distinções internacionais pelos seus trabalhos de crítica literária, distribuídos por vários livros.

Por razões que não vêm para o caso, tive o ensejo de privar com Álvaro Salema. Dele recolhi exemplos de postura ética que me levam a manter uma grande admiração pela sua memória. Achei importante dizê-lo aqui.

sexta-feira, julho 23, 2010

Talentos

É muito gratificante, como hoje aconteceu na distribuição dos Prémios Talento, ver indicadas e distinguidas várias personalidades que orgulham a nossa comunidade em França. 

A multiplicidade dos "talentos" nomeados - e muitos outros o poderiam ter sido - é bem demonstrativa do modo como os portugueses em França têm sabido construir os seus percursos de êxito. É o próprio nome de Portugal que resulta prestigiado dessa sua afirmação.

quinta-feira, julho 22, 2010

Forcados

A imagem que hoje deu a volta ao mundo - uma figura, dentre os assistentes da estrada, vestido de forcado a correr atrás dos líderes da etapa do Tour de France que terminou no histórico Col du Tourmalet - ilustra bem as dificuldades da diplomacia pública portuguesa.

"Slow limite"

"Grosses têtes" é um divertidíssimo programa radiofónico diário da RTL, que muitas vezes roça o "politicamente incorreto". Dirigido, desde 1977 (!), por Philippe Bouvard, é feito de questões muito diversas, colocadas pelo animador aos convidados, geralmente gente com muita graça e sentido de humor. Às vezes, são horas de grande gozo!

Há dias, um dos convidados, chamado a qualificar a canção "Et si tu n'existais pas", de Joe Dassin, saiu-se com esta: "No meu tempo, era chamado o "slow limite". Num baile, se com ele não se conseguisse 'sacar' uma namorada, então o caso estava perdido".

Aqui fica, para análise. ilustrada por uma imagem desviada dessa "Enciclopaedia Britannica" do romantismo que é o Criativemo-nos.

quarta-feira, julho 21, 2010

Ainda um telegrama

O curto e incisivo telegrama que ontem referi num "post" fez-me lembrar uma outra historieta similar, também famosa na nossa "casa".

Um dia, a um embaixador, foi pedido por telegrama que efetuasse uma determinada diligência, junto do ministério dos Negócios Estrangeiros local. O assunto era relativamente urgente. 

Passaram alguns dias e não houve resposta. Na antiga linguagem tradicional, que poupava artigos e preposições, Lisboa voltou a insistir: "Muito se agradeceria Vexa resposta urgente nosso ...." (indicando o número do telegrama que havia formulado o pedido).

O embaixador mantinha-se, contudo, em silêncio. O posto era distante, os telefonemas eram difíceis, a via telegráfica continuava a ser a única utilizável. 

Com paciência, a "Secretaria de Estado" (designação histórica pela qual todos nós tratamos a sede do Ministério dos Negócios Estrangeiros, em Lisboa, em especial na correspondência) lá insistiu, já mais seca: "Aditamento nossos .... e .... Solicita-se resposta urgente Vexa".

Nada. O nosso homem em posto continuava a não dar sinal de si. É nessa conjuntura que o Secretário-Geral, o chefe da carreira, abandonando a prudência de estilo que os hábitos da casa sempre impunham, expediu um curto, incisivo, claro e hoje histórico telegrama, com uma única palavra: "Então?!". A história não acolheu a resposta que o embaixador terá, finalmente, dado.

Recobro privado

"Para um T3, parece-me caro demais. Não tem outras opções? É que aquela zona vinha-me mesmo a calhar! O miúdo tem a escola perto".

Não era visível a cara da senhora funcionária do hospital que, em bem alta voz, usava, sem quaisquer peias (ou comentário reprovador de colegas), o seu telemóvel, na sala de recobro, onde os doentes acabados de sair de operações "regressam", desejavelmente em sossego, ao reino da consciência. Eu acordei da minha operação com a história do T3, que durou longos minutos. Outro doente, que gemia em permanência, pareceu-me pouco capaz de se entusiasmar com a transação em curso. Os restantes, ou estavam ainda sob o efeito da anestesia ou, silenciosamente, partilhavam, como eu, este interessante diálogo sobre o mercado imobiliário lisboeta. Registo que, acabada que foi a conversa sobre o apartamento, a temática do debate entre as funcionárias passou para hipóteses de troca de tarefas laborais para o resto da semana, ou coisa assim. Sempre em voz bem alta, claro. Seria de propósito, para nos acordar?

Era assim o ambiente de atendimento "profissional", ontem, ao final da tarde, na área de "recobro" de um conhecido hospital de Lisboa. Privado, para que reze a história. Imagino que, no tempo do Mundial de futebol, o recobro se devesse fazer com transmissão direta... 

terça-feira, julho 20, 2010

Quê?

Como aqui já referi, o modo mais vulgar de comunicações entre o Ministério dos Negócios Estrangeiros e os postos diplomáticos e consulares são os chamados “telegramas”. O nome advém do facto de, no passado, ser utilizada a via telegráfica para a expedição dessas mensagens. Nos dias de hoje, não obstante a via ser diferente, a designação manteve-se.

Todas as carreiras diplomáticas estão cheias de histórias em torno de famosos telegramas, que ficaram na respetiva memória coletiva, cujo estilo de escrita foi variando ao longo dos tempos, mas que sempre marcam muito o próprio retrato de quem os subscreve.  

Os telegramas que saem de Lisboa para os postos são sempre assinados “Nestrangeiros”, como acrónimo de “Negócios Estrangeiros”. Os diplomatas em posto, quando responsáveis pelas missões (em titularidade ou por substituição), usam uma forma abreviada do seu próprio nome, assente no apelido. Quando há diplomatas com o mesmo apelido (imaginemos, Silva), têm de se diferenciar adicionando um nome próprio (Carlos Silva ou José Silva) ou um outro apelido (Cruz Silva). O que nunca deve acontecer é alguém subscrever correspondência exclusivamente com nomes próprios (Carlos Manuel, por exemplo).  

Um dia, uma jovem e azougada diplomata chegou ao seu primeiro posto e, num arroubo de independência e modernidade, modelou assim o telegrama em que deu conta da sua chegada: “Assumi gerência. Isabel”. O Ministério, que não costuma achar muita graça a estas familiaridades, respondeu-lhe, de imediato: “Isabel quê? Nestrangeiros”.

segunda-feira, julho 19, 2010

Doinel

Quem gosta dos filmes de François Truffaut - e eu gosto imenso e julgo ter visto todos - guardou para sempre no seu imaginário a figura de Antoine Doinel, representada pelo ator Jean-Pierre Léaud. Numa inesquecível série de cinco filmes, iniciada com os "Quatre-cents coups", "Doinel" foi crescendo aos nossos olhos, a partir dos 14 anos, evoluindo num modelo que, contudo, fixou algumas linhas comportamentais comuns. Sempre agitado, com um rosto de gravidade assustada, misto de timidez e indecisão, mas capaz de rasgos atrevidos de surpresa, "Doinel" foi uma figura, em parte autobiográfica, que Truffaut utilizou, com o seu imenso génio, para nos retratar uma França em mudança acelerada de costumes.

O António Alves Martins, o MFB ("militante de fato branco") do MES de que em tempos aqui já falei, ao tempo em que era estudante de sociologia por Paris, contou-me ter ido passar férias com um grupo à Côte d'Azur, que incluía Jean-Pierre Léaud, cujos humores eram difíceis de prever e controlar, mas que podia ser divertidíssimo. Uma vez, em Nova Iorque, em 1992, fiquei numa mesa ao lado de Léaud, no "Michael's Pub", onde ambos e muita mais gente tinha ido ver Woody Allen tocar clarinete, nessas celebradas segundas-feiras. Passei a noite a tentar lembrar-me do seu nome e só me veio à memória "Antoine Doinel". Hoje, com o Google no Iphone, tudo seria mais fácil.

Jean-Pierre Léaud teve uma longa carreira no cinema francês. Para além de Truffaut foi muito utilizado por Jean-Luc Godard, tendo, ele próprio, dirigido alguns filmes. A meu ver - mas esta é uma opinião que vale o que vale - nunca foi um ator excecional e jamais ultrapassou uma aceitável mediania.  Porém, há que reconhecer nele um dos nomes emblemáticos da "Nouvelle Vague" francesa, em cuja história tem um lugar.

Há dias, numa madrugada televisiva, surgiu-me uma comédia romântica de 1996, intitulada "Pour rir!", na qual Léaud contracena com Ornela Mutti. Por uma imensa curiosidade, muito centrada na evolução artística de Léaud, vi o filme até ao fim. A opção iria revelar-se quase masoquista: tive de suportar a inenarrável prestação de Mutti. Machistamente, devo dizer que ela perdeu muitos dos atributos que, durante anos, nos faziam esquecer a sua mediocridade como atriz. Enfim, não ganhei muito para a minha cultura cinematográfica. Para o que aqui me interessa, foi quase patético ver um Léaud de 60 anos assumir os trejeitos e a "coreografia" típicos de um "Doinel" adolescente. 

Há atores que guardam uma imagem que acaba por se impor nas diferentes figuras que interpretam, por mais diversas que estas sejam. São "characters" - e isso pode ser uma coisa positiva ou tornar-se pesada e desinteressante, particularmente quando os filmes e as personagens têm de ser desenhados em função dessas suas conhecidas peculiaridades. Foi o que me pareceu, neste triste "Pour rir!",com Jean-Pierre Léaud. 

Boas férias, leitores...

domingo, julho 18, 2010

SAS

O escritor francês Gérard de Villiers revelou, numa entrevista, que acaba de regressar da Guiné-Bissau. Assim, podemos esperar que, dentro de algumas semanas, venha a surgir um romance centrado em Bissau, com uma capa em que erotismo e armas serão os fatores  indispensáveis, em que surgirão misturados política, dinheiro e mulheres, num complexo de personagens reais e de figuras fictícias, projetado num cenário de mistério e risco, em que o príncipe austríaco Marko Linge e a sua eterna noiva, a condessa Alexandra, acabarão por ultrapassar grandes perigos e maiores aventuras.

Desde há décadas, a um ritmo de três ou quatro romances anuais, a receita é idêntica. A série SAS - situada entre o policial e a espionagem -, cuja edição já conheceu melhores dias, mas que é ainda um garantido êxito de livraria (de aeroporto), acaba por ser uma espécie de roteiro turístico imaginário, centrado quase sempre em países em convulsão ou com tensões à flor da política local. Já experimentei testar diversos cenários descritos por Villiers com a realidade e, podem crer, as coisas aproximam-se muito.

Recordo-me do sucesso que, aí por 1976, fez em Portugal o seu "Les sorciers du Tage", onde se ficcionava a Revolução portuguesa, misturando figuras do MRPP e da LUAR, com ambientes lisboetas, em que cenas implausíveis se cruzavam com personagens que se aproximavam da realidade.

Neste tempo de férias, recomendo a quem puder que revisite aquele curioso romance de Gérard de Villiers.

Em tempo: hoje, por outras razões menos simpáticas, fiquei a saber melhor o que podem ser os feitiços do Tejo...

sábado, julho 17, 2010

Quai

Com variações ao longo das épocas, existe em França um certo fascínio em torno da atividade do Quai d'Orsay (o "Quai", para os iniciados), o Ministério francês dos Negócios Estrangeiros.

Esta mitificação está bem patente num album humorístico de banda desenhada, intitulado precisamente "Quai d'Orsay - chroniques diplomatiques", que está a ser um sucesso de vendas. O trabalho, que já se fala poder vir a ter uma sequência em breve, é claramente inspirado na figura do antigo ministro Dominique de Villepin, cuja memória de gestão frenética da casa se reflete no traço do desenho e no tom dos diálogos, que são da responsabilidade de um seu antigo colaborador. Não sendo uma obra excecional no género, devo reconhecer que não deixa de ser interessante reconhecer na história algumas das mais tradicionais liturgias diplomáticas, na descrição do dia-a-dia dos "Estrangeiros". 

Como seria uma visão humorística das Necessidades?

sexta-feira, julho 16, 2010

Basil Davidson (1914-2010)

Alguém dizia, há semanas, que, por vezes, é preciso alguém morrer para darmos conta de que, afinal, ainda estava vivo. É uma frase cruel, de que me lembrei ontem, ao dar de caras, num jornal, com um obituário de Basil Davidson, que pensava desaparecido há muito.

Davidson faz parte do elenco dos mais proeminentes europeus que apoiavam as lutas anti-coloniais. Historiador de grande mérito, que teve a África pré-colonial como objeto privilegiado de análise, viria a destacar-se num trabalho de divulgação internacional dos movimentos independentistas nas colónias portuguesas e na denúncia do "apartheid". Essa sua simpatia pelo anti-colonialismo levou Edward Said a dizer que "in effect, (he) crossed to the other side". Antes disso, porém, Basil Davidson teve um percurso aventuroso pelos mundos da "intelligence" britânica e uma carreira jornalística muito diversificada, em grande parte como correspondente parisiense de jornais britânicos.

Lembro-me bem do impacto que teve, nos meios oposicionistas portugueses, a publicação do seu "The Liberation of Guine", editado pela Penguin em 1969, um dos mais de 30 livros que escreveu, alguns editados em Portugal, mas só depois do 25 de abril.

Jornalismo adversativo

Portugal tem uma das mais brilhantes escolas daquilo que se pode qualificar como "jornalismo adversativo". Trata-se de um apurado estilo, que exige uma grande experiência para garantir a sua hábil utilização, que consiste em relativizar e atenuar, pela negativa, qualquer notícia através da qual possa transparecer uma ideia positiva ou otimista.

Há anos que constato que esta é, verdadeiramente, uma especialização de um certo jornalismo português, muito patente nos títulos dos jornais ou dos seus "sites" informáticos, mas igualmente presente, quase por  um peculiar imperativo deontológico doméstico, nos noticiários televisivos. Os exemplos são aos milhares, pelo que aconselho o leitor a estar atento, nos próximos dias, à eventual divulgação de qualquer estatística ou linha tendencial positiva. Logo verá que, no segundo seguinte, aparece uma frase começada por: "Porém ..." ou "Mas, contudo,..." ou "No entanto,...".

Querem exemplos? "As praias portuguesas foram consideradas das mais limpas da Europa, em 2009. Porém, neste domínio, a Itália evoluiu mais do que Portugal, nos últimos dez anos". Ou ainda: "Há menos incêndios em Portugal em Julho de 2010 do que em idêntico período de 2009, mas isso pode ter ficado a dever-se às temperaturas mais baixas".

As estatísticas económicas e sociais são "bombo da festa" deste "jornalismo". Qualquer índice positivo em Portugal aparecerá, inevitavelmente, diminuído por um outro que permita negativizá-lo ou por uma oportuna comparação ("Contudo, dentro da UE, a economia de Malta cresceu mais no mesmo período" ou "No entanto, Portugal não conseguiu chegar ao nível de recuperação de postos de trabalho obtido por Chipre").

De notar que há uma "regra de ouro" nesta escola de jornalismo: nunca se "poluem" as notícias negativas com notas positivas, como por exemplo: "Desemprego cresceu no último mês, mas a taxa do seu crescimento tem vindo a diminuir de forma sensível, o que aponta para uma recuperação". 

Era só o que faltava!, estarão a dizer os cultores do "jornalismo adversativo".

quinta-feira, julho 15, 2010

Novas Fronteiras

"Europa - Novas Fronteiras", revista do Centro Jacques Delors, a entidade portuguesa que possui a melhor base de dados sobre assuntos europeus, acaba de editar mais um número, desta vez dedicado aos 25 anos de adesão de Portugal às instituições europeias.

Contribuí para este volume com um texto sobre um tema delicado: a atitude dos diplomatas portugueses em face do projeto europeu, antes e depois do 25 de abril. Tenho a consciência que não é um texto consensual, que alguns colegas meus nele se não reverão, mas é o que eu penso. Quem o quiser ler, pode fazê-lo aqui.

quarta-feira, julho 14, 2010

"Concierges portugaises"

Invariavelmente, as referências são extremamente elogiosas: "A minha "concierge" (porteira) é portuguesa. Uma mulher seriíssima. Está no prédio há muitos anos". Ouvir coisas assim da boca de parisienses, em especial de residentes nas áreas mais ricas da cidade, é uma banalidade antiga, para qualquer embaixador português. As "concierges" portuguesas são uma imagem de marca da nossa presença em Paris e esses parisienses ricos não deixam de no-lo lembrar a todo o tempo. 

Talvez por isso, aqui há uns meses, num jantar social, decidi divertir-me um pouco, quando vizinhos de mesa voltaram a falar-me, pela enésima vez, das suas "concierges" portuguesas. Era a noite do 1º de abril, e lancei para a mesa aquilo a que os franceses chamam  um "poisson d'avril", uma "mentira de abril".

Fazendo um ar (falsamente) cansado, adiantei: "Nem me falem nas "concierges"! Não imaginam o problema orçamental que elas me criam!". Parte da mesa olhou-me, surpresa, porque não era óbvia a razão do impacto das "concierges" no orçamento do embaixador português.

Sem deixar "cair a bola", e baixando o tom de voz, esclareci: "Há um segredo que vos quero contar, embora peça a maior descrição". Com isso consegui, como é dos livros, uma atenção acrescida: "Como devem imaginar, a existência de uma imensidão de "concierges" portuguesas em muitas casas de Paris não passou desapercebida aos nossos serviços secretos. Naturalmente, eles não podiam deixar de aproveitar o potencial que representava a existência de um grupo de cidadãs nacionais colocadas em lugares tão vitais para a obtenção de informações".

A cara dos circunstantes, damas e cavalheiros da alta sociedade, alegrada pelos efeitos do lauto jantar, começou a fechar-se, aos poucos, com alguns convivas, até aí mais distraídos e distantes na mesa, a sentirem-se mobilizados para tentar seguir melhor o que eu dizia. 

"Há uns anos, consciente deste potencial, um dos meus antecessores propôs "trabalhar" essa rede em termos de obtenção de informações sobre personalidades de relevo. E, desde então, a Embaixada tem uma estrutura, com cerca de 10 pessoas, que se dedica a "debriefar" as "concierges" que se prontificaram a colaborar conosco - e muitas foram. Cabe sempre ao embaixador, claro!, separar o que é a informação com algum significado político ou económico daquela que se prende com costumes, vícios e outro "gossip". Tudo isso, posso garantir, é destruído imediatamente. Depois de eu ler, claro...".

Verifiquei ter ganho, nesses instantes, o silêncio reverencial dos meus pares, com alguns homens a emborcarem um forte golo de "armagnac" e algumas senhoras a tentarem diluir num copo de água o espanto que lhes causava esta minha surpreendente "revelação".

Alentado com a audiência, continuei: "O grande problema que tenho, como compreenderão, é que as nossas "concierges", com uma ou duas exceções, não fazem relatórios escritos, limitam-se a falar para um gravador, o que obriga a um moroso e custoso processo de transcrição. Ora isso ocupa-nos muita gente e, com as restrições orçamentais a que cada vez mais estamos sujeitos, o sistema começa a tornar-se insustentável".

Os convidados, casal anfitrião incluído, já não tugiam nem mugiam, imaginando eu que à mente lhes deveria estar a aflorar a imagem da madame Conceição ou da madame Isaura, com que sempre se cruzavam nas entradas das suas belas casas do XVIème. Para moderar o impacto financeiro da minha história, mas sempre com um ar de estudada gravidade, esclareci: "É claro que nós não pagamos nada às senhoras. Elas são voluntárias. Quando muito, às vezes, pelo Natal, mando-lhes uma garrafa de Porto. É um sistema similar àqueles que vocês, em França, fazem como os "honorables correspondants", que julgo que o vosso serviço de informações ainda utiliza pelo mundo...".

Trocas de olhares foram elucidativas da perturbação que a minha história estava a causar em alguns dos presentes. Poderia a sua "concierge portugaise" ser parte dessa rede de "intelligence", alimentada pelos embaixadores portugueses? Que saberíamos deles que não devêssemos saber? 

Deixei passar algum tempo mais antes de esclarecer, para imenso gaúdio de todos e algum visível alívio de alguns, que tudo não tinha passado de uma completa invenção da minha parte, uma mentira do 1º de abril, tão necessária a distender o ambiente nestes tempos pesados de crise.

Mas, quem sabe!, isso pode não ter impedido em absoluto que alguns desses amigos,  ao sairem de casa no dia seguinte, de atentarem melhor na cara de potencial Mata Hari da sua simpática "concierge portugaise"...

A aristocracia e a Revolução


Há uns meses, alguns portugueses residentes em Paris comentavam o facto de, não obstante a Revolução Francesa, de 1789, cuja data de 14 de julho é emblemática, ter sido muito violenta para com a aristocracia - ao lado dela, a Revolução do 5 de outubro de 1910 foi uma brincadeira -, há hoje em França muitas pessoas que usam abertamente os seus títulos nobiliárquicos - nos cartões de visita, nos convites e, em geral, na vida social. Isso acontece, aliás, muito mais do que em Portugal, onde parece haver uma maior contenção e parcimónia no seu uso.

Um feroz republicano, presente à conversa, comentou: "Pois eu conheço alguns aristocratas lusitanos que continuam bem ciosos desses seus pergaminhos, não obstante haver uma lei de 1910, ainda em vigor, que impede o uso público dessas designações". E logo acrescentou, agora para espanto de todos: "E esses meus amigos, claro!, recusam-se a andar em auto-estradas". Ninguém percebeu nada! "Não andam em auto-estradas porquê?". O nosso jacobino amigo, lá esclareceu: "Ora essa, porque eles leem 'retire o título' e não querem correr riscos"...

Hoje, ao atravessar mais de metade de Portugal em auto-estradas, várias vezes me recordei que estávamos no dia 14 de julho. 

terça-feira, julho 13, 2010

Rui Knopfli





Conheci o Rui Knopfli em Londres, em 1990. Conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal desde 1975, era uma figura prematuramente frágil, nos seus 58 anos de então. Vergado e cansado, pendurado num eterno cigarro, tinha o mais caótico gabinete de que tenho memória. Homem de vícios que o foram debilitando, mantinha uma ironia cáustica e, sendo de trato fácil, era de condução diária difícil, pelos corredores da rotina diplomática a que nunca se acomodara verdadeiramente. 

Eternizado em posto em Londres, aposto que olhava para nós, companheiros episódicos, saídos da "carreira", com o olho arguto do artista, estudando-nos para nos sobreviver, até que fôssemos substituídos. Várias vezes "me passei" com os seus descuidos, das tropelias do eterno cão às suas frequentes ausências, para além de algumas teimosas presenças ainda mais complicadas. Mas nunca me zanguei com ele. Ficámos amigos, creio. 

O Rui era um fotógrafo magnífico - vale a pena ver o seu livro sobre a ilha de Moçambique - e tinha um ouvido apurado e atento ao jazz, área onde me deu a conhecer algumas excelentes novidades. Da sua terra moçambicana, contava histórias interessantes e divertidas, tributárias desse mundo que sempre lhe ficou nos genes e na escrita. Como ele próprio dizia: "Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca, ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e imunizados. A mínima exposição a determinadas circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis recorrências e acabamos por arder na altíssima febre de uma recidiva sem regresso nem apelo".

Rui Knopfli foi um grande poeta, português e moçambicano. A sua "Obra Poética" está publicada pela Imprensa Nacional - Casa da Moeda, com um prefácio magistral do Luis de Sousa Rebelo, há meses desaparecido. Para abrir o apetite à sua leitura, nestes tempos de férias, deixo aqui o seu delicioso (e trágico) "Justerini & Brooks":


Este punhal de veludo,
esta fria estalactite,
esta cicuta tão lenta
e que tão profundamente
fere. Esta lâmina
líquida, doirada,
este filtro parecido ao sol,
este rarefeito odor simultâneo
ao fumo, à água, à pedra.
Este adormecer antes do sono,
só preâmbulo da vigília,
que é o gélido acordar
da imaginação para
as fronteiras dormentes
do horizonte protelado.
Este trajecto subterrâneo e húmido
pelos túneis do infortúnio,
que é o adiar moroso
da morte, no prolongar
silencioso da vida,
lágrimas da noite tornadas
pranto da madrigada,
rumor débil e distante
brandindo já no sangue
o endurecer das artérias.



Rui Kopfli morreu em Lisboa, em 1997.

sábado, julho 10, 2010

Pausa (1)

Voos

A história vem hoje no Le Figaro. Um casal de italianos comprou uma viagem de sonho para a Austrália, onde iriam começar as férias pelas praias de Sydney. A aproximação, pelas janelas do avião, a um cenário de casas de madeira e motos-de-neve levou-os a comentar como eram bizarras as escalas escolhidas pela agência, para tornar o voo mais barato. Mas não, esse era mesmo o destino: Sidney, no Canadá, na província da Nova Escócia. Segundo os locais, já não será a primeira vez que um equívoco destes tem lugar.

Menos longe foi, há anos, uma conhecida figura da nossa televisão, quando noticiou a abertura do festival musical de Bayreuth, acrescentando, num daqueles comentários meio soltos e pessoais com que essas figuras às vezes nos brindam ao fechar do telejornal, que era impressionante que a capital do Líbano, se bem que em guerra civil, continuasse a insistir em manter uma vida cultural intensa...

sexta-feira, julho 09, 2010

Glienicke

Hoje de manhã, no aeroporto de Viena, russos e americanos trocaram espiões. A capital austríaca recuperou um pouco do seu histórico papel de reino das "sombras", esse mundo de charneira este-oeste que fez as delícias, a preto-e-branco, da  mitologia da "intelligence", durante a Guerra Fria, como o "Terceiro Homem" bem documentou. A triste aerogare de Schwechat terá tido, assim, um momento póstumo de glória. 

É, porém, nestes dias que convém deixar a imagem da ponte de Glienicke, entre Potsdam e Berlim, onde, quando as coisas eram verdadeiramente a sério, se trocavam os grandes espiões.

Percebe-se o "frisson" que terá acometido alguns vienenses ao verem hoje chegar, a caminho de Moscovo, Anna Chapman, "from New York, with love". Mas, sejamos justos!, nada se equipara à troca do Coronel Abel por Francis Powers, em Glienicke, naquela manhã brumosa de 1962.

Como diz um amigo meu, a propósito de alguns restaurantes, isto já não é o que era...

Rádio Clube

Um dos grandes testes ao envelhecimento parece ser a capacidade de resistir à nostalgia. Ontem falhei no teste, ao ler que o Rádio Clube Português vai fechar.

O Rádio Clube teve um papel importante na vida de quantos são dos "dias da rádio".  No meu caso, das noites. Na juventude, em Vila Real, o Rádio Clube, a par de algumas rádios estrangeiras (Radio Caroline, Radio London, Radio Andorra) e da "23ª hora" da Renascença, era uma companhia noturna regular, com os programas da madrugada, em especial o "Meia Noite" e, mais tarde, o efémero "Europa", de Vitor Espadinha, a trazerem alguma da música que fez a nossa geração. (Na província, sem FM, apenas com Onda Média, não chegávamos ao lisboeta "Em Órbita")

Em meados dos anos 60, com a ousadia dos meus 18 anos, fui-me apresentar nos seus estúdios do Porto, na rua de Ceuta, onde pedi "emprego", ao tempo em que fingia estudar Engenharia. O Alfredo Alvela abriu-me então as portas do seu "Clube da Juventude," onde realizei, durante alguns meses, o meu "Tempo de Teatro", com textos do João Guedes e um "gingle" com efeito de eco, feito no vão do elevador do prédio, numa ideia louca, creio que do Jaime Valverde. Às vezes, pela noite dentro, o Rui de Melo entregava-me a emissão do "Onda Nocturna" e eu ficava por lá a "pôr discos" e a dizer banalidades serenas, no tom que o programa exigia. Numa manhã, saído tarde do Rádio Clube com o Humberto Branco, lembro-me de um belo nascer-do-sol a atravessar as janelas do "Transmontano", que o Alvela teimava em qualificar como o único restaurante "ível" (onde se podia ir...) na noite portuense.

Depois, já em Lisboa, o Rádio Clube era, para mim, a audição regular do PBX e, depois, do "Tempo Zip", companhias noturnas indispensáveis, entremeadas pela informação da maior escola de jornalismo radiofónico do país, dirigida por Luis Filipe Costa. Só entrei nos seus estúdios de Lisboa, à Sampaio e Pina, já depois do Rádio Clube ter estado no centro do 25 de abril. Após essa data, por lá andei em várias noites de conversa, levado pelos autores do "golpe de mão" que o havia tornado no "posto de comando do Movimento das Forças Armadas", o (agora general) Costa Neves, o Santos Coelho e o João Sobral Costa.

O fim do Rádio Clube será, julgo eu, sentido por muitos portugueses. Até por alguns saudosos salazaristas, que lembrarão os tempos em que a estação, nas mãos dos irmãos Botelho Moniz, serviu de alento aos "viriatos" portugueses que lutaram ao lado dos franquistas na guerra civil espanhola.

O Rádio Clube já não vai estar "sempre no ar, sempre consigo". E tu, João Paulo Guerra, como sentes este dia?

quinta-feira, julho 08, 2010

Mundial

É muito curioso observar as preferências dos portugueses, à nossa volta, neste tempo do Mundial de futebol, em especial a partir do momento em que o nosso país dele foi afastado.

Ontem, um grupo de espetadores do Alemanha-Espanha dividia-se imenso. Nuns, o sentimento anti-espanhol, ainda identitário em algumas camadas portuguesas mais tradicionais, somava-se a algum fascínio pela (até aí) eficácia simples da equipa alemã. Noutros, ao gosto por ver perder a "grande potência" europeia juntava-se uma manifesta simpatia pelo país vizinho, com quem Portugal tinha perdido (e bem) de forma "honorable". Tudo isto de forma matizada, não excessivamente radicalizada.

O tema dos nossos afetos em relação ao estrangeiro é um domínio muito interessante. Torna-se impressionante notar o modo como os portugueses evoluíram, extraindo-se de algumas antigas posições caricaturais para um mundo de uma grande diversidade de atitudes, mobilizadas por sentimentos com uma génese bastante mais complexa. Em tudo isto, fica claro que o fim do império, a integração europeia e alguma atenuação dos confrontos ideológicos tiveram um papel decisivo.
.

quarta-feira, julho 07, 2010

Jorge Fagundes (1936-2010)

À hora de almoço, chegou-me a notícia: morreu o Jorge Fagundes.

A última vez que estivemos juntos foi há quase um ano, com o seu grande amigo José Vera Jardim e o Eduardo Graça, à volta de umas cervejas, numa esplanada, numa tarde quente do fim de Julho de 2009, depois do funeral de Palma Inácio. Em Dezembro, porque tinha acabado de sair do hospital, já o não consegui "convocar" para o jantar anual do Procópio, lugar onde era visitante cada vez mais incerto, mas sempre muito saudado.

O Jorge Fagundes era um "bom gigante", uma figura amável e bem disposta, que conheci através do Nuno Brederode de Santos, com quem sempre o ouvi cruzar velhas e divertidas histórias de Campo de Ourique. Advogado de causas, defendeu presos políticos durante a ditadura, como Saldanha Sanches, Carlos Antunes ou Isabel do Carmo. Pertenceu à CDE de Lisboa, nas eleições de 1969. Após abril, veio a andar por áreas políticas bem à esquerda, tendo sido diretor do jornal "Página Um", uma publicação próxima do PRP.  Acabo de saber que também foi fundador e candidato autárquico do Bloco de Esquerda.

Sportinguista sem quaisquer limites de tolerância, foi presidente da Federação Portuguesa de Futebol, numa direção a que, se não me engano, pertenceu também Marcelo Rebelo de Sousa. Não esqueço uma chamada telefónica de solidariedade que dele recebi, num momento especial da minha vida.

Um abraço, Jorge!

terça-feira, julho 06, 2010

Clube da tolerância

Há em França uma estrutura de debate, chamada Club Vauban, que alimenta uma agenda singular. Fundado há mais de 30 anos, o clube tem como objetivo favorecer o debate entre todos quantos - de direita, do centro ou de esquerda - têm a seu cargo a preservação do interesse público. Autodefinido como uma "cooperativa de reflexão", congrega diferentes opiniões políticas e sociais, distintas referências ideológicas e convicções político-partidárias, sendo que todos os seus componentes devem ter em comum ser favoráveis à economia social de mercado e à construção europeia.

Há dois dias, o antigo PM socialista, Michel Rocard, e a antiga ministra centrista, Simone Veil, vieram a terreiro, em nome do clube, indignar-se com a onda de acusações que têm vindo a surgir contra um determinado membro do governo francês. E, no quadro desta sua reação, escreveram: "Debater é uma coisa, querer a todo o preço abater o adversário é outra. Atacar ad hominem, estafar sem descanso, denunciar sem provas, de um lado como do outro, não é uma forma de contribuir para o debate, é prejudicar a democracia, enfraquecê-la e, finalmente, debilitá-la em nome dos próprios princípios com que julgamos defendê-la. É atentar contra a dignidade da pessoa, é atacar a política e a República".

Julgo que quem, em Portugal, numa coluna ou num blogue, tivesse a ingenuidade de escrever isto, receberia uma resposta tipo "Gato Fedorento": "o que tu queres sei eu!"...

Por isso, estamos muito longe de poder ter no nosso país um Club Vauban. E, também, estamos a anos-luz do que a sua própria existência significa.

França-Portugal

A importância da comunidade de origem portuguesa em França mede-se de várias maneiras. Uma delas é a relevância na vida parlamentar francesa.

Nos "grupos de amizade" França-Portugal, no Senado e na Assembleia Nacional franceses, têm assento personalidades que, na grande maioria dos casos, representam regiões onde há um número significativo de cidadãos de origem portuguesa. Em alguns casos, além de deputados e senadores, esses mesmos eleitos são também "maires" de localidades da região.

Hoje e na passada semana, reuni, respetivamente, com os "grupos de amizade" da Assembleia e do Senado. Foram algumas horas de útil troca de impressões, em que se falou naturalmente da situação político-económica em Portugal, mas, maioritariamente, sobre problemas concretos que se ligam aos interesses dos portugueses ou luso-descendentes dessas regiões - intercâmbios municipais, ensino da língua portuguesa, reforço das relações económicas e culturais, etc

segunda-feira, julho 05, 2010

O panorama de Gulbenkian

Na passado sábado, estive em Enclos, perto de Deauville, a acompanhar o presidente da Fundação Gulbenkian, Emílio Rui Vilar, na inauguração do Parque Gulbenkian, a formalização da doação à região de um espaço natural adquirido por Calouste Gulbenkian, em 1937. Trata-se de uma mistura imaginativa de jardins, prados e bosques, um projeto que revela uma sensibilidade que talvez nos ajude a "ler" melhor a mentalidade do filantropo. A presença do Coro Gulbenkian, vindo expressamente de Lisboa, trouxe uma nota de grande beleza à cerimónia.

A certo ponto da visita, e apontando-me um panorama soberbo que Gulbenkian criara deliberadamente, como linha de harmonia entre duas alas de verde - de imensos e diferentes verdes, que nos ajudam a perceber melhor alguma pintura impressionista -, o delegado local do Ministério francês da Cultura explicou-me que esse panorama, até ao infinito onde é visível, está hoje protegido por lei, sendo insuscetível de ser palco de qualquer construção ou mesmo de um mero rearranjo arbóreo, sem autorização legal, sob pena de procedimento criminal.

"Pobre" país este, a França, cuja paisagem não pode ser beneficiada com a instalação de um qualquer barracão de zinco de cores berrantes, com a graça de uma pedreira a céu aberto ou o girassólico romantismo de uma eólica!

O jogo das palavras

Hoje, num almoço com os embaixadores da União Europeia, a ministra francesa da Economia, com muita graça e algum detalhe, explicou-nos a lógica subjacente ao neologismo que criou e que fez as primeiras páginas dos jornais de fim-de-semana: a palavra "rilance"

O conceito é uma amálgama da expressão "rigueur" com "relance", querendo com isto significar que é possível ligar a adoção de medidas de rigor orçamental com políticas de relançamento do crescimento económico, sendo que, na perspetiva da governante, e contrariamente a algumas teorias, as primeiras podem mesmo facilitar as segundas.

O jogo das palavras é um mundo fascinante. No "L'Express", Jacques Attali interroga-se sobre se, afinal, o "G 20" não será um "G vain"...

Acordo ortográfico

O "Expresso" desta semana passou já a usar as normas do novo Acordo Ortográfico.

O mesmo já acontecia com a única agência noticiosa portuguesa - a "Lusa" -, bem como com o semanário "Visão" e o jornal desportivo "Record".

Acaba, entretanto, de ser anunciado que, a partir de Janeiro de 2011, os manuais escolares irão aparecer sob a nova ortografia, embora haja um período de transição.

domingo, julho 04, 2010

Hinos e heróis

Numa concorrida audição, à porta fechada, o demissionário presidente da Federação Francesa de Futebol, acompanhado do selecionador cessante, foram convocados, na passada 4ª feira, a uma comissão parlamentar. O "compte rendu" do encontro já caiu no domínio público. Entre algumas revelações no âmbito daquilo que a teorização desportivo-mediática portuguesa qualifica, sem se rir, de "cultura de balneário", ficou-se a saber que, se o selecionador francês tivesse de excluir jogadores da equipa por não saberem cantar "La Marseillaise", ficava só com quatro (entre 23!).

Em Portugal, não sei quantos dos selecionados sabem o nosso hino. Pareceram-me alguns mais (uma evolução face a outros anos), embora ficasse claro, pelas imagens, que a concentração pré-jogos de Ronaldo se revelou sempre incompatível com o debitar oral de "A Portuguesa".

Entre o modo como Portugal e a França trataram o "problema" das suas seleções houve outras diferenças. Verdade seja que, no caso francês, teve lugar uma rebelião; no nosso caso, houve apenas flagrante incompetência tática. Mas, claro está!, entre nós ninguém se demitiu... Era só o que faltava! Então não ganhámos 7-0 à Coreia do Norte?!

"Tour de France"

Hoje, acabada que foi (e em que bizarras condições!) a primeira etapa do "Tour de France", a maior prova ciclística do mundo, aparece-me recordar uma histórica figura desta competição, uma pessoa felizmente ainda viva: Raymond Poulidor.

Confesso o meu fascínio por alguém que acabou sempre por ser derrotado na luta pela vitória final no "Tour", não tendo nunca sequer vestido a "camisola amarela", embora sendo vencedor de várias etapas. No que me toca, recordo-me de ter sido sempre um "poulidorien" ferrenho, em toda a minha juventude. Aqui em França, não deve haver nenhum seu compatriota da sua geração que o não conheça, muitas vezes pelo carinhoso "petit nom" de "Poupou".

Poulidor teve uma longa e brilhante carreira, vencendo diversas provas, entre as quais uma "Vuelta a España". No "Tour", partilhou o pelotão com figuras da estirpe de Louison Bobet, Jacques Anquetil, Eddy Merckx e Bernard Hinaut. Foi com Anquetil que a sua disputa foi mais dura, embora também nos tempos do belga Merckx tivesse estado muito próximo da vitória. Esteve oito vezes no pódio final - três vezes como 2º e cinco vezes como 3º classificado.

Vale a pena também recordar que o "nosso" Joaquim Agostinho foi 3º classificado nas edições de 1978 e 1979 do "Tour", correndo com Poulidor entre 1969 e 1976, ano em que este último disputou a prova pela derradeira vez.

Em Portugal, também tivemos uma espécie de "Poulidor": foi Jorge Corvo, um ciclista do Ginásio de Tavira, que obteve três 2ºs lugares e em 3º lugar na Volta a Portugal. Mas, deste, muito poucos se lembrarão. 

Os borregos

Pierre Bourguignon foi, ao tempo em que eu era embaixador em França, um dos grandes amigos de Portugal. Deputado à Assembleia Nacional franc...