sexta-feira, abril 09, 2010

A síndroma de Agosto

Estávamos em Agosto de 1979. Era a primeira vez que eu assumia, interinamente, a chefia da Embaixada em Oslo. Tinha pouco mais de três meses de experiência no exterior e as férias do embaixador a isso obrigavam.

À época, o "sangue na guelra" e a inexperiência levaram-me a ser tentado a trabalhar nesse mês de substituição do embaixador como se tivesse sido ungido como "embaixador substituto". Daí que fosse afetado, sem o saber, pela "síndroma de Agosto" - esse "chico-espertismo" que faz com que os "encarregados de negócios" mais jovens, aproveitando as férias dos chefes de missão, se ponham em pontas de pés perante Lisboa, enviando correspondência em abundância, mostrando-se à tutela. Esquecendo que, nesse mês de Agosto, o Palácio das Necessidades está também deserto e quase ninguém os lê. Quase...

Assim, e a propósito de uma qualquer notícia surgida na imprensa, preparei um longo telegrama (nome que damos às comunicações urgentes, com distribuição prioritária - ao tempo enviadas por telex), creio que de quatro páginas, sobre a questão das dissidências entre a então URSS e a Noruega, a propósito da exploração de recursos do arquipélago de Svalbard. O tema era altamente especioso, implicava contextualização histórico-jurídica, pelo que era de muito duvidoso interesse para o MNE, para mais num tempo em que a nossa diplomacia tinha uma agenda de preocupações algo limitada. Gastar com o assunto quatro páginas, numa comunicação telegráfica, tipo de correspondência que devia ser guardada para coisas urgentes, era, manifestamente, revelação de imaturidade. 

Imagino que, logo que enviado o texto, depois do que deve ter sido uma sua cuidadosa elaboração, ter-me-ei sentido satisfeito comigo mesmo. De facto, eu acabara de apresentar a Lisboa uma densa exposição sobre uma problemática importante para a política externa norueguesa. Não detetara, nos arquivos, que a Embaixada se tivesse dedicado com profundidade ao tema. Lisboa iria apreciar, pela certa.

Ora não foi bem assim. Dois dias depois, recebo um telegrama do MNE que dizia mais ou menos isto: "Telegrama nº tal não se justifica. Vossa Senhoria poderia perfeitamente ter informado sobre o assunto por ofício". (O "ofício", no jargão da casa, é um texto que segue semanalmente na mala diplomática, pelo correio). Na linha seguinte estava o pior, a assinatura desta "rabecada": "Ministro". (Noto que o "Vossa Senhoria" é a fórmula consagrada que o Ministério sempre utiliza para se dirigir a quem não tem estatuto de embaixador).

Alguém receber um telegrama assinado pelo próprio ministro dos Negócios Estrangeiros é uma coisa que rarissimamente acontece na nossa profissão. E, com uma mensagem tão seca e negativa, a excecionalidade tornava-se trágica. Posso imaginar como me devo ter sentido, pensando estar em face do início do fim da minha carreira. O meu ritmo de "produção" telegráfica deve ter levado, a partir daí, um corte substancial, resumindo-me ao essencial, para evitar atiçar ainda mais as iras lisboetas. No regresso de férias, o embaixador, em tom de algum desagrado, deixou cair que "ouvira nos corredores" a história do meu telegrama e da resposta do ministro. Não fora, de facto, uma brilhante estreia como "encarregado de negócios".

Mas não houve mais consequências e tudo acabou apenas por ser uma bela lição. Aprendi que, nas chefias interinas, os substitutos devem ser discretos e proceder exatamente da forma como imaginam que os substituídos gostariam que as coisas se passassem na sua ausência. Nem mais, nem menos. Foi o que passei a fazer a partir de então.

10 comentários:

margarida disse...

Curioso que revele semelhante...
Assumpção 'naive' por certo não é.
Vislumbra-se candura, serenidade.
E um sorriso divertido.
.
Volvido o tempo, alterado o espaço, quedam-se ambas as mãos sem sombra de palmatória.

Anónimo disse...

Caro Sr. Embaixador

Este seu brilhante texto sobre o sindrome de Agosto, aplica-se a todas a facetas da vida nacional, onde as pessoas perdem o entusiasmo e a capacidade de iniciativa, para alinharem no ritmo do "cinzetismo".

A genealidade dos portugueses que brilha lá fora onde o terreno é propicio para se desenvolver, é aqui castrada pela mediocridade reinante.

Como dizem os japoneses " O prego que se destaca mais é o primeiro a levar a martelada!"

margarida disse...

" O prego que se destaca mais é o primeiro a levar a martelada!"
Formidável!
Dei agora uma valente gargalhada, com isto... (a garota aqui ao lado até deu um pulo, olhando-me de soslaio, assarapantada).
Lindo.
Aplica-se-me tão bem em tantas coisas...

Anónimo disse...

Bem
Também(como o Sr. mesmo diz) poderia não ter tido tempo para ser sucinto...
Isabel Seixas

Helena Oneto disse...

Exquis! "ça ne m'étonne pas de vous"...:)! rien que 4 pages de telex! il fallait le faire! :) bon não faço "pouco" porque poucos podem gabar-se de não terem passado por situações idênticas.

Também ri às gargalhadase com o "prego que se destaca". Uma delicía!

Guilherme Sanches disse...

Ao segundo dia de tropa, já se sabia que os instrutores seriam oficiais do quadro, e as expectativas, que não eram as melhores, já se tinham instalado.
Quando chegámos à parada, os meus olhos brilharam. O Chaves, que em Vila Real vivia ali perto do cemitério, embora não fosse das minhas mais íntimas relações, tinha feito o liceu comigo e seguido para a Academia Militar, sendo um dos alferes da minha companhia. A quatrocentos quilómetros de distância, senti nesse momento aquele magnetismo que atrai os conterrâneos, quando deslocados do seu espaço de origem, o que além do mais, naquele momento até era uma espécie de bênção animadora.
Foi como uma luz que se acendeu num longo corredor daquele monstruoso e sinistro convento de Mafra, quando visto por dentro, aos olhos de um jovem soldado cadete solitário, a iniciar a sua "vida militar.
Na primeira oportunidade de aproximação, dirigi-me a ele, abri o sorriso e estendi-lhe a mão, com um "- olá, pá, estás bom?
O Chaves, sem sorrir, fixou-me nos olhos, fez continência, pôs-se em sentido e disse com ar solene: "- o nosso cadete, quando se dirigir a um superior, deve fazer continência e falar em sentido"... e pouco mais.
Imaginem, se conseguirem, a reação e o desencanto provocado por um pequeno pormenor que fazia toda a diferença - no meu ombro, uma estrela; nos ombros dele, um galão dourado.
Ao fim da tarde, chamou-me a sós, e explicou-me o momento "- lá fora, somos os amigos, mas aqui é assim". A seguir, até consolidámos o fortalecemos os laços de amizade, indo mesmo "beber uns copos" de vez em quando, sem qualquer conotação líquida ou alcoólica que isso possa ter.
Faz 39 anos na sexta-feira dia 16, e nunca mais esqueci, aprendendo a dimensão da lição que tenho praticado a vida inteira. E que estabilidade nos dá o sabermos assentar os pés em terra, perante quem prefere colocar-se apenas em bicos...
Não sei se é estória ou é história, o post que me relembrou este momento. Mas é uma delícia.
Todos temos um dia esse dia, Senhor Embaixador. Uns aprendemos, outros nem por isso.

Anónimo disse...

Uns aprendemos, outros nem por isso.

Sem dúvida interessante...

A sua "es, His" é ilustrativa dos diferenciais de estatuto impostos pela representação social do lugar de carreira.

Já protagonizei os dois papeis com mais sorte acho eu...
Na situação que relatou foi sempre bem aceite a minha consciência de constatação de que existe uma necessidade absoluta de reconhecimento do estatuto e é quase passível de generalização...
Que pena do meu ponto de vista, pensei que o cariz Chaves amortizasse esse cliché...


O conceito/construto de respeito é surpreendente...

Já aqueles amigos de infância que se reencontram em situações dessas de poderes instituídos diferentes...

Cada um...

Por mim, quando sou eu simbolicamente a deter o poder, oh! por favor... a amizade de infância é um poder perpétuo.

Mas já tive amigos que me disseram Isabel podes tratar-me tu por tu, mas eu vou trata-la por você...
É também Aí que aprendo, e que remédio também trato os meus verdadeiros amigos por você.
Mas discordo de Mim
Obrigada
Isabel Seixas

Anónimo disse...

novíssimo aspirante a oficial miliciano, tive um aparatoso desastre de carro que terminou na esquadra da polícia local. Na discussão de quem tinha razão, eu ou o outro chocado automobilista, disse com a irreprimível arrogância dos meus vinte e um anos: eu sou aspirante miliciano! E o meu opositor respondeu com afrontosa humildade: e eu sou capitão miliciano! Nunca mais esqueci, naturalmente!

Helena Sacadura Cabral disse...

Este canto é uma das minhas âncoras de descanso.
Hoje, afónica, sózinha num programa de tv que costumo partilhar com outra colega, depois de levar uma injecção de cortisona, cheguei estafada a casa. E, claro, deliciei-me com o post e com os comentários.
O provérbio do prego é mais uma prova da nossa imensa sabedoria popular.
Apenas uma nota. Adoro ficar na cidade - Lisboa ou Paris, que ambas são minhas - em Agosto. É das épocas que mais aprecio.

J. Ryder disse...

dear Francisco:

http://praiagrande.blogspot.com/2005/03/george-kennan.html

abraço

do j.ryder

Os borregos

Pierre Bourguignon foi, ao tempo em que eu era embaixador em França, um dos grandes amigos de Portugal. Deputado à Assembleia Nacional franc...