quinta-feira, abril 30, 2009

1º de Maio de 1974


Imagem de Portugal

Durante o debate que se seguiu a uma palestra que proferi ontem na Cidade Universitária de Paris, e cuja tradução se pode ler aqui, uma estudante perguntava-me sobre o modo como Portugal era, nos dias de hoje, visto do exterior, passados que foram 35 anos desde o 25 de Abril.

É sempre muito complexo tentar sintetizar, em poucas e sempre subjectivas palavras, um olhar que é, por definição, plural e não unívoco. Mas é meu entendimento que a imagem internacional de Portugal sofreu bastante durante o período do Estado Novo, em especial quando se opôs ao movimento descolonizador, ao mesmo tempo que teimava na manutenção de um regime cerceador das liberdades. Além disso, um país que obriga à emigração dos seus cidadãos é um país que não se prestigia: por regra, cada um deve poder encontrar, na terra que o viu nascer, a forma de sustentação e de desenvolvimento da sua vida. A emigração pode ser uma opção, não deve ser nunca um destino. E, em Portugal, foi-o por quase dos séculos. E a nossa imagem colectiva não deixou de sofrer com isso.

Com a recuperação da democracia, em 1974, uma onda de boa-vontade espalhou-se sobre Portugal, recebido de braços abertos pela comunidade internacional, em especial nos organismos multilaterais, com os quais o novo regime procurou, desde o primeiro momento, trabalhar de forma altamente colaborante. Portugal conseguiu então captar a simpatia de muitos países e sectores de que estivera alheado. E, sem dúvida, a imagem internacional do país reforçou-se muito com a institucionalização democrática, com a integração europeia, com a adesão a objectivos respeitáveis na ordem externa - de que o caso da autodeterminação timorense é talvez o melhor exemplo.

Ao longo dos últimos 35 anos, a diplomacia portuguesa soube projectar a imagem de um país com uma grande capacidade de diálogo, empenhado nas grandes causas da modernidade e da ética internacionais, com posições quase sempre de grande equilíbrio e sentido de compromisso, com uma leitura serena das grandes questões mundiais - enfim, uma "diplomacia previsível", que creio ser uma das grandes armas para afirmar a credibilidade de qualquer Estado moderno. A política externa do Portugal democrático - independentemente dos governos, apenas com pontuais rupturas do consenso - constitui hoje um dos pilares mais sólidos da imagem do país, para a qual também contribui, no mesmo âmbito, o empenhamento das nossas Forças Armadas em importantes cenários de preservação da paz.

Porém, na minha resposta à estudante não disse algo que acho importante referir. Falta ainda a Portugal atingir um patamar que é condição essencial para uma imagem internacional completamente sólida: um amplo bem-estar colectivo. Lá chegaremos um dia!

Descolonização

Texto de um "take" da Agência Lusa de hoje: O embaixador de Portugal em Paris, Francisco Seixas da Costa, opinou quarta-feira, em Paris, que no seu "ponto de vista pessoal", a descolonização "foi uma tragédia, tal como foi a colonização, mas não era possível fazer de outra maneira."

A expressão, em rigor, foi esta: "A descolonização foi uma trágédia, da mesma maneira que a colonização foi uma tragédia. Esta é uma frase de Melo Antunes que eu subscrevo". Mais adiante referi: "A descolonização foi feita da forma que foi porque o estado a que o regime anterior tinha conduzido a situação nas colónias não possibilitou outra solução", tendo também referido que uma solução negociada teria sido possível, se para tal houvesse vontade política, nos anos 50, e tendo ainda detalhado as muito difíceis condições político-militares nas colónias com que o novo poder se viu confrontado e que impediam que se seguissem outras vias.

As sínteses têm sempre riscos, o principal dos quais é a imprecisão.

quarta-feira, abril 29, 2009

O Quarto

Era o tempo das negociações para a entrada de Portugal nas Comunidades Europeias, essa primeira década dos anos 80 em que, com muito esforço e dedicação, vários sectores da sociedade portuguesa foram chamados a dar o seu testemunho sobre as práticas em vigor no nosso país, a fim de as procurar tornar compatíveis com as que eram seguidas nessa Europa a que pretendíamos aderir.

A vida europeia tem regras, padrões e medidas que, parecendo bizarrias a muitos, têm como objectivo garantir uma presença no mercado comum comunitário dos produtos originários dos vários países, em moldes susceptíveis de garantirem uma livre e equilibrada concorrência.

Nesse dia, eram os nossos produtores de leite que explicavam qual o tipo de vasilhame que era usado em Portugal. O técnico que tinha ido a Bruxelas falava um francês razoável, porém com algumas falhas que, não sendo trágicas, eram, pelo menos, cómicas. Uma delas teve graça. Ao referir-se ao tipos de garrafas utilizadas em Portugal para a venda de leite, terá dito mais ou menos isto: "Au Portugal, nous avons des bouteilles de litre, de demi-litre et de chambre de litre".

O espanto dos auditores de língua francesa terá sido muito, ao serem confrontados com esta criativa forma de se referir ao quarto de litro...

terça-feira, abril 28, 2009

Jornalistas

Jean Lacouture é das grandes personalidades do jornalismo francês, com uma carreira brilhante que passa pelo histórico Combat, pelo Le Monde e pelo France Soir, antes de se afirmar como um dos mais notáveis colunistas do Nouvel Observateur. Apaixonado pelas lutas anti-coloniais, foi um feroz anti-gaullista, antes de se converter num admirador do General. A sua obra no campo da biografia é imensa e variada, sempre servida por uma escrita ágil e rica.

Ao 88 anos, acaba de publicar uma excelente memória biográfica de 14 grandes jornalistas franceses. A escolha é porventura polémica, por alguns que lá estão - Mauriac, Pivot - e por alguns que não estão - como Camus, Fauvet, JJ Servan-Schreiber ou mesmo Aron. Uns por umas razões, outros por outras. Não deixa, contudo, de ser um livro fascinante, uma verdadeira pequena história do jornalismo francês.

O título do livro é, em si mesmo, uma definição magnífica dos jornalistas: os impacientes da História. E bem verdadeiro, para alguns.

Leixões


O site da TSF titula: Leixões empatam com Guimarães.

A isto se chama pluralismo desportivo.

segunda-feira, abril 27, 2009

Racismo

As conclusões da Conferência da ONU sobre o Racismo, que teve lugar em Genève, deram plena razão à posição do Governo português que, desde muito cedo, entendeu, no seio da União Europeia, que era importante distinguir entre o essencial e o acessório, evitando que este último pudesse colocar em causa o esforço, longo e meritório, que a comunidade internacional tem vindo a fazer desde a reunião de Durban I.

O nosso país sempre afirmou que não deixaria de estar presente na Conferência, desde que o documento final mantivesse um padrão globalmente positivo, como veio a acontecer. Não foi esse, infelizmente, o entendimento de um escasso número de parceiros europeus, o que, não sendo dramático, configurou uma dissonância numa dimensão importante da acção externa europeia.

Nestas como em outras temáticas centrais da cena multilateral, importa sempre estar presente e actuante, trabalhar bem a montante das reuniões finais e não deixar que elas venham a ficar reféns fáceis de gestos mediáticos e espectaculares que, lançando uma imagem de conflitualidade e polémica, não reflectem a qualidade do trabalho efectivamente realizado. E não devem pô-lo em causa.

O documento final da Conferência sobre o Racismo, segundo todos os especialistas, configura uma salto qualitativo muito significativo na matéria, desenha um conjunto objectivo de compromissos e prolonga a responsabilidade internacional num processo de execução de medidas fundamentais na luta contra o racismo, xenofobia e todas as formas de discriminação e intolerância.

Agora, o esforço principal deverá ser tentar reconduzir a nova Administração americana, que se sabe ter uma particular sensibilidade perante esta temática mas encontrou o processo negocial num estádio já muito avançado, a trabalhar de forma conjugada com os principais actores que podem levar a bom porto as medidas que agora foram acordadas. Nestas como em outras questões de natureza global, a experiência prova que faz toda a diferença ter os Estados Unidos no grupo impulsionador.

domingo, abril 26, 2009

Bartolomeu

Este 25 de Abril já não teve o Bartolomeu, o Bartolomeu Cid dos Santos.

Para ele, para quem a data era talvez a sua mais importante estação da vida, aqui fica a memória de uma sua gravura.

Poemas de Abril

O magnífico Tim Tim no Tibet traz-nos uma bela memória poética do 25 de Abril.

Para além de uma homenagem a Melo Antunes. Coronel, claro.

sábado, abril 25, 2009

O herói


Quando abrimos a porta, o Ramos dormitava numa sala de instrução, cabeça sobre a mesa, barba por fazer. Horas antes, tinha sido detido. Ele era o oficial de dia e, não estando no segredo do golpe, sendo imprevisível a sua reacção e não havendo tempo para operações de recrutamento por convicção, foi essa a decisão que os responsáveis pela tomada da unidade militar assumiram como a melhor, até para sua própria defesa, se algo corresse mal.

O Ramos era um tenente miliciano que decidira integrar a carreira profissional, uma facilidade a que o corpo militar recorria com cada vez mais frequência. Era um homem jovial, um pouco “militarão”, mas boa pessoa, com excelente relação com todos nós. Nada indicava que pudesse ser hostil à nova situação. Ora as coisas começavam a serenar, a unidade estava sob total controlo, Marcello Caetano estava cercado no Carmo, não havia razão para lhe prolongar o sofrimento. Foi solto.

De início ficou um pouco confuso, mas foi-lhe explicado o que acontecera, as razões da sua detenção e que, naturalmente, se contava com ele, dali em diante. Ficou outro. Foi tomar um banho e juntou-se-nos, com uma alegria genuína.

Perdi-o de vista durante o dia mas, ao final da tarde, venho a encontrá-lo na RTP, objectivo estratégico que a nossa unidade ocupara nessa noite. Tinha sido, entretanto, encarregado da segurança da entrada dos estúdios de televisão, com um grupo de soldados cadetes.

Quando se aproximou a hora da chegada à RTP da Junta de Salvação Nacional, para fazer a sua proclamação ao país, o Ramos montou aquela que viria a ser a guarda de honra para a chegada de Spínola, Costa Gomes e os outros membros do novo poder. Por curiosidade, confesso, para poder estar presente nessa ocasião com laivos de histórica, juntei-me a ele na entrada da RTP, onde, à época, havia uma bomba de gasolina. Como eu era aspirante e ele tenente, fiquei sob o seu episódico comando, para o exercício de protocolo militar que se iria seguir.

O grupo de cinco ou seis soldados cadetes que compunham a “tropa” do Ramos, que passei a “subcomandar”, estava num estado de cansaço que não augurava uma grande dignidade ao momento que se iria seguir. Bom conhecedor da poda militar, o Ramos relembrou a todos a forma de proceder na cerimónia de apresentação de armas.

Todos os soldados tinham G-3. Eu, porém, ainda hoje estou para saber porquê, tinha andado todo o dia com uma metralhadora FBP (na qual eu tinha “forçado”, por lapso, um carregador de balas errado, creio que de uma Vigneron, o que, mesmo que fosse preciso, me teria impedido de dar um único tiro durante todo o 25 de Abril...), arma que exigia um gestual protocolar diferente. Mas que lá aprendi, graças ao Ramos.

Chegado o grande momento, o Ramos afina a guarda de honra à Junta. Do primeiro carro, que me recordo de ser acinzentado, saiu Spínola, grave como sempre. O Ramos, com garbo, deu as vozes de comando necessárias e lá fizémos a melhor “apresentação de armas” que nos foi possível organizar.

Spínola perfilou-se face ao Ramos, fez continência, fixou o monóculo e olhou-o, por um imenso instante. O resto dos membros da Junta pararam, um pouco atrás, expectantes do momento. Spínola lançou então, para o perfiladíssimo Ramos, sempre em continência:

- "Eu não o conheço da Guiné, nosso tenente?".

O Ramos só conseguiu balbuciar, esmagado de comoção:

- "Meu general, efectivamente tive a honra de servir com V. Exa. na Guiné".

Spínola grunhiu algo, do tipo "logo vi!", e afastou-se, de capote e pingalim, rampa acima, a caminho dos estúdios.

Aí, o Ramos virou-se para mim, impante:

- "Estás a ver, pá, ele reconheceu-me, lembra-se de mim. Este gajo sempre foi o meu herói!".

E continuou a sê-lo, a partir daí. Para o Ramos.

A Festa

É diferente o 25 de Abril em França.

Os portugueses comemoraram, um pouco por toda a França a Revolução de Abril, em algumas dezenas de festas populares, que se iniciaram ontem e cujos eventos se prolongam, nalguns casos, por toda a próxima semana. Alguns não deixam de lembrar a ditadura, a censura, os presos políticos, a PIDE e o obscurantismo anti-democrático, bem como os capitães de Abril que ajudaram a pôr um ponto final a tudo isso e às três guerras coloniais. Eu próprio o fiz, ontem à noite, em Fontenay-sous-Bois, numa magnífica jornada de alegria e cravos, com muita juventude, mobilizada pelo entusiasmo democrático de Baptista de Matos, após um desfile à luz de archotes que terminou naquilo que é o único monumento ao 25 de Abril erigido no estrangeiro.

Mas, repito, há algo de diferente no 25 de Abril em França.

Por aqui, para além da Revolução, comemora-se a recuperação da cidadania dos portugueses que a ditadura obrigou a sair de Portugal. Celebra-se o início de um caminho para a atribuição do estatuto pleno de que hoje beneficiam na sociedade francesa, graças à sua pertinácia, à sua força, à sua capacidade de afirmação, eles que entraram para as Comunidades Europeias bem antes de Portugal a elas ter aderido formalmente. Celebram a sua liberdade. Um jantar-encontro na noite de hoje, organizado em Ivry-sur-Seine por essa figura indomável da cultura portuguesa em França que é João Heitor, recheado de músicas de Abril e de boa disposição, com a presença honrosa do antigo embaixador português, Coimbra Martins, provou-me que a festa é, por aqui, o outro nome do 25 de Abril.

Histórias do 25 de Abril - O comandante

As ordens tinham sido claras: os portões da unidade ficavam fechados e ninguém entrava sem uma autorização, dada caso a caso. A surpresa foi, assim, muito grande quando vimos o comandante da unidade, em passo lento mas firme, arrastando o corpo pesado, a subir a ladeira que levava à parada onde nos encontrávamos. O sargento de guarda ao portão ter-se-á amedrontado com a aparição da sua figura e, perante um berro hierárquico, lá o teria deixado entrar.

Ao ver surgir o comandante, o capitão do quadro que assumira as funções de oficial de dia, desde as primeiras horas do golpe, ficou lívido.

- “Ora bolas! E agora, que fazemos?”, voltando-se para o António e para mim, que o acompanhávamos na parada.

Não deixava de ter a sua graça: nós, meros aspirantes a oficial miliciano, a aconselhar um profissional que era o responsável máximo de uma unidade militar amotinada.

Entretanto, o comandante ia-se aproximando, tínhamos poucos segundos para reagir.

- “Prenda-o de imediato, mal ele chegar ao pé de nós”, disse-lhe eu, em tom baixo, delegando comodamente a minha coragem.

Ainda era muito cedo, nesse dia 25 de Abril, não fazíamos a mais leve ideia de como estava a situação pelo país, não sabíamos mesmo se não seríamos das poucas unidades amotinadas.

- “Você está doido, então eu ia lá prender o homem!”. Pela disposição do capitão, eu e o António percebemos que as coisas não iam ser nada fáceis.

O comandante aproximou-se de nós e estacou, aí a dois metros. Trocámos as continências da praxe, com o António, dado que tinha a boina displicentemente no ombro, a fazer um mero aceno com a cabeça.

- “O que é que você está aí a fazer de oficial de dia?”, lançou o comandante, em voz bem alta, ao vê-lo com a braçadeira encarnada da função. “Não era o Ramos que estava de serviço? E o que é que andam os cadetes a fazer pela parada? Porque é que a instrução ainda não começou?”.

Eram aí oito e meia da manhã e, desde as oito, os soldados cadetes deveriam, em condições normais, estar a ter aulas. O capitão, sempre ladeado por nós os dois, estava, manifestamente, sem saber o que fazer, com o quarteto já sob os olhares gerais.

- “Ó meu comandante, é que houve uma revolução…”, titubeou o capitão, em tom baixo, como que a desculpar-se. Não explicou que o oficial de dia, que ele substituíra, havia sido detido nessa madrugada e estava fechado numa sala.

O comandante, sempre ignorando-nos olimpicamente, olhou o capitão nos olhos e atirou-lhe, com voz forte e bem audível à volta:

- “Qual revolução, qual carapuça! Você está-se é a meter numa alhada que ainda lhe vai arruinar a carreira! Ouça bem o que lhe digo!”.

O momento começava a ser de impasse. O comandante olhava já em redor, num ar de desafio, consciente de que recuperara algum terreno, mas também sem soluções óbvias para retomar a autoridade. Não havia mais militares do quadro à vista, alguns tinham ido para a missão externa que a unidade tivera a seu cargo, outros ter-se-ão prudentemente esgueirado, para evitar a incomodidade deste confronto com o comando legal. O capitão quase que empalidecia de crescente angústia.

É então que o António, com o ar blasé de quem já estava a perder paciência, lança um providencial:

- “Ó meu capitão, vamos lá acabar com isto!”.

O comandante olhou então finalmente para o António e para mim, dois mero aspirantes, com uma fácies de extremo desprezo, como se só então tivesse acordado para a nossa presença em cena.

Aproveitei a boleia da indisciplina, aberta pelo António, e fiz das tripas coração:

- “Ó meu coronel, e se fôssemos andando para o seu gabinete?”.

O coronel olhou-me, com uma raiva incontida:

- “Coronel? Então já não sou comandante?”.

A crescente nervoseira deu-me um rasgo, com uma ponta de sádica ironia:

- “Não, não é, ainda não percebeu? E a conversa já vai muito longa, não acha, meu capitão?”.

Mas o capitão continuava abúlico. O impasse ameaçava prosseguir.

- “Então você deixa-se comandar por dois aspirantes?!”, lançou o coronel, numa desesperada tentativa de puxar pelo orgulho do pobre oficial.

Mas o vento já tinha claramente mudado e achei que tinha de aproveitar a minha inesperada onda de coragem, até porque, no fundo, já pouco tinha a perder:

- “O meu coronel quer fazer o favor de nos acompanhar até ao seu gabinete? É que, se não for a bem, tem que ir a mal e era muito mais simpático que tudo isto se passasse sem chatices”.

Confesso que me espantei com a minha própria firmeza mas, pronto, o que disse estava dito. O capitão não reagiu, para meu sossego. O coronel entendeu então, talvez pela primeira vez, a irreversibilidade da situação. A sua voz baixou para um limiar de resignada humilhação:

- “Então eu estou preso, é isso?”, disse, num tom muito menos arrogante.

- “Mais ou menos. Vamos andando, então”, cortei, rápido, dando o capitão por adquirido, mas sem fazer a mais pequena ideia se ele queria ou não prender o coronel.

Nesse segundo, dei-me conta que, se tudo acabasse por correr mal, o meu futuro iria ser complicado.

E lá fomos para o gabinete do comando. Duas horas depois, mandámos um carro levar o coronel de volta a casa.

Só o voltei a ver, anos mais tarde, ao entrar no Café Nicola. Recordo o olhar gélido que me lançou, com porte ainda altivo, barriga saliente, muito na reserva. Já com toda a liberdade, pedi uma bica.

Canções de Abril (3)

... e foi assim, com a "Grândola, Vila Morena", que o Portugal democrático renasceu em 25 de Abril de 1974.

Ouça a canção aqui.

Histórias do 25 de Abril - O Telefone


Estava-se nas primeiras horas do dia 25 de Abril de 1974. Todo o pessoal que dormia no quartel tinha sido acordado e mandado formar no escuro da parada. De megafone na mão, o capitão que liderava a revolta, anunciou que a unidade ia integrar um movimento militar que tinha como finalidade “acabar com a ditadura”, competindo-lhe atacar um determinado objectivo.


Os soldados, quase todos ensonados, alguns ainda a despistar a hipótese de se tratar de um mero exercício, ouviram em silêncio as palavras do capitão: quem quisesse alinhar que fosse buscar a sua arma, os restantes podiam voltar para a cama.


Mas já ninguém conseguiria dormir. Ouviram-se alguns comentários e apartes mais entusiastas, de milicianos com tarimba das lutas do associativismo universitário, alguns dos quais já previamente contactados, para o que viria a ser uma das primeiras operações militares que o Movimento das Forças Armadas iria efectuar nessa madrugada.


O pessoal foi mandado destroçar e, em pequenos grupos, regressou, cochichando, às camaratas, em busca da arma ou do travesseiro para a vigília.


Foi então que um soldado, discretamente, se aproximou da cabina telefónica que existia num canto da parada. Abriu a porta e, nessa altura, alguém, mais atento, atirou-lhe um berro:


- "Eh! pá, o que é que vais fazer?".


O rapaz olhou, meio apalermado, largou a porta da cabina já entreaberta e disse, com toda a candura, que só queria avisar a família, não fossem ficar em cuidados quando ouvissem as notícias.


- “Nem as penses! Pira-te daí!”, ouviu logo.


Desapareceu de imediato, rumo à camarata. Alguém entrou na cabina e arrancou o fio do telefone.


Como se faria hoje uma revolução, na era dos telemóveis?


sexta-feira, abril 24, 2009

25 de Abril

Esta é a madrugada que eu esperava
0 dia inicial inteiro e limpo
onde emergimos da noite e do silêncio
e livres habitamos a substância do tempo

Sofia de Mello Breyner

Canções de Abril (2)

Hoje à noite, precisamente há 35 anos, uma canção funcionou como a primeira senha para os militares que, por todo o país, se preparavam para lançar aquela que viria a ser a Revolução de 25 de Abril.

Foi João Paulo Dinis, uma voz agora histórica da rádio, que a Comunidade portuguesa em Paris pôde ouvir durante algum tempo na Rádio Alfa, quem sugeriu e colocou "no ar" o som de Paulo de Carvalho, cantando "E depois do adeus", a canção que, pouco tempo antes, havia sido escolhida para representar Portugal no festival da Eurovisão.

Ouça-a aqui.

Politicamente correcto (2)

Agora foi a vez de Coco Chanel (na foto).

Um filme sobre a sua vida, que dizem ser excelente, teve a sua publicidade impedida no metro de Paris pelo facto da actriz que a representa aparecer a fumar.

Tenho cá para mim que, um destes dias, vamos acabar por ter "westerns" sem Colt 45, numa qualquer campanha contra as armas.

Histórias do 25 de Abril - Testemunho


Parece que foi ontem, mas passaram já 35 anos sobre o movimento do 25 de Abril, a data que mudou Portugal e os portugueses.

Eu prestava serviço como oficial miliciano numa unidade militar de Lisboa. Desde os últimos meses de 1973, era patente que uma agitação atravessava os militares profissionais com que diariamente contactávamos. Inicialmente, sabíamos tratar-se de reivindicações corporativas, precisamente de protesto contra as facilidades concedidas aos milicianos de poderem vir a integrar o quadro profissional, modelo a que a instituição militar crescentemente se via obrigada a recorrer, perante as exigências de uma guerra em três frentes.

Mas, a partir de determinado momento, demo-nos conta de que as coisas tinham já uma amplitude maior, que os militares profissionais estavam cada vez mais conscientes da sua força potencial e de que começava a consensualizar-se, no seu seio, uma vontade de provocar uma mudança política no país. Se bem que não merecesse um apoio generalizado dos oficiais com que convivíamos, tornava-se claro que o general António de Spínola, recém-regressado do cargo de Governador da Guiné, acabava por funcionar como um polo de referência para muitos, em especial pela frontalidade que vinha a demonstrar nos últimos anos. A publicação do seu livro “Portugal e o Futuro”, que conduziu à sua subsequente demissão, terá sido a gota de água que terá feito acelerar a agitação que já era latente. Menos claro era, para muitos de nós, o sentido em que essa mesma inquietação caminharia e se ela teria, ou não, condições para conduzir a uma mudança democrática consequente.

Com efeito, o espectro de que um golpe mal preparado pudesse levar a uma rigidificação do regime assustava muitos de quantos tinham uma experiência de associativismo universitário e alguma formação política, que temiam que Marcelo Caetano acabasse por ser substituído por um “ultra” – nome que utilizávamos para designar os radicais conservadores do regime. O fracasso do movimento de 16 de Março, iniciado e acabado nas Caldas da Rainha, permitiu perceber que a força de resposta do regime tinha, contudo, sérios limites. E, não obstante o malogro dessa intentona, o sucesso de um golpe bem organizado pareceu mais próximo.

Por essa altura, os nossos contactos com os militares profissionais começaram a intensificar-se, embora de uma forma um tanto caótica, unidade a unidade, dependendo das relações pessoais, sempre com precauções de segurança mínimas, que temíamos fossem detectadas facilmente pela polícia política. Nada aconteceu, porém.

Ao fim da manhã do dia 24 de Abril, um grupo de oficiais milicianos “de confiança”, que reuni na biblioteca (de que era responsável) da minha unidade militar, recebeu a indicação de que o golpe era para ter lugar nessa noite. Lembro-me de que, apesar de estarmos preparados para o facto de que esse dia iria chegar, mais cedo ou mais tarde, ficámos então num misto de excitação e ansiedade, tanto mais que nos não foram dados pormenores sobre as tarefas que nos iam ser pedidas. Apenas era requerida a nossa disponibilidade.


E foi assim que se avançou pela noite, para o dia seguinte, um dia a que, na altura, ninguém se lembrou de chamar “o 25 de Abril”.

quinta-feira, abril 23, 2009

Lusofonia

À volta de um bacalhau e de um Quinta do Cabriz, tive hoje em casa, a almoçar, os meus colegas da lusofonia. A gastronomia de matriz lusa é uma das raras unanimidades no seio dos "oito". A outra é o futebol, claro.

Que bom que é esta sensação de podermos discutir as nossas questões comuns na mesma língua! Mas há muito mais, para além dessa facilidade comunicacional: há cumplicidades, referências e um mundo que nos é próximo, que ganha com a diversidade dos vários mundos em que cada um de nós se move.

A ver vamos se, em Paris, vai ser possível garantir a conjugação de estratégias e a definição de planos para um bom trabalho conjunto. É importante que a CPLP não seja um grupo de países separados por uma língua comum.

quarta-feira, abril 22, 2009

Rota da Seda

A Ásia Central é uma região do mundo que vive sob o manto de um relativo desconhecimento, como que escondida atrás de uma Rússia com a qual tem uma relação complexa e ofuscada pela vizinhança mais mediática da China, do Irão e do Afeganistão. A antiga "Rota da Seda" é constituída por cinco dos 15 países que resultaram da implosão da antiga União Soviética e tem, dentro de si própria, fortes contradições, parte das quais resultantes de alguma arbitrariedade na definição de fronteiras que Estaline lhes impôs. O seu processo político, desde o fim da URSS, não tem sido linear e tem passado por convulsões diversas, quase sempre sob modelos políticos autoritários.

Portugal tem mantido uma escassa presença nessa área, onde não tem embaixadas mas com a qual, curiosamente, tem sabido sustentar um registo constante de diálogo, que é muito o fruto do trabalho que desenvolveu no quadro da Organização para a Segurança e Cooperação Europeia (OSCE), da Cimeira de Lisboa, em 1996, até à sua presidência da organização, em 2002. Há dias, o ministro português dos Negócios Estrangeiros fez uma visita à região, tendo ficado desenhados vários instrumentos para uma possível cooperação bilateral entre Portugal e esses Estados, cujas instituições, bem como as estruturas da respectiva sociedade civil, se torna muito importante conseguir apoiar e reforçar.

Há uns anos, com outros três embaixadores da OSCE, viajei por todos esses países e pude aperceber-me que, por detrás de nomes com terminações similares que induzem à confusão dos não iniciados (Casaquistão, Quirguistão, Tajiquistão, Turquemenistão, Uzebequistão), vivem realidades muito diferentes e, não raramente, conflituantes entre si. Petróleo, escassez de água, lixos tóxicos, questões religiosas e de minorias, para além das tensões estratégicas provocadas pelo radicalismo islâmico e pela fragilidade das culturas democráticas, são algumas das temáticas de que, sem qualquer dúvida, ouviremos falar muito no futuro. Os tempos da luta anti-terrorista acabaram por travar, em alguns deles, a abertura que já se pressentia nos respectivos regimes e, em certos casos, deram mesmo um álibi para novas vagas repressivas. Noutros, porém, tem vindo a detectar-se alguma dinâmica de inclusão cívica, que deve ser estimulada e relevada.

É a propósito da Ásia Central que deixo hoje uma pequena história.

Durante a nossa viagem diplomática, num desses países sujeito a um regime muito autoritário, verificou-se ser impossível conseguir contactos com opositores ao regime de partido único, por óbvio receio de represálias. O máximo que se conseguiu foi falar com a representante de uma Organização Não Governamental local, dedicada ao acompanhamento da situação dos prisioneiros políticos. Ela entrou na sede da delegação da OSCE, onde nos encontrávamos, sabedora que tinha de aproveitar a presença de diplomatas ocidentais para dar conta da terrível situação que afectava alguns dos seus compatriotas. Relatou-nos, sempre sem recorrer a um tom dramático, algumas barbaridades cometidas pelo governo do país, deu-nos nomes e locais, detalhou as imensas dificuldades sentidas pela sua organização e o escasso apoio que conseguia junto das missões diplomáticas estrangeiras, muitas delas há muito convertidas à cínica lógica da "realpolitik". Todos ficámos impressionados pela serenidade grave desta mulher, pela sua dignidade e coragem, pelo muito que arriscara ao vir falar connosco. À saída, num tom quase neutro de voz, com uma naturalidade desconcertante, deixou-nos um simples pedido: "Se vos fôr possível, peçam às embaixadas ocidentais que existem aqui no meu país para estarem atentas ao que me pode vir a acontecer. É que estou segura que as minhas autoridades não me vão perdoar pelo facto de ter vindo falar convosco..."

Protocolo

A imaginação da gastronomia protocolar não tem limites. Ontem, fui convidado para uma exposição seguida de um "cocktail dînatoire". Conhecia a expressão, mas já não a via referida há muito. É como se se avisasse que a recepção será tão abundante que, depois dela, ninguém precisará já de jantar.

Lembrei-me que há, em Portugal, um termo similar, o "lanche ajantarado". Mas, como me dizia, na ocasião, um colega português, que tem por missão dar atenção prioritária às coisas da cultura, a nós nunca nos passa pela cabeça pôr isto num cartão de convite.

Soufflé

Era num desses países onde a tradição manda que o dono da casa, no início dos jantares formais, diga sempre umas palavras sobre cada um dos convidados, sem nenhuma excepção. O exercício parece fácil mas, para um embaixador estrangeiro, para quem muitas das pessoas presentes eram conhecimentos recentes, alguns com nomes bizarros, a tarefa era sempre algo complicada. O recurso a uma "cábula", discretamente colocada em frente do anfitrião, costumava ser a solução tradicional.

Mas o nosso embaixador - porque é de um embaixador português que falamos - rapidamente perdeu a paciência para seguir, nos seus jantares, o protocolo local e decidiu-se por um expediente, que considerou ser uma imbatível trouvaille. Um dia, levantou-se ainda antes do início da refeição, e disse: "Eu teria muito gosto de falar sobre cada um dos convidados, como mandam as regras locais, mas acabo de saber de um impedimento que, julgo, todos compreenderão: há um soufflé a sair! Ora um soufflé, como é sabido, não pode esperar e afirmam-me da cozinha que está pronto a ser servido. Assim considerem-se todos cumprimentados... e bom apetite!"

Os convidados entenderam a pressa do embaixador e o jantar decorreu da melhor forma. Tudo estaria muito bem se o embaixador não tivesse decidido enveredar, nos jantares seguintes, e quase sistematicamente, pela repetição do "truque" que lhe permitia evitar o discurso. Só que não se dava conta que alguns dos convidados eram, por vezes, os mesmos e, por isso, já tinham ouvido a estafada história do soufflé. Que se tornou famosa no corpo diplomático local...

Há uns anos, regressei a essa cidade e jantei com um desses convivas, que logo me perguntou: "Que é feito daquele simpático embaixador português que, durante anos, para evitar fazer discursos, dava sempre soufflé como entrada?"

terça-feira, abril 21, 2009

Amália e os poetas

É impressionante como a figura de Amália Rodrigues continua a mobilizar as pessoas, mesmo em Paris. Ontem, durante a apresentação do livro de Jean-Jacques Lafaye, "Amália e os poetas", uma animada discussão sobre Amália e o fado, com guitarradas à mistura, deu lugar a uma concorrida sessão no Centro Cultural Gulbenkian, na avenue de Iéna. E de notar que os portugueses presentes eram bem menos que os franceses.

Canções de Abril (1)

Nesta semana em que se comemoram os 35 anos do 25 de Abril de 1974, será curioso revisitar o "Venham mais Cinco", uma das canções que marcaram essa data.

Ouça aqui.

segunda-feira, abril 20, 2009

Voltaire e Lisboa

Como modesta homenagem ao mortos de Aquila, em Itália, vale a pena lembrar um extracto do "Poème sur le Désastre de Lisbonne", que Voltaire publicou em 1756, no ano seguinte ao terramoto que devastou a capital portuguesa. Esse texto serviu de pretexto para o filósofo se opor a quantos viam no acontecimento um mero reflexo inelutável da vontade divina


O malheureux mortels! ô terre déplorable!
O de tous les mortels assemblage effroyable!
D'inutiles douleurs éternel entretien!
Philosophes trompés qui criez: "Tout est bien"
Accourez, contemplez ces ruines affreuses
Ces débris, ces lambeaux, ces cendres malheureuses,
Ces femmes, ces enfants l'un sur l'autre entassés,
Sous ces marbres rompus ces membres dispersés;
Cent mille infortunés que la terre dévore,
Qui, sanglants, déchirés, et palpitants encore,
Enterrés sous leurs toits, terminent sans secours
Dans l'horreur des tourments leurs lamentables jours!
Aux cris demi-formés de leurs voix expirantes,
Au spectacle effrayant de leurs cendres fumantes,
Direz-vous: "C'est l'effet des éternelles lois
Qui d'un Dieu libre et bon nécessitent le choix"?
Direz-vous, en voyant cet amas de victimes:
"Dieu s'est vengé, leur mort est le prix de leurs crimes"?
Quel crime, quelle faute ont commis ces enfants
Sur le sein maternel écrasés et sanglants?
Lisbonne, qui n'est plus, eut-elle plus de vices
Que Londres, que Paris, plongés dans les délices?
Lisbonne est abîmée, et l'on danse à Paris.

Tranquilles spectateurs, intrépides esprits,
De vos frères mourants contemplant les naufrages,
Vous recherchez en paix les causes des orages:
Mais du sort ennemi quand vous sentez les coups,
Devenus plus humains, vous pleurez comme nous.
Croyez-moi, quand la terre entrouvre ses abîmes
Ma plainte est innocente et mes cris légitimes
Partout environnés des cruautés du sort,
Des fureurs des méchants, des pièges de la mort
De tous les éléments éprouvant les atteintes,
Compagnons de nos maux, permettez-nous les plaintes.
C'est l'orgueil, dites-vous, l'orgueil séditieux,
Qui prétend qu'étant mal, nous pouvions être mieux.
Allez interroger les rivages du Tage;
Fouillez dans les débris de ce sanglant ravage;
Demandez aux mourants, dans ce séjour d'effroi
Si c'est l'orgueil qui crie "O ciel, secourez-moi!
O ciel, ayez pitié de l'humaine misère!"
"Tout est bien, dites-vous, et tout est nécessaire."
Quoi! l'univers entier, sans ce gouffre infernal
Sans engloutir Lisbonne, eût-il été plus mal?



A Turquia e a Europa

A questão da relação da Turquia com a União Europeia permanece um tema muito divisivo.

Há quem considere que a Turquia, pela sua história e pela sua génese sócio-política, faz parte de um outro mundo e que, por essa mesma razão, o seu lugar terá de ser sempre fora da União Europeia, embora mantendo com ela um estatuto de grande proximidade.

Outros, porém, defendem que não parece congruente continuar a discutir com Ancara, como tem vindo a acontecer, diversos capítulos negociais que pressupõem o caminho para um processo de adesão, quando, ao mesmo tempo, se alerta, desde já, para a impossibilidade de se chegar ao termo desse processo - isto é, à adesão plena da Turquia à União Europeia. Essa é a posição portuguesa.

Implícita ou explícita neste debate está, muitas vezes, a questão religiosa, que em certos sectores europeus, desde há muito, se erigiu como um factor de bloqueio da maior importância. Também aqui, as visões europeias divergem bastante, embora muitos não tenham a coragem de assumir estas suas reais motivações.

Talvez só tempo possa tornar as diversas posições menos rígidas, embora me pareça evidente que, se vier a dar-se a fixação de um sentimento de hostilização europeia face à Turquia, isso pode vir a ter um efeito de perda de estímulo a quantos, naquele país, levam a cabo uma séria e corajosa luta no sentido de o aproximar dos padrões que hoje são comuns aos restantes Estadoss europeus. Por outro lado, isso também pode vir a gerar o indesejável reforço dos que, na sociedade turca, encontram, no dia a dia, motivos para olhar com desconfiança um mundo que, ao tempo da Guerra Fria, considerou o país um útil aliado estratégico no seio da NATO e que agora, fruto de novos ou renovados receios, parece rejeitar a sua aproximação.

No passado fim de semana, fui confrontado, aqui em França, com dois elementos interessantes para ajudar a reflectir sobre esta temática.

O primeiro foi um artigo de Tariq Ramadan, no "Le Monde", cujo conteúdo me parece importante ser bem reflectido e que pode ser lido aqui. Ramadan é um intelectual islâmico, de nacionalidade suíça, que conheci em 2002, em Portugal, num colóquio organizado pela Universidade Nova de Lisboa, dedicado ao tema do terrorismo, em que ambos interviemos. Ao longo destes anos, tem-lhe cabido o papel, por vezes muito difícil e mal compreendido, de tentar interpretar junto do mundo ocidental algumas posições muçulmanas. Pode não se concordar com teses que assume, mas sou de opinião que a sua lucidez, no seio do islamismo moderado, continua a ser da maior importância.

Um outro dado para a análise do caso turco é a exposição "Istanbul traversée", no Musée des Beaux-Arts, de Lille, uma impressionante leitura do convívio, na Turquia contemporânea, de dois tempos culturais em diálogo e imaginável conflito, mas por cuja resultante acabará por passar, com toda a certeza, o futuro daquele país, com ou sem presença na União Europeia. À entrada da exposição está uma nota muito significativa, que resume muito: "Ser ocidental, a despeito do Ocidente".

A França na literatura portuguesa (2)

Restaurant Paillard

Extracto de "A Cidade e as Serras", de Eça de Queirós

"Na biblioteca, o nosso retumbante mordomo anunciava: - Sua Alteza o Grão-Duque Casimiro!
(...)
E, imediatamente, batendo com carinhosa jovialidade no ombro de Jacinto:
- E o peixe?... Preparado pela receita que mandei, hem?
Um murmúrio de Jacinto tranquilizou Sua Alteza.
- Ainda bem, ainda bem! - exclamou ele, no seu vozeirão de comando. - Que eu não jantei, absolutamente não jantei! É que se está jantando deploravelmente em casa do Joseph. Mas porque se vai jantar ainda ao Joseph? Sempre que chego a Paris, pergunto: "Onde se janta agora?". Em casa do Joseph!... Qual! Não se janta! Hoje, por exemplo, galinholas... Uma peste! Não tem, não tem a noção da galinhola!
Os seus olhos azulados, de um azul sujo, rebrilhavam, alargados pela indignação:

- Paris está perdendo todas as suas superioridades. Já se não janta, em Paris!

Então, em redor, aqueles senhores concordaram, desolados. O conde de Trèves defendeu o Bignon, onde se conservavam nobres tradições. E o director do
Boulevard, que se empurrava todo para Sua Alteza, atribuía a decadência da cozinha, em França, à República, ao gosto democrático e torpe pelo barato.
- No Paillard, todavia... - começou o Efraim.
- No Paillard! - gritou logo o grão-duque. - Mas os Borgonhas são tão maus! Os Borgonhas são tão maus!..."

domingo, abril 19, 2009

Politicamente correcto

Há anos, foi Lucky Luke, a quem tiraram o cigarro pendente da boca, substituído por um qualquer vegetal.

Agora foi a vez de Jacques Tati, cujo cachimbo desapareceu, na publicidade que surge nas ruas de Paris à retrospectiva da sua obra, substituído por um ridículo catavento. Por este andar, admira-me mesmo que, ao sobrinho, não tenham colocado um capacete de ciclista...

Onde chegaremos no "politicamente correcto"?

Ainda Cuba

Era uma casa muito modesta, em La Habana, à qual cheguei por indicação de amigos, há cerca de dois anos. A proprietária era uma pintora, na casa dos 40, antiga funcionária de uma bomba de gasolina, que, anos antes, descobrira a sua vocação e se decidira a uma carreira nas artes. Para o meu olhar de leigo, a sua pintura denotava uma qualidade potencial que, se melhor educada, poderia ter condições para vir a evoluir bastante.

O trabalho da pintora cubana terá chamado a atenção de alguém e, com todas as devidas autorizações, quadros seus partiram para o estrangeiro, venderam-se e fizeram mesmo algum sucesso.

Com total candura, perguntei-lhe se tinha estado presente nalguma dessas exposições, fora de Cuba. A sua resposta, num tom resignado mas não ácido, como se fosse a tradução de um destino irreversível, veio com um sorriso de triste desencanto: "Não, nunca fui. E nunca irei. Sabe, eu nunca sairei daqui...".

E agora, sairá?

Militares

O "Expresso" escandaliza-se hoje com o facto do Vaticano, na publicitação da santificação de Nuno Álvares Pereira, se ter referido ao militar de Aljubarrota como "Alvarez".

Esta exigência de rigor contrasta, no obituário inserido no verso da mesma folha do jornal, com um erro bem mais crasso: chama "Avelino Pereira" ao também militar Aventino Teixeira.

sábado, abril 18, 2009

Português

Por influência de Angola, a língua portuguesa vai ser ensinada nas escolas primárias da Zâmbia.

É uma boa notícia. Assim começa um tempo em que os países africanos que falam português passam a assumir plenamente a bandeira da promoção externa da nossa língua comum.

La Lys

Tiveram hoje lugar as comemorações da batalha de La Lys, na qual as tropas do Corpo Expedicionário Português perderam, apenas em 9 de Abril de 1918, cerca de 7.500 homens, durante a sua participação na 1ª Guerra Mundial.

Há 20 anos que se mantém esta romagem anual, que tem vindo a ser presidida pelo embaixador de Portugal, num cerimonial com uma imensa dignidade, na presença de associações de combatentes franceses e de instituições da Comunidade portuguesa, tendo à frente o espírito generoso e empreendedor de João Marques, presidente da União Franco-Portuguesa de Richebourg.

Durante as cerimónias, parte das quais no impressionante Cemitério Militar português de Richebourg, perto de Lille, que a imagem mostra, fiz uma intervenção, como embaixador de Portugal , de cuja tradução transcrevo um extracto:

"Esta é a primeira vez que, como embaixador de Portugal em França, tomo parte na cerimónia que celebra a batalha de La Lys. Mas gostava de dizer que não estou aqui no cumprimento de uma rotina, estou aqui no cumprimento de um dever. Um dever de português e um dever de europeu.

Permitam-me que comece por uma nota pessoal. Há cerca de 40 anos visitei o cemitério de Richebourg, como simples cidadão. Vim à procura da memória daquela que foi uma aventura trágica de Portugal, uma aventura que, na minha cidade natal, Vila Real, se evocava todos os anos, no dia 9 de Abril. Sou conterrâneo daquele que ficou conhecido como o soldado Milhões, uma figura de que me recordo ainda de ter visto, cheio de condecorações no peito, na romagem anual ao monumento a Carvalho Araújo, também ele um herói português da 1ª Guerra Mundial, um valente marinheiro que deu a vida para salvar um navio de passageiros atacado por um submarino alemão.

A minha terra, a região do norte de Portugal, Trás-os-Montes, deu muitos dos soldados que hoje estão no cemitério de Richebourg. Homens que, na sua simplicidade, souberam honrar a farda que vestiram, apesar de serem protagonistas de uma derrota, mas uma derrota de uma guerra que ajudaram a vencer.

A História de Portugal, de que muito nos orgulhamos, e com a qual os portugueses hoje vivem uma relação de grande serenidade, é feita de momentos bons e outros maus, de vitórias e de derrotas. Mas não será por acaso que hoje somos um país independente, com fronteiras reconhecidas há oito séculos. Isso aconteceu porque muitos morreram pela bandeira de Portugal, no cumprimento das missões que lhes destinaram. Nas vitórias e nas derrotas.

O debate sobre a participação de Portugal na 1ª Guerra Mundial não está encerrado no meu país. Para além de quantos que contestam a opção do Governo republicano de se juntar aos aliados, outros entendem que o poder político não cuidou devidamente das condições em que essa intervenção se fez e que houve decisões que fragilizaram essa mesma participação. Esse debate continua e é importante que se faça. Porquê? Para que possamos responder com verdade perante todos estes mortos, perante todas estas cruzes. É nossa responsabilidade deixar clara bem a razão porque morreram.

Mas os países e os povos não devem apenas comemorar as batalhas que venceram. As derrotas fazem parte da vida, como fazem parte da História. Por isso, os homens que estão no cemitério de Richebourg, são figuras da nossa História, figuras de que nos orgulhamos, porque vieram, bem longe do seu país, defender os valores que o seu Governo entendeu dever proteger, num tempo em que era necessário defender a liberdade da Europa. Esses homens, esses soldados, seguramente mal equipados, pouco treinados e sujeitos a um ambiente muito diferente do seu país de origem, estiveram aqui a mostrar que um país a cuja metrópole a guerra não chegara era, contudo, um país que se sentia envolvido nessa guerra. E esses homens, esses soldados, lutaram e morreram, com sacrifício mas com honra, provavelmente pouco conscientes dos valores pelos quais combatiam. O que torna ainda mais digna a sua tragédia.

Ainda no século XX, Portugal veio a travar novas guerras em África, guerras coloniais, na defesa de soluções políticas que o tempo provou estarem já fora do tempo. Outros soldados aí morreram, também com honra, também com um espírito de sacrifício que todos temos obrigação de respeitar e saudar. Como há que saudar os militares portugueses que hoje estão presentes em operações de paz, em vários cenários internacionais de risco, no cumprimento de missões determinadas pelo poder político. Todos são parte da mesma continuidade de serviço público, da mesma História.

Portugal é hoje um parceiro de corpo inteiro da comunidade internacional. Os nossos interesses estão onde estiver a defesa da paz, da estabilidade e da liberdade. Fazemos parte da NATO e da União Europeia, mantemos uma política externa baseada no diálogo, mas sempre em torno de princípios que cuidamos em preservar e promover. Nos Balcãs ou em Timor-Leste, as nossas Forças Armadas são hoje um contributo inestimável para a acção externa do país. Tal como, em 1918, aconteceu com o Exército que veio para a Flandres, com os homens que aqui deixaram a sua vida e cuja memória hoje honramos e queremos preservar."

sexta-feira, abril 17, 2009

1969

Foto do Causa Nossa

Foi há 40 anos. Os estudantes de Coimbra entraram em luta e o ano de 1969, também por essa razão, iria transformar-se num tempo de grande tensão política em Portugal.

Marcello Caetano sucedera a Salazar, em Setembro do ano anterior. Nos primeiros tempos, a esperança de uma abertura na rigidez tradicional do regime estendeu-se a alguns sectores, seduzidos pela imagem mais liberal que Caetano cultivara, precisamente pelo seu apoio relativo à luta estudantil em 1962, que o distanciara de Salazar. Porém, muitos perceberam, desde cedo, que o novo chefe do Governo não tinha vontade e força anímica para forçar um sério movimento de liberalização política e que a sua indisponibilidade para enfrentar a questão colonial continuava a ser um insuperável factor bloqueante para qualquer evolução.

1969 será também o ano em que irão ter lugar eleições para a Assembleia Nacional, com listas oposicionistas a serem autorizadas a concorrer, embora em condições de manifesta desigualdade de oportunidades, com nenhum acesso à rádio e à televisão, com muito limitada divulgação de actividades e projectos nos jornais. Nem um só deputado da oposição conseguiu ser eleito, num escrutínio que a comunidade internacional rejeitou, por irregular.

Nas listas da União Nacional ingressará, contudo, uma "ala liberal" (com Pinto Leite, Sá Carneiro, Miller Guerra e alguns outros), com figuras que, na sua esmagadora maioria, o tempo viria a afastar de Marcello Caetano, com maior ou menor fragor político.

Para se dar ares de mudança, a "evolução na continuidade" de Marcello Caetano alterou alguns nomes: a União Nacional passou a "Acção Nacional Popular", a Censura Prévia passou a "Exame Prévio" e a sinistra PIDE passou a chamar-se "Direcção-Geral de Segurança". O regime dava mostras de só conseguir fazer uma "revolução" semântica. Teria, assim, de haver quem fizesse um outro tipo de revolução: por isso, cinco anos depois, aconteceu o 25 de Abril.

Coincidências (2)

No dia em que se ficou a saber que a Rússia considera ter terminado a sua operação "antiterrorista" na Chechénia, a NATO anuncia ter convidado Moscovo para participar nas manobras que efectuará no território da Geórgia.

quinta-feira, abril 16, 2009

Partisans

Morreu ontem, em Paris, o escritor e político Maurice Druon. Resistente à ocupação nazi, viria a ser ministro da Cultura de George Pompidou. Na Académie Française assumiu uma crescente deriva conservadora, que foi marcando a sua bela escrita e os seus actos de vida. Ficou famosa a sua rejeição à entrada das mulheres na instituição, titulando a obstrução - felizmente, sem sucesso - a Marguerite Duras.

O pretexto para esta nota poderia ser a passagem de Druon por Lisboa, em fins de 1942, após ter saído clandestinamente da França ocupada. Foi uma jornada com o também escritor Joseph Kessel, no caminho para se juntarem ao general De Gaulle. Apanharam um hidroavião no Tejo, para Londres, depois de uma travessia épica da fronteira luso-espanhola, sob neve, durante a qual ambos declamaram clássicos franceses, para entreter o tempo.

Mas hoje apetece-me lembrar que, também com Kassel, Druon foi autor da letra do magnífico "Chant des Partisans", com música de Anna Marly, que é considerada a mais marcante canção da resistência francesa, de que se pode ouvir aqui uma versão. Sempre tive a curiosidade de saber como é que o agora ultraconservador Druon vivia o facto de ser co-autor do poema de um dos hinos mais revolucionários de sempre.

Dragão

Há muito de português, bem suave, na íntima compensação que encontramos pelo facto de ser algo pátrio o golo que derrotou o Porto.

Queluz

Era um jantar de gala no Palácio de Queluz. Um rei ou um presidente estrangeiro estava em visita de Estado a Portugal. O protocolo esmerou-se em ter a imensa mesa com grandioso aspecto, belos candelabros e talheres de prata, o serviço de pratos mais requintado, tudo sobre uma toalha magnífica, só usada nas grandes ocasiões. Demorou horas a colocar tudo em ordem, mas o cenário era deslumbrante.

Salazar chegou bem antes do presidente português e do convidado estrangeiro deste. Era, cumulativamente com o cargo de chefe do executivo, ministro dos Negócios Estrangeiros e tinha um cuidado pessoal com estas ocasiões solenes. Mesureiro e conhecedor do seu sentido de pormenor, o chefe do protocolo, cavalgando a oportunidade do bom trabalho feito, inquiriu se o senhor presidente do Conselho quereria dar uma vista de olhos à sala, antes de o jantar começar. Salazar disse que sim.

Lá chegados, o diplomata não resistiu e perguntou: "O senhor presidente do Conselho acha que está tudo bem? Gosta da toalha que escolhemos? Fomos buscá-la à Ajuda...". Salazar esboçou um sorriso, entre o cínico e o irritado, e respondeu: "Muito bem, está tudo muito bem. E a toalha é linda. Pena foi que a tivessem posto do avesso...".

Esta é uma história clássica no Ministério dos Negócios Estrangeiros.

quarta-feira, abril 15, 2009

A França na literatura portuguesa (1)

Manuel Alegre

PORTUGAL EM PARIS


Solitário
por entre a gente eu vi o meu país.
Era um perfil
de sal
e abril.
Era um puro país azul e proletário.
Anónimo passava. E era Portugal
que passava por entre a gente e solitário
nas ruas de Paris

Vi minha pátria derramada
na Gare de Austerlitz. Eram cestos
e cestos pelo chão. Pedaços
do meu país.
Restos.
Braços.
Minha pátria sem nada
sem nada
despejada nas ruas de Paris.

E o trigo?
E o mar?
Foi a terra que não te quis
ou alguém que roubou as flores de abril?
Solitário por entre a gente caminhei contigo
os olhos longe como o trigo e o mar.
Éramos cem duzentos mil?
E caminhávamos. Braços e mãos para alugar
meu Portugal nas ruas de Paris.

(1967)

terça-feira, abril 14, 2009

Joe, the economist

Georgios Papandreou, o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros da Grécia e actual líder da oposição, organiza umas jornadas anuais de reflexão sobre política internacional, o Symi Symposium, para as quais convida amigos de cada país, num total de cerca de 20, com composição quase sempre diferenciada. Tive o ensejo de integrar vários desses encontros, realizados durante uma semana, sempre em lugares diferentes da Grécia, e que são excelentes momentos para análise da conjuntura.

Num dos anos em que participei, estava presente um americano, de que apenas me lembrava vagamente de ter lido alguns artigos na imprensa, cujas intervenções nas sessões foram brilhantes e acutilantes. Chamávamos-lhe simplesmente Joe, era antigo director no Banco Mundial e com ele estabeleci, desde o primeiro momento, uma relação pessoal muito simpática. Isso fez com que, no regresso por Atenas, com as respectivas mulheres, tivéssemos organizado uma divertida jantarada na Plaka. Trocámos cartões e, como, à época, ambos vivíamos em Nova Iorque, ficámos de nos ver.

Poucos meses passaram e, um dia, recebo um e-mail da organização do Symi Symposium alertando-me para a necessidade de darmos parabéns ao Joe. Acabara de ser-lhe atribuído o Prémio Nobel da Economia: era Joseph Stiglitz, que viria a ser um dos mais marcantes críticos da administração Bush.

Dias depois, fui convidado para sua casa, no Upper West Side, em Nova Iorque, para um lançamento privado do celebérrimo "Globalization and its Discontents", e tive-o a jantar na minha, com Jorge Sampaio, numa noite em que nos deslumbrou com o seu brilho.

Por esta historieta se pode ver bem a desvantagem de se ser um embaixador com limitado conhecimento do mundo da grande economia mundial. E que o confessa, sem a menor dificuldade.

A área política republicana criou, no âmbito da campanha presidencial de John McCain, a figura de "Joe, the plumber", uma espécie de caricatura do americano médio. Obama pôde contar, no seu grupo de apoiantes, com este magnífico "Joe, the economist". E ganhou, claro.

Os borregos

Pierre Bourguignon foi, ao tempo em que eu era embaixador em França, um dos grandes amigos de Portugal. Deputado à Assembleia Nacional franc...